terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Em tempos sombrios....

Em tempos sombrios qualquer atitude, por mais boba que seja, pode significar algo suspeito. É com base nessa suspeição quase paranóica que a ditadura militar brasileira, nos idos dos anos 1960-1970, incorreu numa série de lamentáveis equívocos. É sabido que muitos funcionários do aparato repressivo do Estado não eram bem preparados para executar as incumbências dadas por seus chefes. Eram meros autômatos, destituídos de inteligência própria. Lembro-me de uma reportagem da Folha de S. Paulo que versava sobre a incapacidade técnica (leia-se: burrice) desses funcionários.

Um dos capítulos da série Anos Rebeldes, veiculada pela Rede Globo em 1992, "revelou" (não se sabe se o fato aconteceu) que um estúpido meganha do governo foi capaz de apreender um exemplar do livro A capital, de Eça de Queiroz. Por certo, o imbecil acreditava tratar-se de leitura subversiva. É óbvio que confundira o livro do escritor lusitano com O capital, de Karl Marx.

Um equívoco curioso também aconteceu numa faculdade pública de engenharia.

Em 1970, quando chegara para aplicar a prova de sua disciplina, o professor se deparou com uma discussão. Seus alunos estavam divididos entre fazer ou não fazer a avaliação. Alguns queriam prazo maior para estudar. Outros, se pudessem, fariam a prova naquele mesmo dia. O debate foi longe e os ânimos se acirraram. Enfim, decidiu-se que a avaliação seria adiada.

Sem imaginar que, em poucos minutos, aquele fato seria noticiado por todo o campus, o professor voltou para seu departamento. Lá chegando foi informado de que o diretor da faculdade, à época um militar, queria lhe falar. Surpreso, compareceu à sala do sujeito.

Iniciou-se, então, um discurso sobre os benefícios do regime de exceção militar. O insano diretor elencou ao professor os "avanços" da ditadura, tentou mostrar-lhe que a criminalidade diminuíra, que a taxa de desemprego caíra substancialmente. Vociferou contra os estudantes, por ele considerados vagabundos que só faziam política universitária. Deixou claro que ocupara o posto no qual estava para fazer ruir qualquer tentativa de subversão estudantil.

O professor não conseguiu compreender a motivação daquela estúpida campanha ideológica encetada de forma tão particular e tão limitada. Teria questionado o poder vigente em alguma reunião da universidade? Fizera alguma observação afrontosa ao governo? Colocara em xeque alguma diretriz do autoritarismo brasileiro? Não, nada disso. Embora avesso ao Estado ditatorial, o professor preferia acompanhar a política de longe, com o cuidado necessário para não conspurcar sua atividade profissional, que lhe era tão cara.

Ao fim do discurso, o diretor revelou que ficara sabendo da "insurreição" dos estudantes da turma do professor. Imaginou que ali estivesse o início de uma contra-revolução, algo capaz de abalar a estrutura da política nacional. Chegara a seus ouvidos que aquela turma estava disposta a lutar pelo fim da ditadura e que iria depor o ilustre diretor.

O professor, com a lucidez que lhe sempre fora peculiar, tentou mostrar ao seu interlocutor que o debate de seus alunos era tão-somente para resolver a data de uma prova e não tinha nenhuma intenção política. Depois de sua explanação, ainda ouviu o brado da inteligência militar brasileira:

- Nós temos maneiras eficazes de acabar com aqueles que lutam contra a ordem.

Quanta burrice!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Por trás de um grande homem....

Sempre achei curiosa a idéia de que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Conheci uma dessas mulheres.

Na década de vinte, ainda moça, foi vizinha de Heitor Villa-Lobos. Conversava com ele amiúde. Acompanhou, não sei em que medida, o conturbado relacionamento do primeiro casamento do maestro. Afirmou-me, por várias vezes, que ele não transpunha para a partitura suas composições, cabendo à sua esposa essa árdua tarefa. Disse-me, também, que conheceu a velha guarda do samba e do choro cariocas. Benedito Lacerda e outros compositores ficavam nas ruas da pacata capital brasileira a executar músicas que entrariam para a história. Talvez tenha sido nessa época que se lhe despertou alguma aptidão para a música. Estudou piano e, ainda sem precisar trabalhar, se prestava, juntamente com amigas, a virar as partituras dos pianistas que faziam o som dos cinemas naquele período.

Nunca falou-me sobre seu pai. Soube depois que o sujeito era um alfaiate de mão cheia, servidor de gente graúda, mas que, por ter se envolvido com negócios escusos, teve de aportar à socapa em terras argentinas. Sua mãe e ela, por necessidade, passaram a fazer doces para a famosa Confeitaria Colombo.

Por volta da ditadura varguista, mais precisamente nos anos do Estado Novo, conheceu um jovem egresso do interior paulista. Ele fora estudar Medicina na capital e certamente se encantou com seus enormes olhos azuis. Casaram-se quando o regime de exceção de Vargas havia recrudescido. Depois que ele terminou a faculdade, mudaram-se para São José do Rio Preto, interior paulista, já com um filho a ser criado. Depois, viria outro.

Sempre a ouvi dizer que estava longe de sua terra. Havia nesse comentário algo que se assemelhava aos sentimentos dos escravos quando se queixavam da distância da mãe pátria. Acompanhava pelos jornais e pela TV o que acontecia no Rio de Janeiro. Não conseguiu, durante extenso tempo, acreditar que o paraíso no qual fora criada se transformara em uma cidade hostil, sujeita a disputas de territórios pelos narcotraficantes. Queixava-se disso, embora não demonstrasse muita tristeza.

O marido, já médico estabelecido e bastante conhecido, resolveu atirar-se na política. Obteve êxito, elegendo-se vereador por quatro vezes consecutivas. Ele casou-se também com a cidade, transitando por vários segmentos, costurando tramas políticas, estratégias sociais e tudo aquilo que era capaz de fazer pelo bem dos riopretenses. Cobiçou a prefeitura que, diziam, seria conquistada sem muitos esforços. Dela desistiu quando algo mais importante lhe aconteceu: foi nomeado diretor do Instituto Adolfo Lutz. Conduziu-o com severidade e rigor extremos. Entre tantas conquistas, em 1958, logrou a erradicação da Poliomielite dos arrabaldes da região.

Enquanto ele se mostrava um sujeito de educação rígida e muito austero – o que o afastava de muita gente, admita-se! – ela a todos encantava. Era uma gozadora. Não havia quase nada que escapasse à sua ironia despretensiosa, muito sutil. Gargalhava, debochava de coisa séria e não se deixava abater quando o marido lhe impingia alguma espécie de reprimenda injusta. Tinha a serenidade necessária para suportar a personalidade frenética dele. Mais que isso, tinha a fibra incansável para apoiá-lo em suas missões. Sem ela, ele não teria empreendido tanto.

Essa grande mulher morreu na semana passada, aos noventa anos, talvez com a mesma placidez com que sempre viveu. Era minha avó.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Leite derramado

Depois que li Leite Derramado (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), quarto romance do Chico, senti-me tentado a escrever alguma coisa sobre ele aqui no blog. Furtei-me a realizar a tarefa porque tinha a convicção de que não conseguiria fazê-lo sem isenção. Além do mais, faltava tempo para refletir e produzir algo que fosse minimamente decente.

Agora, já no final do ano, quando muitos dos detalhes do livro se perderam na minha cabeça, apareceu o William Lial (vejam o blog dele aí do lado), para me fazer um convite: escrever sobre o melhor livro lido ao longo do ano para participar de uma "blogagem coletiva". Trata-se do "Meu melhor livro do ano".

Aceitar o convite, seria, necessariamente, o mesmo que ceder à antiga tentação de escrever sobre Leite Derramado. Depois de muito hesitar, resolvi não escrever nada. Mas, como isso soaria covarde, aceitei parcialmente o convite. Digo parcialmente porque o máximo que conseguirei fazer é amontoar alguns comentários sumários sobre um dos múltiplos aspectos do livro: a questão do preconceito racial.

