sábado, 8 de novembro de 2014

Desilusões com a política

Desilusões com a política

“Dormia a nossa pátria mãe tão distraída,
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações”
(Chico Buarque)

Quando ouvi que a Dilma havia sido reeleita Presidente do Brasil, tal como reza o senso comum, pensei: “cada povo tem o representante que merece”. Depois, vendo os números da apuração, pensei, em tom de pilhéria, que somente metade da população tem o representante que merece. Segundo esse estapafúrdio raciocínio, nossa presidente careceria da legitimidade necessária à assunção do cargo. Naturalmente, tudo isso não passa de brincadeira. Afinal, o processo eleitoral transcorreu sem que indícios razoáveis de fraude tenham sido verificados. Dilma é, portanto, uma representante legítima do povo brasileiro. Por mais quatro anos, salvo se houver alguma intercorrência legal que possa cassá-la, viveremos sob os auspícios dessa senhora.

Que esse fato não me agrade não é novidade. O que talvez seja novidade é maneira pela qual venho pensando a política.

Sempre descrevi aqui mesmo (vide links abaixo) minhas convicções sobre a política. