sexta-feira, 27 de junho de 2008

João Gilberto e a besta da Camila

A reportagem da Folha (24/06) sobre o show de João Gilberto, no último domingo, no Carnegie Hall, deu mostras de que o gênio continua em plena forma: inovando, criando, arrasando. Também deu para notar que João continua reclamando:

"Desculpe falar uma coisa, tem um ventinho aqui na minha cabeça, me faz um pouco afônico";

"Please, esse ventinho";

"Olha o meu ventinho outra vez, please" (cantalorando).

Quando leio algo sobre sua personalidade excêntrica e mal-humorada, tenciono desconfiar. Assisti a um show dele que, por si só, seria capaz de desmentir, por completo, essa fama antiga.

24 de maio de 1996. João Gilberto faria o segundo show no Centro de Convivência Cultural de Campinas. Eu havia comprado meu ingresso com antecedência. Ganhei até camiseta, com foto e tudo. A expectativa do show era enorme. O que João diria do Centro de Convivência? Reclamaria da acústica? Do som? Do microfone? Não importa. Valeria a pena estar ali, ouvindo-o tocar.

Teatro lotado. Pouco atraso. Imaginei que fosse entrar no palco depois de uma hora. Começou a tocar, a cara meio amarrada. Deu boa noite após a execução da primeira música. Aos poucos, ninguém entendeu, foi se soltando. Passou a fazer comentários entre uma música e outra. Chegou até a contar piada. Ninguém entendeu a razão daquele bom humor. Não se tratava de João Gilberto, aquele que reclama de tudo e vive emburrado? Sim, João Gilberto. Então, tudo aquilo que diziam a seu respeito era invenção da mídia brasileira? Não podia ser... João Gilberto, bem humorado, contando piada?

Bebel entrou no palco. Cantaram uma música juntos. Não me recordo qual era. Depois, João iniciou "Bahia com H". No meio da música estancou. Olhares inviesados. O que aconteceu? Era certo que viriam reclamações. Suspense... Ele parou para falar da letra da música, apenas isso! Dedilhou alguns acordes e recitou os versos da canção. Pediu para que a platéia prestasse atenção na descrição da Bahia.

- É uma graça! É mesmo um cartão postal, como diz a letra – falou animadíssimo enquanto ainda dedilhava alguns acordes.

Para surpresa de todos, João sorria. Bebel também. Tudo era festa. O violão soou novamente. Cantaram juntos. Bebel, àquela altura, já estava séria.

Seria possível? João Gilberto estava ali, interagindo plenamente com a platéia. Reclamações? Poucas, pouquíssimas. Vez por outra batia no microfone com o indicador, falava alguma coisa para um tal de Castor e continuava a tocar. E tocava maravilhosamente, afinadíssimo. Continuava perfeito. Aquele show merecia gravação, para impressão de CD e tudo o mais. Quem sabe um vídeo, justamente para registrar o bom humor do gênio?

Pois o show terminou. Saí rapidamente para fumar e, de esguelha, ouvi uma conversa entre dois rapazes. Não falavam sobre a felicidade do João e tampouco das reclamações feitas. Falavam da Camila, possivelmente uma amiga. Um deles estava inconformado porque a menina havia assistido ao show no dia anterior e dissera que o João cantava muito mal. O outro rapaz vociferou que a tal Camila era uma besta. Quando percebi, os dois olhavam em minha direção, eu a balançar negativamente a cabeça enquanto dava um longo trago no cigarro. De repente, sem nenhuma intimidade, não me contive e disparei:

- A Camila é mesmo uma besta!



sábado, 21 de junho de 2008

Aliandro e a carne rosada da lagosta

Cenas da Literatura II: Aliandro e a carne rosada da lagosta

Mais uma da série "Cenas da literatura". Pois é... Desta vez, vamos de Chico. Não se trata, entretanto, de uma cena, mas da descrição de um personagem. O parágrafo é belíssimo. E ainda tem mané que acha que o Chico devia apenas fazer música! Quanta ignorância! Arre!!!

Quem leu Benjamim deve se lembrar de Aliandro Sgaratti, "o companheiro xifópago do cidadão". Chico descreve sua origem e condição social nos seguintes termos:

" Aliandro anda com os bolsos apinhados de contas, búzios, figas e seu tato custou a discernir as chaves do carro. Sai dirigindo em ziguezague, acompanhando o furgão de seus assessores pelo retrovisor, e um rosário de ossos balança na alça do espelho. Mas nenhum objeto lhe é mais caro do que a pequena opala oval, no centro do medalhão de ouro que leva aconchegado ao peito. Herança da mãe, que se fez incrustar a pedra no umbigo durante a gestação de Aliandro, tendo fé em que daria à luz um filho branco. O pai de Aliandro, preto igual à mãe porém agnóstico, já não gostou de ver o bebê dormindo no berçário, a pele leitosa. E quando os olhos do garoto firmaram sua cor azul-celeste, sumiu no mundo. Burlando as leis da genética desde o nascedouro, Aliandro habilitou-se a desafiar o que mais o destino lhe reservasse. Ele convenceu-se de que, se acatasse as estatísticas, moraria até hoje nas palafitas, estaria tuberculoso, seria semi-analfabeto, ou quem sabe trabalharia na construção civil, freqüentaria o culto, pagaria o dízimo, ou quem sabe lavaria cloacas, teria sete filhos de mãe alcoólatra, e em todo caso jamais conheceria a carne rosada da lagosta, sua consistência de mulher jovem. Se valesse a justiça dos homens, ele sabe que não estaria hoje ao volante de um carro hidramático, que pode pilotar manipulando amuletos. (...) Se Aliandro fosse homem de aguardar a sua vez, nunca se faria lembrar por uma secretária de voz grave que, depois de despachar um infeliz pelo telefone, levanta-se para cumprimentá-lo com os braços cheios de pulseiras, e o introduz nos estúdios de G. Gâmbolo".

(BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 34-35).




segunda-feira, 16 de junho de 2008

Mathieu e o vaso de três mil anos

Cenas da Literatura I: Mathieu e o vaso de três mil anos

Depois de ter falado sobre a cena na qual se encontram Fabiano e o Soldado Amarelo, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, lembrei-me de citar algumas cenas da literatura que jamais poderão cair no esquecimento. Hoje, inicia-se, nesse blog, a série Cenas da Literatura. Não sei se ela terá vida longa, mas vamos lá...

A primeira cena da série foi descrita em um único parágrafo. Trata-se do episódio em que Mathieu Delarue, protagonista de A Idade da Razão, de Sartre, quebra um vaso de 3.000 anos. Isso mesmo: um vaso de três mil anos (agora por extenso). Não vou comentá-la agora. Apenas confesso que, pelas razões de Mathieu, é provável que todos nós um dia tenhamos desejado quebrar um vaso desses...

O tal parágrafo é um pouco extenso. Dou-me ao trabalho de reproduzí-lo na esperança de que alguém realmente o leia. Ei-lo:

"Tinha sete anos. Estava em Pithiviers, na casa de tio Jules, o dentista, sozinho na sala de espera, e brincava de não se deixar existir. Era preciso não tentar não se engolir, como quando a gente conserva sobre a língua um líquido demasiado frio, evitando o pequeno movimento da deglutição que o faria escorrer para a garganta. Conseguira esvaziar completamente a cabeça. Mas esse vazio ainda tinha um gosto. Era um dia de tolices. Vegetava num calor provinciano que cheirava a mosca e eis que tinha pegado uma e lhe arrancara as asas. Verificara que a cabeça se assemelhava a uma cabeça de fósforo, fora buscar a caixa na cozinha e esfregara nela a mosca para ver se acendia. Tudo isso com grande displicência: era uma pífia comédia de vagabundo e ele não conseguia interessar-se por si próprio, sabia muito bem que a mosca não acenderia. Sobre a mesa havia revistas rasgadas e um belo vaso chinês, verde e cinza, com alças como garras de papagaio. O tio lhe dissera que o vaso tinha três mil anos. Mathieu aproximara-se do vaso com as mãos para trás e contemplara-o com inquietude. Era apavorante ser uma bolinha de miolo de pão neste velho mundo ressequido, diante de um vaso impassível de três mil anos. Voltara-lhe as costas e pusera-se a brincar de vesgo e a fungar na frente do espelho sem chegar a distrair-se. E, de repente, ele retornara à mesa, erguera o vaso, que era pesadíssimo, e o jogara no chão. Isso lhe acontecera sem mais aquela e logo depois ele se sentia leve, diáfano. Olhava os cacos de porcelana, maravilhado. Algo acabara de ocorrer com aquele vaso de três mil anos entre os quinquagenários, na luminosidade do verão, algo totalmente irreverente, que se assemelhava a uma manhã. Pensara: 'Eu fiz isso', e se sentiu orgulhoso, livre, sem peias; sem família, sem origem, um pequeno broto obstinado que rompera a crosta terrestre".

(SARTRE, Jean-Paul. A idade da razão: os caminhos da liberdade 1. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 58-59).

Em tempo: para quem não leu, sugiro a leitura do post "Vidas secas, Fabiano e o soldado amarelo", datado de 13.11.2007.

É só... Por ora é só...



sábado, 7 de junho de 2008

Bossa Nova?

Ontem a Folha noticiou que Caetano Veloso e Roberto Carlos subirão ao palco juntos para homenagearem o Maestro Tom Jobim. O show, naturalmente, faz parte das comemorações dos 50 anos da Bossa Nova.

O que Roberto Carlos tem a ver com a Bossa Nova? Nada. Absolutamente nada. Até mesmo a matéria diz que é surpreendente que tenha aceitado o convite "porque ele rompeu com a bossa nova de seu início de carreira após ter sido criticado à época".

Chamar Roberto Carlos para as comemorações da Bossa Nova é o mesmo que convidar Chitãozinho e Xororó para comemorarem a Tropicália. Ou então, convidar Roberto Campos para homenagear as manifestações de Maio de 68. Quem sabe Xuxa na abertura da próxima edição da Flip?

São combinações descabidas... Um despautério!

O fato de Roberto Carlos - cuja obra não conheço - não ter vínculos pretéritos com a Bossa Nova não significa que não possa participar de suas comemorações, em absoluto. É que não consigo imaginá-lo cantando qualquer composição do movimento... Soa estranho, desencontrado...

E não venham me falar que isso é birra minha!

O problema é estético!

Por que não chamaram o Chico, parceiro e amigo íntimo do Maestro? Por que não chamaram o Edu? Por que não chamaram a velha guarda da Bossa Nova?

Cadê o Carlinhos Lyra?

Onde se enfiou João Gilberto?

Arre! Acho que estou azedo!

Por ora é só...


quarta-feira, 4 de junho de 2008

O melhor conto

Como estamos em época de os "10 mais", "as 100 melhores crônicas", "os 100 melhores contos" e etc, resolvi fazer uma única indicação: o melhor conto.

Pois bem, o melhor conto, já escrito até hoje, seja lá quais forem os critérios de apreciação, seja lá qual for o nível de exigência do leitor, é "O peru de Natal", de Mário de Andrade.

O embate entre o narrador-personagem e o vulto de seu pai, já morto, é de uma beleza e comicidade ímpares.

Fica o convite para sua leitura. Creio que em qualquer lugar da rede haja uma cópia legal disponível.

É só... Por ora é só...