Vamos lá. Meu tempo é curto!

A história do romance versa sobre o decadente aristocrata Eulálio Montenegro d’Assumpção, nascido em 16/06/1907. Eulálio passa seus últimos dias num leito hospitalar a recordar seu passado e mostrar a genealogia de sua família. Assume um tom nitidamente cômico, sem abrir mão de manifestar o aristocratismo que alimentou sua vida.

A estirpe de Assumpção lhe facultaria, ainda moço, subjugar sexualmente o escravo Balbino, residente em sua fazenda. Quando adolescente, Eulálio pôs na cabeça que deveria enrabar Balbino. Este, certamente, cederia às suas ordens, mas nem mesmo elas seriam necessárias. O trecho de Chico é lapidar:

"Durante um período, para você ter uma ideia, escasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. Então lhe pedia que fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela manga específica, lá no alto, que nem madura estava. Balbino pronto me obedecia, e suas passadas largas de galho em galho começaram de fato a me atiçar. Acontecia de ele alcançar a tal manga e eu lhe gritar uma contra-ordem, não é essa, é aquela mais na ponta. Fui tomando gosto por aquilo, não havia dia em que não mandava o Balbino trepar nas mangueiras uma porção de vezes. E eu já desconfiava que ele se movia ali no alto com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos para recolher as mangas que eu largava no chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda. Só me faltava ousadia para a abordagem decisiva, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias , ponderações tão acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas" (p. 19-20)

Eulálio só desistira de seu intento porque conheceu aquela que seria sua companheira misteriosa, Matilde. A convivência com o escravo Balbino lhe forneceria um traço de personalidade diferente de seus ancestrais. Diz o narrador: "garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor" (p. 20).

Era justamente aí que Assumpção se diferenciava de seus ancestrais: o pai "que só apreciava as loiras e as ruivas" e a mãe que chegara a perguntar se Matilde, "de pele quase castanha", "não tinha cheiro de corpo". Diferentemente do perfil desenhado pelo pensamento social nacional, Eulálio não seria o herdeiro de uma das piores mazelas brasileiras: o preconceito racial. Seu avô também comportava-se de maneira semelhante. Era, conforme o narrador, um "bem feitor da raça negra". Veja-se:

“Do meu último passeio, só me lembro por causa de uma desavença com um chofer de praça. Ele não queria me esperar meia horinha em frente ao Cemitério São João Batista, e como se dirigisse a mim de forma rude, perdi a cabeça e alcei a voz, escute aqui, senhor, eu sou bisneto do barão dos Arcos. Aí ele me mandou tomar no cu mais o barão, desaforo que nem lhe posso censurar. Fazia muito calor no carro, ele era um mulato suarento, e eu a dar ares de fidalgo. Agi como um esnobe, que como vocês devem saber significa indivíduo sem nobreza. Muitos de vocês, se não todos aqui, têm ascendentes escravos, por isso afirmo com orguho que meu avô foi um grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês” (p. 50-51).

A temática racial perpassa todo o romance, mas tem seu cume, segundo entendo, na exposição do seguinte trecho:

“O Balbino nem era mais escravo, mas dizem que todo dia tirava a roupa e se abraçava num tronco de figueira, por necessidade de apanhar no lombo. E vovô batia de chapa, sem malícia na mão, batia mais pelo estalo que pelo suplício” (p. 102)

Com exímia destreza, Chico evidencia que, embora já terminado o estatuto legal da escravidão, a herança escravocrata haveria de perdurar na raça negra mesmo depois de conquistada a liberdade almejada. A necessidade de se abraçar ao tronco de figueira não seria, naturalmente, nenhum sadismo, mas apenas o termômetro da extensão da escravidão na alma negra.

Além do preconceito racial, o patrimonialismo – tema tão caro à obra do pai de Chico – também é exposto com o brilhantismo de quem conhece os meandros da história brasileira e bem sabe – para dialogar novamente com Sérgio Buarque – quais são as "raízes" do Brasil.

É claro que para além das temáticas políticas (dirigidas, a bem dizer), o livro é recheado de trechos cômicos, sempre evocativo de alguma figura familiar de Eulálio. Seu tataraneto, por exemplo, é um garotão que paga suas despesas hospitalares e cujos rendimentos não tem a menor idéia de onde provêm. Diz o narrador: “Sou muito grato ao garotão, mas para ganhar milhões sem instrução alguma, deve ser artista de cinema ou coisa pior” (p. 78). E a origem espúria de seus proventos é sugerida quando Kim, sua namorada que vive com um "brinco no umbigo", oferece a Eulálio cocaína de rara qualidade. Não é aquele “pó de gesso” que otário cheira por aí” (p. 173).

Enfim, a exemplo dos demais livros do Chico, Leite derramado contém sugestões sutis de talhe político e ideológico. É uma obra-prima que revisita o passado brasileiro tal como fizeram os autores da década de 1930. A despeito de toda sua pujança, suscitou um sem-número de comentários descabidos dos críticos de plantão que jamais tiveram a sensibilidade necessária para entendê-lo.

Ainda bem que Chico sabe que não temos boa crítica. Ainda bem que existe Roberto Schwarz para colocar os pontos nos is e mostrar a fecundidade de Leite Derramado.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Certa vez, num certo país

Certa vez, num certo país, o líder de uma banda compôs uma música muito interessante. Ela dizia que um político daquela época havia dito que no Congresso daquele mesmo país existiam 300 picaretas com anel de doutor.

Hoje, talvez o compositor mudasse a letra da música. Diria que, além dos 300 picaretas com anel de doutor, temos também um grande picareta sem anel de doutor....

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ufa!

Amanhã a Globo vai passar um especial sobre Raul Seixas (Por toda minha vida). Trata-se daquela série de reportagens sobre algum músico brasileiro que já não habita o mundo dos vivos.

Na chamada do programa, a belíssima Fernanda Lima refere-se à relação entre Raul Seixas e Paulo Coelho, seu parceiro em algumas canções. Tão logo termina de falar, aparece uma rápida cena do Mago dizendo:

- Nós tentamos mudar o mundo!

Ufa! Ainda bem que eles não conseguiram.

sábado, 28 de novembro de 2009

Luiz Inácio

Já não sei quantas vezes disse que não falaria de política aqui. Também não sei quantas vezes descumpri minha promessa.

Tem causado algum desconforto aos raros leitores desse blog minhas indignações com o Sr. Luiz Inácio. Há pouco cheguei a compará-lo com Collor. Ocorre, todavia, que a comparação não se referia a eventuais méritos do governo de cada um. Apenas quis assinalar que tanto quanto Collor, Luiz Inácio se revelou um engodo político. Mostrou-se entretanto mais hábil, já que, movido por seu populismo nada ordinário, arrebanhou votos suficientes para se eleger em dois pleitos eleitorais.

Luiz Inácio é o carisma em pessoa. Analisando suas condutas, seu proceder político e a relação com seus eleitores, se vivo fosse, Weber talvez se visse tentado a reformular sua teoria sobre a dominação carismática. Meu amigo Mazeu tem razão: se Luiz Inácio "espirrar, eis o terceiro mandato".

Não estou com birra do nosso barbudo. Estou mesmo é decepcionado! Conforme já assinalei, sempre votei nele. Ainda moleque, em 1989, comprei a ilusão de que o voto no PT representava o rompimento com as mazelas do nosso passado, com o latifúndio brasileiro, com as práticas patrimonialistas e etc. Acreditava que haveria, ao menos, a moralização da máquina pública.

Acompanhado de minha mãe, fui de estrela vermelha no peito votar. Em tom irônico, antes de entrar na sala de votação, ela fez uma pilhéria antipetista. Se o barbudo ganhasse, teria de dividir minha guitarra com mais três meninos. Era brincadeira, naturalmente. E nós sabíamos que o teor daquela brincadeira era sério para muita gente. O medo de um governo comunista existia, acreditem. Hoje, a mesma brincadeira não passaria de piada de mau gosto. Lula, comunista? Socialista?

