terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Naqueles tempos: a liberdade e o filme de Godard

Naqueles tempos: a liberdade e o filme de Godard

- Je, o quê?
- Vous salue Marie!
- Vu salí? Marrí?

Je vous salue, Marie era dificílimo de pronunciar, sobretudo para quem não tinha noção mínima do francês. E o diretor? Godard também era esquisito, não se sabia nem como grafá-lo... 

Após acompanhar a votação do Colégio Eleitoral e a morte de Tancredo, o menino ficou curioso para saber o que aconteceria. Com a assunção de Sarney, ouviu pelos quatro cantos que todos os cidadãos que acreditavam no Brasil deveriam se transformar em fiscais. O congelamento de preços havia sido anunciado e, para garanti-lo, a coletividade precisava mostrar seu empenho. “Tudo pelo social” virou um tema nacional e, também, uma grande chacota.

A inflação vivia época áurea e até mesmo a meninada despolitizada sabia o que era o overnight. Uma incógnita pairava sobre a cabeça de todos. Seu nome era futuro.

Mais que curioso, o menino ficou confuso. Disseram-lhe que o período de exceção havia, ao menos formalmente, chegado ao final. A professora lhe garantiu que a historiografia estabeleceria um novo marco. De 1985 para frente, o Brasil estaria na fase da Nova República. Era a liberdade.

E eis que ouviu no banco do ônibus uma infeliz senhora bradar que deveriam ficar todos presos. Divulgar aquela blasfêmia devia ser pecado. Se a censura era demais, imagine saber que a polícia havia interceptado uma sessão clandestina do filme? A curiosidade do menino aumentou. Para assistir ao longa, teria de esperar mais algum tempo.

Em junho daquele ano, ouviu a voz de Herbert Vianna cantar Selvagem, faixa título do LP recém-lançado. A música trazia uma breve descrição da ordem social brasileira. Tocado a um som reiterado, o riff da guitarra dava a impressão de insistência. Da repetição se criava um ciclo inesgotável formado pela polícia, pelo governo, pela cidade e pelos negros. Cada qual com sua incumbência, apresentava um cenário de horror e imposições.

A história era tão dissimulada quanto seria a Nova República nos anos seguintes. De liberdade, ali não havia nada. Por isso, Herbert entoava: “a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard”.

Anos depois, diante do filme em VHS, o menino compreendeu o comentário da infeliz senhora do ônibus a música do Herbert. O menino era eu, é claro.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A despedida de Rogério Ceni

A despedida de Rogério Ceni

Aconteceu, enfim, a tão adiada (para alguns, odiada) aposentadoria de Rogério Ceni. Despede-se do futebol um mito, um raro caso de perfeita identidade entre jogador, clube e torcida. Futuras gerações o associarão ao São Paulo Futebol Clube com grande facilidade.

É infindável o número de suas vitórias, méritos e prêmios. Não vou enumerá-los, pois isso realmente consumiria tempo e paciência. Quem tiver interesse, que faça bom uso do Wikipédia. Lá, entre estatísticas e rankings, por certo terá a descrição da exitosa trajetória do rapaz. 

Dentre seus méritos está o fato de ter atuado por tanto tempo no São Paulo, recusando propostas de clubes estrangeiros. Fez história no clube, impedindo e marcando gols. Sim, um goleiro que marca gols de faltas e pênaltis.

Também parece não haver dúvidas de que seja um bom sujeito. Alheio a escândalos que geralmente envolvem jogadores de futebol, ele jamais apareceu no noticiário por supostas condutas ilícitas e comportamentos moralmente recusados pela opinião pública.

Mas não é nada disso que pretende focar essas linhas. O Rogério Ceni que agora interessa é outro.

Antes de sua aposentadoria, havia já algum tempo, estava difícil assistir a uma partida da qual participasse o goleiro. Explica-se. 

Por alguma razão que foge ao nosso conhecimento, o jogador que defendia a inércia das redes passou a se arrogar o papel de árbitro de futebol. Pois é, em vez de goleiro, alçou-se, ainda que informalmente, à posição de juiz. O bom moço demonstrou que era pródigo em discussões sobre o destino do jogo. Em tudo opinava, gritava, coçava a cabeça, debatia, vociferava! Manifestava inconformismo com toda e qualquer atitude do árbitro, sobretudo se não fosse favorável ao seu time.

Já cheguei a notar situações em que ele saía da grande área e corria até o outro lado do campo para, sempre de maneira respeitosa (mãos para trás), reivindicar uma postura do juiz. Então, fazia comparações, cobrava dele uma coerência que supunha existir na sua interpretação do jogo. Quando contrariado – o que era frequente! –, voltava para seu lugar, resmungando, sinalizando negativamente com a cabeça, a testa enrugada, o semblante carrancudo.