O tempo passou. Confesso que fiquei emocionado quando de sua primeira eleição, em 2002. Naquela data, liguei para um amigo antipetista. Ele não estava em casa. Deixei a seguinte mensagem na secretária eletrônica dele: "Vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade". O problema é que não me dei conta de que o título do verso citado (Vai passar) traduziria a história dos próximos anos no Brasil. Toda aquela euforia passaria. E passou!

Hoje me pergunto onde está a evolução da liberdade. Pergunto-me, sem cessar, onde estão as três refeições que o Sr Luiz Inácio disse que propiciaria ao povo brasileiro antes do término de seu primeiro mandato. Ainda embriagado de sonhos ingênuos, cheguei a acreditar nessa promessa impossível. A que ponto eu havia chegado!

Pergunto-me, também, por que Luiz Inácio nunca soube da participação de seu partido no maior esquema de corrupção já verificado nos meandros do poder brasileiro. Mais: pergunto-me se seria possível não sabê-lo. Mas isso não é tudo. O pior foi ter ouvido que "ninguém neste país tem mais autoridade moral e ética" do que o PT.

Onde estaria, então, a diferença entre o PT e os demais partidos brasileiros? Talvez minha miopia não me deixe perceber se ainda há alguma diferença. Se houver, sei que é pequena, mínima, muito restrita.

E pensar que já briguei tanto, com tanta gente, para defender tanto o PT como o Sr. Luiz Inácio....

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Ainda sou brasileiro?

Terminei meu último post com a frase "eu também já fui ingênuo". Logo depois de redigi-la, lembrei-me do poema do Drummond "Também já fui brasileiro".

Para aqueles que o conhecem, espero que entendam a razão desse post. Para os que não o conhecem, ei-lo abaixo. Garanto que vale a pena ler.


Tambem já fui brasileiro

Eu também já fui brasileiro
Moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.
Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irónico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Carlos Drummond de Andrade - Alguma poesia (1930)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ingenuidade

Acabei de ver no Canal Livre (TV Bandeirantes) uma imagem datada de 1989.

No famoso debate do segundo turno das eleições presidenciais, Collor vociferava, agitava os punhos, franzia a testa e falava convictamente sobre as idéias que tinha para mudar o Brasil. Só os ingênuos não conseguiram perceber a ilusão e a fragilidade de seu discurso. Eram tão evidentes! E, no entanto, Collor foi eleito.

Hoje, depois de vinte anos, me pergunto como seu antigo adversário conseguiu a mesma proeza duas vezes. E o pior: com a minha ajuda!

Pois é.... Eu também já fui ingênuo!

sábado, 31 de outubro de 2009

Uma pergunta para o Jabor

Assisti "Eu sei que vou te amar", em 1986. Tinha 14 anos e fui até a locadora procurar pelo filme que diziam ter sido premiado em Cannes. Fernanda Torres havia levado o prêmio de melhor atriz. O filme se passava num apartamento, tendo raríssimas cenas externas. Fernanda contracenava com o hilário Thales Pan Chacon. Eram diálogos que "discutiam a relação" ou explicitavam a neurose do casal. Nem lembro o que pensei do filme, mas olhando para o passado, tenho a certeza que, dada minha imaturidade, aproveitei muito pouco dele.

Já na década de 90, quando entrei na faculdade, Jabor era colunista da Folha de S. Paulo. Se não me engano, estreou na Ilustrada, escrevendo semanalmente. Eu me perguntava sempre se aquele era o Jabor "cineasta" e o que o teria feito desistir do cinema. A pergunta ficou na minha cabeça por muito tempo.

Um dia, assisti a uma entrevista em que ele dizia que só voltaria a filmar se houvesse um motivo realmente importante, que justificasse sua volta ao cinema.

Depois, já no final da década de 90, Jabor virou comentarista do Jornal da Globo. Seu estilo misturava histeria com radicalismo. Fazia comentários fervorosos, incisivos, capazes de suscitar no telespectador algum inconformismo. Quando "Central do Brasil" concorreu ao Oscar e perdeu para "A vida é bela" ele não deixou de fazer críticas duras ao filme do Benigni: disse que nada mais era do que uma recauchutagem barata do surrealismo italiano. Não pude deixar de concordar com ele: Central do Brasil, ao menos do ponto de vista estético, é muito mais interessante do que "A vida é bela".

Jabor escreveu livros, artigos, participou de debates políticos ao longo de todo esse tempo, foi comentarista do Manhattan Connection. Recentemente, voltou para atrás das lentes. Em ritmo frenético, e totalmente dedicado, está dirigindo "A suprema felicidade".

O que terá justificado sua volta para o cinema?

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Falta de respeito 02

Pois é.... eis aqui a segunda versão do vídeo "Falta de Respeito". Como diria o Maestro Soberano, "espero que definitiva"! É ela que irá para o tal festival.

Não foi necessário que me convencessem da minha lamentável atuação como ator. Eu mesmo já tinha feito um juízo extremamente negativo sobre meus movimentos diante da câmera (é uma pena que nem todos atores tenham essa serenidade.... quá, quá, quá!). Apenas mudei a versão porque entendo que a imagem do celular está em maior sintonia com o tema do clipe.

Ah sim, o tempo continua o mesmo: menos de um minuto e quarenta segundos!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Falta de respeito

"Falta de respeito" é o nome desse vídeo aí embaixo. Ele deve participar de um festival de curtas-metragens. Pretendia explicar a idéia original e fazer uns comentários sobre o resultado. Contudo, as imagens falam por si. Quem tiver paciência para ver, fique à vontade. Tem menos de um minuto e quarenta segundos.


sábado, 3 de outubro de 2009

Gadelha e a cidade grande

Gadelha e a cidade grande - Roberto Barbato Jr

Conto publicado originalmente no Portal Cronópios (http://www.cronopios.com.br) em 03/10/2009


Sua existência estivera circunscrita ao restrito mundo da venda de seu pai. Completara duas décadas praticamente trancado ali, entre notas e carregamentos, vendas e pedidos. Seus conhecimentos nas matemáticas eram exíguos, sabia executar de modo claudicante as quatro operações elementares – o suficiente para levar a termo a tarefa que sr. Afrânio desde cedo lhe confiara. Tinha relações as mais cordiais com os fregueses e não raro os recebia em casa, quando a necessidade os surpreendia no meio da madrugada. Gadelha era um menino dado às generosidades da alma humana. Um bom rapaz, dizia a voz do vilarejo.


Amigos, fizera poucos. Lograra o infortúnio de uma paixão quase platônica. Jamais nutriria tamanha afeição por qualquer outra mulher. Amelinha representava a descoberta de sua sexualidade e de seus sentimentos mais nobres. Um dia entrara na venda para anunciar que mudaria para a cidade grande. Tinha devaneios incompatíveis com a vida de Gadelha. Seria atriz.

Sofria calado, sonhava com o momento de conhecer aquilo que só havia no relato de companheiros e na televisão. Pensava em edifícios grandes, os chamados arranha-céus – disseram-lhe que eles existiam! Mesmo diante de evidências, hesitava acreditar que aquilo tudo seria possível. De quando em vez, suplicava ao pai para conhecer a cidade grande. Reticente, o velho assentia:

- Um dia, quem sabe...

Divertimentos, só na Casa de Lulú, a cortesã do vilarejo. Lá passava as noites com o consentimento do pai. Tinha já sua rapariga cativa, a quem transferia as fantasias outrora sonhadas com Amelinha. Ao final do prazer, tal qual uma epifania, imperava a imagem da musa eterna. Depois, acometia-lhe a preocupação com os afazeres comerciais, restava-lhe o dissabor da labuta.

Iniciara-se nas primeiras locuções da língua inglesa. Pronunciava-as com sotaque carregado, tentando alcançar a perfeição. Como fosse incapaz de articular um período com lógica, repetia expressões sem lograr seu completo entendimento. Com isso, imaginava prescindir da legenda do telão quando de sua primeira visita ao cinema. Também sonhava com ele.

Passaram-se alguns anos. Sr. Afrânio agonizava na cama. Já não era sem tempo!, exclamara o filho. Presenciara sua morte, suspirara e atirara-se em cima do velho. Um choro indefinido: não sabia se de alegria ou desespero. Vencera o primeiro, imprimindo-lhe uma sensação de liberdade jamais experimentada. Iria atrás de Amelinha, decidira.

Mas, como?, refletia na solidão da venda, por trás do balcão. Elvira, a vizinha, concordara em levá-lo desde que prometesse discrição. Não queria repentes e vexames, já lhe custara muito a imagem de caipira na cidade grande.

Foi então que, com um misto de receio e alumbramento, Gadelha pusera-se a sonhar novamente. Ensaiara posturas, gestos e frases de efeito. Buscava a naturalidade de uma situação que, sabia, lhe seria hostil. Preparara com dificuldade sua mala; arrumara roupas e pertences de forma desordenada; vestira sua melhor camisa. Partiram.

Ao aproximar-se da cidade, estacara perplexo. Calara-se. Quisera voltar, desistir de tudo. Elvira encrencara:

– Assenta, homem.

Gadelha a tudo olhava. As pontes, os edifícios, as ruas, largas construções, carros a mancheias: tudo lhe causava assombro! Flagrara-se diante de um universo temeroso. Preferira ficar calado, não abrir a boca. Elvira, vez por outra, explicava-lhe as coisas, dizia o nome, a utilidade. Mostrava-lhe o sentido daquele cenário inédito, fazendo-o crer que para além da venda de seu pai havia um mundo repleto de significados.

A primeira noite fora de casa... Foram ao cinema assistir a um filme de procedência norte-americana. Gadelha fazia questão: queria testar seu inglês. Poucas foram as palavras que conseguira captar. Depois de poucos minutos rendera-se à lépida legenda. Ao final da fita, após tantos diálogos perdidos, não pôde entender o intrincado jogo de artimanhas entre a mocinha e o bandido. Passara a repudiar o cinema. Melhor seria confinar-se à venda, lá teria compreensão de tudo quanto lhe parecesse dificultoso.

Mal dormira durante a noite pensando em Amelinha. Como encontrá-la? Disseram-lhe que a cidade grande é realmente grande. Teria pouquíssimas possibilidades de rever o antigo amor. A menos que o encontrasse casualmente, sem a mínima intenção. Mas, qual o quê? Gadelha não tinha boas relações com as coincidências. Sempre que elas se lhe apresentavam era porque estava a caminho alguma desdita.

Impingira-o um desalento implacável, já não tinha mais ânimo para nada. A vizinha tentara consolá-lo, convencendo-o de que Amelinha já não se importava com ele. E mesmo que estivesse enganada, um novo encontro de nada adiantaria: após longos anos, ela não se renderia às mesuras do rapaz. Sugeriu-lhe que aproveitasse a última noite na cidade grande assistindo a um musical em uma dessas casas de duvidosa reputação.

Espetáculo começado, a boca de Gadelha não se continha em pequenos risos. Deleitava-se com cenas de intensa vulgaridade. Gargalhava com a precária coreografia das danças. Sentira-se absolutamente feliz até o momento em que, perplexo, notara a presença de Amelinha no palco. Palpitara-lhe o coração, ficara pálido, trêmulo, inerte.

Poderia voltar para casa. Já era indiferente ao sonho da cidade grande, do cinema e do amor de Amelinha.

domingo, 13 de setembro de 2009

Molecagem

Eu não tinha mais que doze anos. Naquela época não havia Bina. A segurança em passar trotes era grande. Embora os pulsos telefônicos fossem caros, a molecada abusava. Existiam os trotes bem bolados, daqueles capazes de fazer um motorista de guincho sair de madrugada no inverno para gastar gasolina e não encontrar nenhuma batida. Também existiam aqueles aptos a tirar o sujeito de casa para se encontrar com uma fulana que só o conhecia de vista, mas que, garantia, tinha enorme atração por ele. Era sacanagem, é claro!

Os trotes mais rápidos, aqueles que não tinham nenhuma estratégia, geralmente não surtiam efeitos. Eram os trotes de imbecis que, por conseguinte, atingiam somente os bobos.

Pensei num número qualquer e arrisquei.

- De onde fala?

- Da oficina do Carlinhos.

- Quem tá falando?

- É o Carlinhos.

- Carlinhos, você é um filho da puta! Vá tomar no seu cu.

- Quem está falando?

- Não interessa quem está falando. O que interessa é que você é um filho da puta! Vá se foder!

O Carlinhos, do outro lado da linha, não tinha a menor noção do que estava acontecendo. Mesmo assim, reagiu:

- Vá se foder, você, seu viado!

- Vou nada, quem tem que se foder é você e essa sua oficina de merda.

Ele estava levando a sério a provocação. Foi ousado:

- Por que você não vem aqui me dizer isso pessoalmente?

- Eu vou. Onde fica a porra da sua oficina?

Não acreditei! Não é que o Carlinhos me passou o endereço?

- Fica aí me esperando. Vou arrebentar sua cara, seu bunda mole! – afirmei com convicção.

Desligamos o telefone. É claro que não passou pela minha cabeça ir até a oficina do Carlinhos. Mas eu não podia recuar depois de ter feito tudo aquilo. Seria como provocar alguém e sair correndo. Ao menos na aparência eu deveria parecer corajoso.

Em poucos segundos, contudo, veio-me à cabeça um daqueles sentimentos de culpa, de arrependimento mesmo. Fiquei meio chateado. Ainda que fosse mal-educado, o Carlinhos estava trabalhando. Devia ter serviço para entregar, compromissos para honrar. Justamente na hora de seu trabalho, um vagabundo como eu resolveu importuná-lo. E era uma agressão gratuita, sem nenhuma razão. Fiquei com pena do coitado do Carlinhos.

Aquele sentimento começou a me corroer. Eu não conseguiria ficar em paz se não me desculpasse. Liguei de novo:

- Quem fala? É o Carlinhos?

- É. Quem tá falando?

- Ô Carlinhos, fui eu que te liguei agora há pouco. Tô ligando para te pedir desculpas. Você estava trabalhando e eu liguei para te encher o saco.... Desculpe. Eu achei que....

Mal terminei minhas desculpas, ouvi o Carlinhos vociferar:

- É isso aí! Eu acho bom mesmo você pedir desculpas. Senão eu quebro sua cara!

Quebrar a minha cara? Como? Onde? Quando? O Carlinhos nem sabia quem eu era. Como poderia me ameaçar daquela forma? Não teria aceitado minhas desculpas? Não lhe passara pela cabeça que eu estava arrependido? Não deixei por menos. Mandei o arrependimento às favas:

- Carlinhos! Ô Carlinhos!

Silêncio. O Carlinhos não falou nada. Repeti:

- Carlinhos! Ô Carlinhos!

- Fala, pode falar, seu filho da puta! – ele estava aguardando.

- Você acreditou? Carlinhos, você acreditou? Você é um bosta, um filho da puta! Vá se foder, enfie essa sua oficina no cu.

Enquanto o Carlinhos gritava do outro lado da linha, eu gargalhava. E ele se enfurecia....

É como eu disse: havia um imbecil e um bobo....

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cine Odeon

Terminei hoje a leitura de Cine Odeon, da Lívia Garcia-Roza. O livro, publicado em 2001 pela Record, foi finalista do Jabuti.

Não conheço nada da autora e confesso que esse livro caiu em minhas mãos casualmente, numa das vezes que visitei a Saraiva e procurei por "algo novo". Bastou ler a primeira página para ficar encantado. Prometi que o leria. Só não sabia que ficaria extasiado com a leitura.

É sublime!