Em sua concepção, a arbitragem era invariavelmente errada, mesmo quando, diante do momento do pênalti, ele adiantava mais de quatro passos à frente da linha do gol. Talvez se um tira-teima lhe mostrasse sua precipitação, não hesitaria em colocar a culpa no árbitro, argumentando que o apito é que havia chegado atrasado.

Nos últimos anos, assistir a um jogo do São Paulo equivalia a observar um show de lamentações. Era como ver um atleta se movimentar com micagens, cacoetes de insatisfação e ranhetice.

Rogério Ceni poderia ter nos poupado de tudo isso. Seu brilhantismo e a competência com a qual desempenhou seu ofício em campo, poderiam vir acompanhados de um espírito leve e do riso que marca a personalidade de tantos craques como ele.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Mistério no Morro do Deleite




MISTÉRIO NO MORRO DO DELEITE - ROBERTO BARBATO JR
Uma valiosa pintura do modernismo brasileiro é roubada de um milionário, que oferece generosa recompensa por informações que levem à recuperação do quadro. Três jovens jornalistas, Plínio, Giulia e Tonico, dotados da curiosidade própria à profissão, logo percebem que a história contada deixava algumas pontas soltas: por que a obra era tão pouco conhecida? Quem foi aquele pintor, de quem nada mais se conhecia e que tivera uma passagem meteórica no mundo da arte?
Mistério no morro do deleite é uma história de suspense que leva os personagens aos labirintos sociais das fortunas desfeitas, das fraudes fiscais e do tráfico de drogas em uma comunidade urbana. A narrativa ágil de Roberto Barbato Jr. coloca o leitora ao lado dos personagens que procuram com sua investigação localizar as peças que faltam para completar sua história.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Naqueles tempos: a falta do Whats App

Naqueles tempos: a falta do Whats App

Naqueles tempos não tinha celular, e-mail, Facebook, Whats App, nada disso. O contato com ela tinha de ser feito por telefone. Depois de descoberto o número – o que já era uma façanha e tanto –, tínhamos de enfrentar uma batalha: ligar para a casa dela, correndo o risco de sermos surpreendidos por seu pai ou sua mãe. O pai, é claro, sempre atendia com aquela voz grave indicativa de que era macho. Sem graça e educadíssimos, pedíamos o favor de chamar a filha. O sujeito, que não era bobo, nem nada, perguntava sua identidade. Não havia saída: você tinha que dizer o nome. Dependendo da boçalidade dele, telefone no gancho.

Em alguns casos, na cara dura, perguntava: “O que você quer com ela?”. Aquilo era um constrangimento suficiente para suscitar uma resposta simples, mas honesta: “Quero falar com ela”. A reação dele poderia ser, também, o telefone no gancho.

O máximo era quando as meninas tinham uma linha reservada no quarto. Aí, a coisa fluía. O problema é que, naqueles tempos, linha telefônica custava uma bala. Dificilmente, uma menina dessas daria bola pra gente.

Com o passar do tempo, criaram-se alguns recursos para não ter de lidar diretamente com o pai da fulana. O negócio consistia em colocar alguma menina na parada. Assim, se o sujeito perguntasse quem queria falar com a filha, a menina logo diria: é uma amiga dela. Qualquer amiga era digna de confiança.

Eu tinha uma amiga que valia por todas: a Carmem. Ela ligava para a casa da fulana e, em menos de um minuto, estávamos falando ao telefone. Por aí se vê que a Carmem tinha amizade com uma infinidade de meninas. O que não se botava reparo era que ela não tinha voz de menina. Mesmo assim, o negócio dava certo. Podia-se até achar estranho, mas a coisa ia pra frente.

Um dia a fulana veio falar comigo. Quando atendeu, perguntou quem era e eu me identifiquei. “Ué, não era a Carmem?”. Telefone no gancho.

Em algumas situações, a ausência da Carmem era cruel. Sucedeu o seguinte... Uma fulaninha tinha acabado de se apresentar no festival de balé. Terminado o espetáculo, já em casa, liguei para ela. Pretendia fazer um meio de campo. O pai atendeu e, ato contínuo, falou: “Boa noite, Brasil”. Sem saber o que fazer, perguntei: “Boa noite, Brasil?”. E ele, mais entusiasmado, praticamente gritou do outro lado da linha:

- Boa noite, Brasil!

Diante daquela circunstância, quase sem reação, pedi para falar com a filha dele. Totalmente sem graça foi chamá-la sem perguntar de quem se tratava. Imaginou que a chamada era do Flávio Cavalcanti, um apresentador fanfarrão que ligava para a casa de telespectadores e dava prêmios em dinheiro, desde que se atendesse ao chamado com um efusivo “Boa noite, Brasil”.

“Boa noite, Brasil“ é o caralho. Eu lá tinha voz de Flávio Cavalcanti?