Em tempo.... Conheci a obra do Garcia-Roza, marido da Lívia, da mesma forma: procurando por "algo novo" na Saraiva.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

CPC ARACY DE ALMEIDA

Depois que concluí o doutorado e publiquei a tese, ainda falei, em alguns encontros e seminários, sobre a política cultural brasileira na época de seus "primórdios", ou seja, quando houve a primeira experiência institucionalizada de organização da cultura. Tratava-se do Departamento de Cultura de São Paulo, liderado por Mário de Andrade e por alguns intelectuais paulistas.

Em agosto de 2006, fui convidado para fazer uma exposição sobre o tema no Museu da República, no Rio de Janeiro. O seminário, organizado pelo Flávio Aniceto, do Centro Popular de Cultura Aracy de Almeida, reuniu vários professores e pesquisadores.

Poderia parecer estranho que cariocas quisessem ouvir alguém falar sobre uma experiência de cultura paulistana. Todavia, como o seminário versava sobre política cultural em sua generalidade, entenderam por bem me convidar.

Pois foi no simpático casarão do Catete, antiga morada de Getúlio Vargas, que passei uma tarde agradabilíssima. Conheci a turma do CPC e logo percebi que ali havia um desejo pulsante de discutir, produzir e organizar cultura. Falando nesses termos, pode soar ao leitor que a moçada era idealista e que todo aquele desejo intenso não resistiria ao tempo. Felizmente resistiu!

Com frequência e organização invejável, recebo os boletins informativos das atividades do CPC. Neles, encontro uma rica programação cultural, além dos textos que suscitam debates sobre a produção cultural carioca e a atuação dos conselhos municipal e estadual de cultura. Até mesmo a transferência do MIS para Copacabana, que tem ensejado muita discussão, já constituiu matéria de interessantíssimo artigo.

Se um dos grandes problemas das políticas culturais é a falta de aporte financeiro e de iniciativas, o CPC Aracy de Almeida é uma rara exceção. Se inexistem condições financeiras para a realização das atividades, a turma do Flavinho dá um jeito. Não se duvide. A vontade de empreender, a disposição para debater e o espírito aberto para as questões culturais superam as adversidades materiais e seriam capazes de causar inveja aos "dirigentes" da cultura brasileira.

Pena que toda essa efervescência cultural fique, muitas vezes, restrita ao círculo de amigos e apreciadores do CPC.

Por fim, sugiro aos eventuais leitores desse blog que, estando no Rio, procurem pela programação da turma do "CPC Araca". Valerá a pena!

domingo, 23 de agosto de 2009

Homem não chora

Lembro-me de ter lido, no início da década de 1990, a entrevista de um jornalista que estava prestes a assumir um cargo público em São Paulo. Seu pai, àquela época já falecido, foi um comunista bastante ativo. Costumava dizer aos filhos (um dos quais, filósofo marxista) que quando alguma coisa estivesse errada, seria preciso olhar em direção ao Kremlin. Um dia, o jornalista resolveu romper com o comunismo. Abandonara as convicções que sempre deram sentido à vida do pai. Ideologicamente, distanciou-se dele e do irmão.

Na entrevista, o tal jornalista contou que tivera um sonho bastante significativo a respeito de seu rompimento com as tendências de esquerda: num quarto branco, sóbrio, sem cores, ele levantava o pai pelo colarinho e gritava:

- Você me enganou! Você me enganou!

O pai, provavelmente ciente de que escolhemos ideologias por afinidades e devemos recusá-las quando desejamos, apenas respondeu:

- Homem não chora! Homem não chora!

Hoje, quando olho para trás, relembro minhas opções políticas sem arrependimento. Mas, quando vejo que os representantes que ajudei a eleger servem para perpetuar o que há de mais atrasado na política brasileira e ainda reivindicam o monopólio da moralidade pública, confesso que tenho vontade de chorar.

É nessas horas que lembro da lição do velho comunista: homem não chora!

terça-feira, 14 de julho de 2009

Óculos de Drummond

Óculos de Drummond - Roberto Barbato Jr

Conto publicado na Revista Cult, N. 137, Julho de 2009.

Furtaram os óculos de Drummond. Sim, os óculos da estátua do poeta, situada no calçadão da velha Copacabana. O corpo e a cabeça permanecem lá, altivos, imponentes como o homem que, a despeito de franzino, era um gigante. A mídia já se encarregou de rotular a atitude como resultado do vandalismo de um grupo de homens. O que teria acontecido?

Quatro rapazes passaram pelo calçadão após uma lauta rodada de chope, numa dessas noites quentes. Todos, sem exceção, no mesmo momento, foram tragados pelo olhar sereno do poeta. Ficaram inertes, petrificados como a estátua. Moviam apenas os músculos laríngeos para possibilitar que engolissem em seco.

Precisavam refletir sobre o que acontecera desde que, ainda moços, abandonaram as Minas Gerais e foram para o Rio. Pensaram naquela geração que após tanta inovação ainda queria continuar com aqueles projetos lá na capital. Lembraram-se da juventude, tempos da Folha de Minas, d' O Diário e de outros jornais. Pensaram na época em que sonhavam ser grandes escritores, usar a literatura como arma de combate.

Recordaram-se de Getúlio e Capanema, da Biblioteca Nacional e do Instituto Nacional do Livro. Lembraram-se de todo o projeto de construção nacional em voga naquele período. Quase todos foram tragados por ele!

Cada qual olhou para os outros. Ainda estavam inertes: pensaram, pensaram, pensaram. Em uníssono resolveram surrupiar os óculos do poeta. Ele não se incomodaria, por certo. Ao menos uma vez queriam ver o mundo pelas lentes daquele que foi o líder de sua geração. Eram as lentes de um outro moço que também fora para o Rio em busca de sonhos.

E, depois, o que fariam com o objeto furtado? Uma noite com cada um. Revezariam, oras! O Rio, agora, parecia diferente. Os tempos eram outros.

Lamentavelmente, a mídia jamais noticiará quem foram os quatro vândalos a subtrair os óculos do poeta: Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Os quatro mineiros ainda regozijam-se à farta! Passam pelo calçadão, olham para Carlos e asseveram que não conseguem mais viver sem aquelas lentes.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Imaturidade e efervescência

Um recente olhar retrospecto fez-me lembrar de como a década de 1990 tinha uma efervescência política e intelectual bastante interessante. Estudantes de Ciências Sociais, eu e alguns amigos acompanhávamos os debates da época com entusiasmo. Imaturos que éramos, não conseguíamos a isenção necessária para avaliar o momento nacional. Seguíamos a velha necessidade de contrapor a esquerda à direita, os socialistas aos liberais, os democratas aos tirânicos. Éramos, enfim, maniqueístas.

Em 1991, líamos os colunistas diários da Folha. Como estudantes, tínhamos pouco dinheiro. Não assinávamos o jornal e, lúcidos, optávamos sempre pela cerveja e pelo cigarro. Em atitudes pouco éticas, e já ébrios, acabávamos surrupiando furtivamente os jornais dos vizinhos. Com o passar do tempo, essa prática ficou inviável e tivemos de encarar o valor mensal do periódico.

Havia sempre debates em torno do que diziam os colunistas. Eram todos de primeira linha. Às segundas-feiras, Florestan Fernandes; às terças, José Serra; às quartas, Delfim Neto; às quintas, FHC e, às sextas, escrevia alguém cujo nome escapa da minha memória. Se alguém souber, por favor, avise-me.

Florestan escrevia frases de efeito que seduziam a maioria dos socialistas. Suas colunas eram repletas de metáforas e traziam textos densos, jargões que animavam os estudantes marxistas afeitos à tradição revolucionária. Estávamos no período em que Collor era presidente. Florestan pintava e bordava ao criticá-lo. Utilizava-se de descrições históricas e análises sociológicas para combater aquele que chegara a comparar ao Imperador D. Pedro. Líamos empolgadíssimos a tira da segunda.

FHC era, ainda, senador. Contrapúnhamos seus textos aos do Florestan, já que eram, respectivamente, aluno e professor. Estavam, ademais, em campos distintos na arena política. Para nós, o professor estava sempre com a razão. Éramos incapazes de ver que o senador estava mais preocupado em discutir a transição democrática com base em propostas concretas do que avaliar episódios pretéritos de nossa história.

Delfim, via de regra, sempre encontrava um jeito de atacar o marxismo, embora não fizesse menção expressa a nenhum texto de Florestan. Ficamos surpresos quando descobrimos que, embora liberal, Delfim é um profundo conhecedor do marxismo inglês. Disseram-nos que de sua biblioteca constam milhares de volumes sobre marxismo. E daí?, perguntávamos. Delfim era Delfim, um homem de inteligência extraordinária, mas repudiado por nós por suas posições políticas. Além de tudo, sabíamos do tal “milagre econômico”.... No fundo, ninguém gostava de lê-lo. Vez por outra, batíamos os olhos em seus textos para comentar alguma coisa, como se fôssemos capazes de refutar alguma ponderação sobre economia brasileira.

Serra não nos tocava. Todavia, era sempre bom lê-lo, pois por meio de seus artigos tínhamos claras algumas idéias daqueles que considerávamos "inimigos políticos". Só algum tempo depois é que percebi que considerar adversários políticos como inimigos é sintoma de que o foco da discussão foi deslocado. Entretanto, era o que fazíamos com relativa frequência.

E foi como "inimigos" que ficamos inquietos quando o tucanato flertou com a possibilidade de adesão ao ministério do Collor. Torcíamos para que essa adesão se realizasse. Com ela, poderíamos recrudescer nossas posições políticas e desprezar de vez o que, naquela época, era tido como "centro-esquerda". De outro lado, ao mesmo tempo, imagino que, inconscientemente, tivéssemos a esperança de que os tucanos pudessem contribuir positivamente para o governo Collor. Seria uma maneira sutil de minimizar os prejuízos que o representante da oligarquia de Alagoas andava fazendo com o Brasil.

Logo depois veio o episódio do impeachment e o clima político mudou substancialmente. Toda aquela efervescência encontrou seu ponto de ebulição.

Ainda hoje lembro-me das mesas noturnas com cervejas, fumaças e as discussões sobre o "lado de lá" e o "lado de cá". Ainda hoje lembro-me dos domingos em que ficava na expectativa de ler a análise do Florestan sobre o momento que vivíamos. E que vivêramos.

terça-feira, 23 de junho de 2009

O acordo ortográfico, ainda

Língua brasileira 5: O acordo ortográfico, ainda

Não sei até quando conseguirei resistir às normas do tal acordo ortográfico. Não quero parecer rebelde ao recusá-las. Tampouco gostaria de aceitar tudo de primeira hora, como se concordasse com as inconvenientes mudanças. Jurei que até 2012 permanecerei com as normas antigas.

Lembro-me que em 1993 os rumores sobre um projeto ortográfico para os países lusófonos já existia. À época, havia comentários de toda sorte. Um deles residia no fato de que o acordo atenderia, caso aprovado, ao interesse econômico de algumas editoras e sobrelevaria, ainda mais, a notoriedade do saudoso Antônio Houaiss. É óbvio que essa hipótese era absurda, ao menos no que toca ao filólogo.

Escrevi no verão daquele ano um artigo que foi publicado no jornal de Tambaú. Como o periódico era de parca circulação (em âmbito nacional, bem entendido), tenho a certeza de que o estrago de minhas idéias foi restrito. Para ser franco, nem me lembro exatamente de seu conteúdo. Sei, entretanto, que sustentei alguma contrariedade. Passado tanto tempo e agora já com o acordo quase em vigência, volto ao assunto. O estrago aqui perpetrado também não será grande: a audiência do meu blog é ainda mais restrita do que a circulação do simpático jornal.

Creio que algumas normas são uma aberração pela incapacidade prática de atribuir, àqueles que se comunicam, valores precisos de linguagem e pronúncia. Não discordo que a língua deva ser viva, autêntica e possa mudar. Já me manifestei sobre isso nesse blog. O que me deixa inquieto é suprimir pequenos sinais que fazem muita diferença na hora da leitura.

Hoje, fico imaginando a molecada, no início da alfabetização, escrevendo "estreia" e falando "estrêia"; escrevendo “joia” e falando “jôia”. Muitos escreverão "ideia", mas terão mesmo "idêia". Parafraseando o fantástico crítico Roberto Schwarz, as idéias parecem “estar fora de lugar”. A falta de diferenciação da tônica dessas palavras me deixa inquieto.

Além disso, há outro problema: embora se diga não ser obrigatório, o tal acordo se transformou numa tirania: os jornais, a televisão e os romances recentemente publicados estão adotando as novas regras! Já existem até legendas de filmes estrangeiros com a nova grafia do português.

Parece um complô. Ninguém tem coragem de peitar essa baboseira, ao menos até que ela se formalize e passe a ser exigida de fato?

Salvo engano, o professor Pasquale ficou de resistir. Li, em algum lugar – também salvo engano, fique claro – que não adotaria as novas normas. Fiquei um bom tempo sem ler sua coluna na Folha. Recentemente, apenas para tirar a prova dos nove, dei uma olhada em alguns de seus artigos. E não é que ele já virou a casaca? Teria cedido a injunções editoriais ou se seduzira mesmo pela novidade?

E quanto aos jornalistas e cronistas que todo dia publicam algo? Devem escrever do modo antigo e precisam submeter seus textos a algum revisor contratado especialmente para tirar os acentos e os hífens, agora supérfluos. Penso no Ruy Castro adequando a grafia nova à sua pequena coluna na contracapa do jornal. Penso no Cony, que já se manifestou a respeito do acordo. Com sua simpática ranhetice, deve brigar constantemente com as palavras. Penso no Nelsinho Motta, no Clóvis Rossi....

Só não consigo imaginar o que passava pela cabeça do Luiz Inácio ao assinar o acordo ortográfico.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Gorducho, ainda

Ontem, disseram-me sobre a primeira partida da final da Copa do Brasil:

- O gordo está resfriado. Vai entrar em campo e não vai fazer nada....

Fiquei quieto.

Hoje, depois da vitória, limito-me a colocar um pequeno trecho do artigo de Carolina Araújo e Paulo Galdieri, publicado na Folha de S. Paulo.


Ronaldo supera gripe, brilha na hora agá e decide

Atacante passa jogo apagado, mas dá ao Corinthians folga confortável para segundo jogo da final da Copa do Brasil

Corinthians 2
Internacional 0

CAROLINA ARAÚJO
PAULO GALDIERI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ronaldo estava sumido. Contundido, gripado. Apagado. Mas, na hora agá, no momento da decisão, ele reapareceu.
O camisa 9 marcou aquele que pode ter sido o gol que valerá o título da Copa do Brasil ao Corinthians, maior sonho do clube alvinegro na temporada.
Com um único lance, ele conseguiu ser fundamental mesmo sem ter sido destaque no jogo. Sem fazer uma partida genial, sem apresentar lances extraordinários, sem ser participativo durante todo o confronto, foi, simplesmente, decisivo.
(....)
Até o goleiro Felipe, que parou o ataque do Inter e dividiu o protagonismo da decisão com o camisa 9, deixou os holofotes do jogo de ontem para o colega. "Ele fez mais um e mostrou que é o Fenômeno realmente."

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A humildade do Gorducho

No último post escrevi sobre Ronaldo, o Gorducho. Esqueci-me de apontar o que, depois de sua genialidade, talvez seja seu traço mais característico. Para ser rápido, relembro que, instado a falar sobre seus gols na final do campeonato paulista, ele se saiu com essa (foi mais ou menos assim):

- A equipe fez um bom trabalho e por isso tivemos sucesso. Essa história do meu protagonismo não é importante. Alguém tem que fazer gols e, por acaso, esse alguém sou eu.