Pois é. Com ou sem a Carmem, o clima que antecedia a conversa no telefone era repleto de expectativas, frios na barriga. Havia uma atmosfera de suspense impensável diante das tecnologias de hoje. Todo o tortuoso caminho que se percorria para chegar a um simples contato agora inexiste. O Whats App resolve tudo. E, para ele, nem é preciso responder “Boa noite, Brasil”.

domingo, 17 de maio de 2015

Entre consagrados e normais

Entre consagrados e normais - Roberto Barbato Jr

Depois de alcançar décadas em vigência, a Lei Rouanet continua a propiciar toda sorte de discussões entre artistas, produtores e intelectuais. Recentemente, em entrevista ao jornal Valor Econômico, Francisco Bosco, presidente da Funarte, disse que seu pai, o músico João Bosco, “tem a dignidade moral de nunca ter se inscrito na Rouanet”. A publicação da entrevista ensejou comentários contundentes da articulista Fernanda Torres, (Folha de S. Paulo, “Os indignos”, 01/05) que se opôs frontalmente à sua manifestação acerca dos critérios utilizados para conceder os benefícios da consignada lei.

Em réplica, (Folha de S. Paulo, “Os normais”, 04/05), Bosco afirmou “que o Estado, de modo geral, não deve usar dinheiro público para viabilizar projetos que o mercado já viabiliza”. Dessume-se de suas ponderações que artistas capazes de obter recursos por meio do mercado não deveriam se inscrever na Lei Rouanet. Levado ao limite, seu raciocínio soa exagerado. Não deixa, contudo, de suscitar uma questão visceral da vida brasileira: a quem cabe promover a produção e difusão das manifestações culturais?

Quando das primeiras experiências formais de administração cultural, máxime por ocasião da criação do Departamento de Cultura, dirigido por Mário de Andrade no decênio de 1930, a ideia a nortear a gestão cultural consistia em suprimir o caráter ornamental das manifestações artísticas, em sua maioria havidas como elitistas, e aproximá-las do povo. Tratava-se de elidir o fosso abissal entre a cultura erudita e a cultura popular. Os concertos populares realizados no Teatro Municipal de São Paulo são um exemplo de como era possível franquear o acesso do povo à música erudita. Integrantes de classes subalternadas eram convidados a se imiscuir em um universo cujas portas estavam, até então, inequivocamente fechadas. À época, como inexistissem mecanismos de mercado para promover a cultura, creditava-se tão somente ao Estado essa tarefa. Talvez a primeira empreitada a contar com a iniciativa privada tenha sido a Biblioteca Ambulante. Com o fornecimento da carroceria do carro-biblioteca pela Ford Motor Company Exports Inc a política cultural brasileira passou a visar investimentos privados.

Longo período se passou desde que Mário de Andrade revolucionou a cultura na Pauliceia Desvairada. Com a irrupção da ingerência da iniciativa privada na gestão cultural, o debate sobre o papel do Estado nessa seara assumiu maior relevo. Questiona-se se é legítimo pensar que à esfera estatal incumbe tutelar apenas produções artísticas e culturais que sejam hipossuficientes. Indaga-se se o Estado deve, também, acolher pretensões de artistas que poderiam encontrar respaldo nas teias do mercado brasileiro?

Em um contexto cultural como o nosso, conviria responder a essas questões levando-se em consideração que ainda não se concretizou uma política cultural apta a abarcar as manifestações artísticas de exígua circulação no Brasil. Há, ainda, um vasto potencial de criação que não deixou o estágio do planejamento. Por não contar com apoio do Estado e do mercado, esse potencial distante está de se transformar em cultura propriamente dita. Fala-se muito em criação e difusão da arte por meio de estratégicas midiáticas e pela internet. O que não se evidencia é que existe uma enorme carência de recursos para externar as produções de um Brasil ainda subdesenvolvido, mas absolutamente rico em suas expressões culturais. É difícil atender a essa demanda sem que se recorra ao patrocínio estatal e quase impossível que o mercado se interesse por ela.

De outro lado, é evidente que artistas já renomados – consagrados, indignos ou normais – encontrem maior facilidade de patrocínio para seus projetos. O caminho de quem já obteve o reconhecimento público é mais curto e sujeito a menores riscos financeiros. Nem por isso seria sensato que o Estado recusasse incentivo fiscal àqueles que, pela trajetória construída ao longo de décadas, são “consagrados”. A nenhum título se justificaria, por exemplo, a negativa em patrocinar, por meio da Lei Rouanet, um espetáculo protagonizado por Fernanda Montenegro ou Nathalia Thimberg. Se é certo que ambas têm grande potencial de atração para incremento de seus projetos na iniciativa privada, não é menos correto admitir que vetar suas possibilidades de concretização concorreria para disseminar uma postura antidemocrática, contrária ao que Mário de Andrade intentou lograr.

Entre consagrados e normais, Estado e mercado, há que se buscar o meio termo. E isso nada tem a ver com dignidade moral. É mera questão de sensatez.