Então é isso: por acaso, apenas e tão-somente por acaso, é ele quem faz os gols do Timão.

Dá para acreditar?

sábado, 6 de junho de 2009

Gorducho

"Parábola do homem comum
Roçando o céu
Um
Senhor chapéu
Para delírio das gerais"
(Chico Buarque)

Embora não concorde com a idéia de que futebol não se discute, procuro evitar muita falação sobre o assunto. Já vi brigas sérias por causa de jogos, jogadores, esquemas táticos e apelidos. Sempre há alguém que não consegue manter a isenção necessária ou o bom senso para manter a conversa em níveis civilizados.

Generalizações também são inevitáveis. Fala-se de times e torcedores como se todos representassem uma única opinião, tivessem o mesmo comportamento e significassem a mesma coisa. Assim, difundem-se idéias absolutamente equivocadas como aquelas que atribuem a todo corintiano a pecha da tendência marginal e aos sãopaulinos a preponderância de traços homossexuais masculinos. A estupidez é grande e, acreditem, ainda existe.

Se hoje escrevo sobre futebol, não é para falar do meu time, mas para mencionar algo que está acima dele e de todos os demais. Trata-se da genialidade do velho Ronaldo, o gorducho (como sempre diz a Ivana Arruda Leite em seu blog), que todos diziam ultrapassado e morto na arena do futebol.

Não sou conhecedor de sua trajetória. Acompanhei com entusiasmo sua recuperação após aquela malfadada arrancada que culminou na fratura exposta de seu joelho. Confesso que não acreditava em sua recuperação. Para mim, Ronaldo havia perdido o viço e a força do arranque.

Enganei-me. O gorducho (que ainda não era gordo), se superou. Foi convocado para a Copa de 2002; foi artilheiro, marcou os dois gols da grande final; tornou-se campeão mundial pela segunda vez.

Depois disso, ficou na Europa. Deve ter tido novos problemas e sua carreira se afigurava cada vez mais decadente. Cadê Ronaldo?

Pouco tempo antes de ser contratado pelo Timão, vi uma foto sui generis: barrigudo, cabeludo e com cigarro na mão, Ronaldo dava ares de boemia e sedentarismo. Aquela foto me pareceu a comprovação do fim de sua carreira. Dali para frente nada mais seria possível. Ronaldo viveria das glórias, do dinheiro, da fama e do prestígio já conquistados.

Enganei-me novamente.

Seu retorno se deu pouco a pouco, sem pressa, mas com confiança. O gorducho entrou para jogar poucos minutos, não completara meio jogo. Depois, foi ganhando espaço. Marcou gol no final do segundo tempo, fez dribles memoráveis e foi seguindo. Muita gente ainda desconfiava, mas estava de volta.

Na primeira final do campeonato paulista contra o Santos, Ronaldo nos brindou com sua genialidade. Parou no pé uma bola impossível de ser estancada, grudou-a literalmente em sua perna, como se ali houvesse cola. Rumou para o primeiro gol, num átimo.

O segundo, incontestavelmente um gol de placa, foi uma pintura. Com um drible de rara beleza plástica, arrumou a bola e encobriu o goleiro "num senhor chapéu", como diria o poeta.

O rei, que estava na Vila Belmiro assistindo ao jogo, retirou-se. Disse que aquele foi um gol de Pelé em Copa do Mundo.

No ano que vem, quem sabe....

Em tempo: como não tenho a menor vocação para comentarista esportivo, sugiro a leitura das crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol. São primorosas!

sábado, 23 de maio de 2009

Faz tempo

Faz tempo que não apareço aqui.... Mais de dois meses! Não vou reclamar da falta de tempo. Volto logo, espero!

domingo, 15 de março de 2009

Diálogo bizarro

Sugiro àqueles que não gostam de tomar conhecimento da boçalidade humana que se furtem a ler esse post. Eu mesmo não sei como estou aqui, diante do computador, para relatar o bizarro diálogo que presenciei na terça-feira de carnaval. Se o faço, é por absoluta necessidade de desabafar.

A história é a seguinte. Numa livraria de um shopping (portanto, cara, arrumada, chique e muito limpa) vi um menino de uns quatro anos chorando. Ele estava segurando três livros que encontrara numa das estantes e, por absoluta inocência, queria levá-los para casa. O pai e a mãe tentaram dissuadí-lo do contrário. Fizeram-no com extrema paciência e educação, como geralmente sói acontecer com pais diligentes.

O moleque, contudo, não aceitou as sugestões dadas e abriu o berreiro. Gritou, fez um escândalo terrível, chamou a atenção de todos. Foi uma loucura. Loucura típica de uma criança. Perfeitamente compreensível, admita-se!

Em duas mesas não muito distantes, uma mulher falou para um homem:

- Esse moleque é um bicho!

O sujeito complementou:

- Um animal! O brasileiro não sabe educar seus filhos. É só dar um tapa na boca desse infeliz. O choro acaba na hora.

A mulher foi além, deixando claro que ambos tinham uma filha:

- A fulana nunca fez isso. Nunca deixamos!

O boçal avançou:

- Quer levar os livros embora. O desgraçado já quer consumir!

Sim, repito: ele disse, em tom abjeto, que o desgraçado – no caso, a criança – já queria consumir.

O sangue subiu-me à cabeça e, com controle extremo, decidi sair dali. Ainda revoltado, refleti sobre a última frase do diálogo.

O "desgraçado" já estava disposto a consumir, como se houvesse no mundo algum pecado em fazê-lo. Ou seja, o menino era um "desgraçado" por ter nascido numa sociedade de consumo e por ser incapaz de refrear seus instintos. Como se vê, algo "absolutamente compatível" com a idade do garoto. Talvez o menino devesse ler Adorno, Horkheimer e todos os críticos da Escola de Frankfurt! Pesava-lhe sobre as costas a grande herança do mundo ocidental capitalista.

Perguntei-me quem seriam aquelas pessoas. O que estavam fazendo ali? Comprariam livros? Revistas? Por certo, não. Mas estavam a consumir os produtos da livraria. Liam os livros, como se deles fossem. Uns caras-de-pau!

Por acaso, consumir significa comprar? Quem vai ao shopping e não compra também não consome? Alguém, aliás, faz alguma coisa em shopping senão consumir alguma coisa? Eram, portanto, hipócritas.

A revolta que senti com aquela aberração foi pouco a pouco cedendo o passo e dando vazão a uma fantasia curiosa: os boçais haviam de sofrer uma penalidade. A eles seria impingida uma sanção lesiva às suas idiossincrasias. A pena seria incorpórea, afetando nada além de suas consciências.

Ambos seriam expostos publicamente no centro de um grande palco. Avessos ao consumo da sociedade em que vivem, seriam obrigados a comer um grande e saboroso Big Mac. Vestiriam um boné do Ronald, com o "m" amarelo caindo sobre seus olhos. Intercalariam as mordidas da refeição pecaminosa com diabólicos goles de uma coca-cola gelada, também com o "m" em relevo. Depois, a platéia, já farta de tanto escárnio, os impeliria a tomar uma casquinha da magnífica lanchonete da América.

Vestiriam indumentárias de grife, sempre sob risos vexaminosos. Vestiriam pares de tênis Nike, desses desejados por "crianças desgraçadas". Por fim, seriam obrigados a assistir a um filme hollywoodiano, com Silvester Stalone ou Jean-Claude Van Dame. Não faltaria, é claro, a utilização de um aparelho que nada representa em matéria de consumo moderno: teriam de fazer uma ligação de um I-Phone e se comprazer com ela.

Um bom banho lhes faria bem. Mas isso já não faz parte da fantasia. É uma simples constatação de algum desgraçado que, ao contrário deles, adora consumir higiene.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A rifa e o coelho

Recentemente, ao visitar o blog da Andréa del Fuego (vide link aí do lado), participei de uma rifa do livro da Sabina Azuategui (Calcinha no varal).

Pois é.... não ganhei a obra mas soube como funciona uma rifa. Somente agora notei que o nome sorteado consta de uma aba a ser aberta na própria rifa. A Andréa preencheu os nomes e fotografou a cartela até que ela ficasse cheia. Depois, num passe de mágica, rompeu a tal aba e fotografou o resultado final. Paciência!

O fato de não ter ganho o livro me lembrou das inúmeras vezes que participei de sorteios e rifas. Como minha sorte para essas coisas (apenas para essas coisas!) não é grande, passei a indagar a razão de tantos insucessos. Memória vai, memória vem, recordei-me de uma festa junina, no início da década de oitenta.

Devia ter uns vinte cruzeiros no bolso. Alguém me chamou para ir até a barraca do coelho gastar essa grana toda. Putz! Fui.

Funcionava assim: o coelho ficava preso no centro de um círculo irregular em que se agrupavam pequenas casas numeradas de madeira. Em cima dessas casas, havia uma prenda, ou seja, o prêmio do sortudo! Esse prêmio era o mais diversificado possível: coador de café, caixinha de alfinetes, pares de meias, bolas, sacolas de nylon, etc.

Quando soltassem o coelho ele iria entrar em uma das casas numeradas. O sujeito que tivesse comprado a rifa com o número correspondente da casinha seria o ganhador da prenda.

Alguns minutos de suspense.... Soltaram o coelho. Ele foi para um lado e ameaçou entrar numa casinha. Alguém gritou: "Aí não!". O coitado, já bem assustado, deu ouvidos ao infeliz. Foi para o outro lado, levou outro susto. Parou. De repente, saiu em disparada rumo à casinha de um espremedor de laranjas laranja. Entrou.

O sortudo era eu! Ganhei o espremedor de laranjas laranja. Era o meu número. Eu estava fadado a obter aquele utensílio sui generis. Acho que foi naquele momento que o destino selou minha sorte com sorteios e rifas. Se o coelho não tivesse entrado ali naquele dia, eu teria ganho tantas outras coisas desde então. Talvez tivesse ganho o livro da Sabina.

Ainda hoje, vez por outra, imagino o coelho aproximando-se da casinha do espremedor, olhando fixamente para ela e batendo em retirada.

Coelho filho da puta!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Uma pequena história

Estava casado e procurava um apartamento maior para alugar. Vimos – ela e eu – uma placa de "aluga-se", com o nome e o telefone da imobiliária. Para quem já procurou tanto imóvel e fez tanta mudança como eu, aquilo era somente mais uma aventura. Lá fomos ver o apartamento, cuja chave encontrava-se na portaria do prédio.

- Isso não é um apartamento! É um castelo!

O imóvel era grande, bem maior que o nosso. Estava relativamente bem conservado. Era uma construção antiga, com acabamento também antigo, algo vetusto. A cozinha, revestida por ladrilhos azuis, dava-nos uma certa melancolia, mas, sendo também ampla, não nos preocupou. O banheiro era verde, de cabo a rabo. Parecia banheiro de casa de avó. E por aí vai....

Entrei em contato com o proprietário da imobiliária. Pelo telefone logo entendi que se tratava de um senhor muito cortês, educadíssimo. Não podia tratá-lo, portanto, de modo informal. Com rapidez percebi que nossos diálogos deveriam ter algum rigor na linguagem.

Fui ao centro da cidade para negociar com ele o contrato de aluguel. Quando avistei o prédio comercial, notei que o prédio era velhíssimo, antiguíssimo. Não estranhei, contudo. Entrei no elevador e, aí sim, tomei um susto: havia ascensorista. Era um sujeito com chapéu de guarda que a todos perguntava o destino. Depois, fechava a porta e dava a volta na manivela. Que medo daquilo despencar....

Deparei-me com a sala da imobiliária. Precisa dizer? Era velha, móveis velhos. As cortinas, escuras e um tanto puídas, davam a impressão de que ali residia alguém avesso à luz (um vampiro?). Não seria injusto se dissesse que também senti, ali, algum cheiro de mofo.

Apresentei-me. Ele fez o mesmo, com cordialidade e muita formalidade. Após a conversa, fiquei de voltar com os documentos necessários e os fiadores. Antes mesmo de sair, propôs-se a redigir o contrato. Pediu que esperasse. Sem problemas. Imaginei que tivesse um modelo pronto no computador e que, após simples acréscimo dos dados pessoais, poderia imprimir sem mais delongas.

Ouvi um som inconfundível: o de uma máquina de escrever. Não era possível! Em 1997 os computadores já haviam invadido os estabelecimentos comerciais do Brasil. Quem não tinha um 386 e uma impressora matricial, daquelas que faziam um barulho absurdo?

Aquele senhor não tinha computador, não tinha impressora, tampouco tinha fax. Tinha várias máquinas datilográficas e muitos, muitos papéis carbonos. Foi assim que meu contrato foi impresso: em duas vias, uma original e a outra, cópia por carbono.

Mudança feita, havia chegado o dia de pagar pelo primeiro aluguel. Fui até a imobiliária. Entreguei o cheque e esperei pelo preenchimento rápido do recibo. Lá foi ele apegar-se às suas indeléveis máquinas e papéis carbonos. Essa rotina durou meses....

Um dia, recebi a notícia de que ele se mudaria para "instalações mais modernas". Ufa, já não era sem tempo, pensei! Para onde seria?

- Ao lado de minha casa, respondeu.

Mês seguinte, lá fui pagar o aluguel. Eram modernas, de fato, as instalações: piso de borracha, portas novas, mesas padronizadas, armários para arquivos.... Logo procurei por computadores e impressoras, sinais inequívocos da modernidade da época. Não me surpreendi ao notar que em uma única sala estavam concentradas várias máquinas datilográficas. Era ali que ele iria novamente bater o recibo do meu aluguel. Fez isso com muita calma.

Quando eu já estava com o recibo em mãos, pronto para ir embora, resolveu me contar uma história. A despeito da pressa, não pude me furtar a ouvi-lo, por questão de absoluta educação. No meio da narrativa, minha paciência estava na iminência de se esgotar. Graças a Deus, tocou o telefone! Mas ele continuou a contar a história. O telefone tocou mais uma vez. A história avançava. Mais um toque. Olhei para ele e, ato contínuo, para o telefone. Sugeri, com um meneio de cabeça, que o atendesse. Minha sugestão foi recusada tacitamente. Mais um toque. Ele avançou a narrativa. Mais dois toques e eu já demonstrava afliação. Repentinamente, ele interrompeu a fala, pediu licença para atender ao telefone. Aliviado, concordei. Caminhou lentamente e retirou o gancho do aparelho:

- Alô!

Desligaram.

Veio em minha direção e, um tanto indignado, disse:

- Essa turma de hoje não tem paciência para nada!

Controlei-me absurdamente para não gargalhar. Temi ser inoportuno porque aquela frase, dita daquele modo, era algo sério para ele. Tenho a convicção de que acreditava naquilo, como se toda urgência do universo inexistisse. Durante alguns instantes, refleti se havia algum lugar confortável para ele nesse mundo.

Morrera pouco tempo depois.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Ano Novo - Chico Buarque

Ano Novo
Chico Buarque – 1967

O rei chegou
E já mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos
Hastear bandeiras
E eu que sou menino
Muito obediente
Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano Novo

Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E quem já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano Novo

A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Finja que não está descalça
Dance alguma valsa
Quero ser seu par
E ao meu amigo que não vê mais graça
Todo ano que passa
Só lhe faz chorar
Eu disse:
Homem, tenha seu orgulho
Não faça barulho
O rei não vai gostar

E quem for cego veja de repente
Todo o azul da vida
Quem estiver doente
Saia na corrida
Quem tiver presente
Traga o mais vistoso
Quem tiver juízo
Fique bem ditoso
Quem tiver sorriso
Fique lá na frente
Pois vendo valente
E tão leal seu povo
O rei fica contente
Porque é Ano Novo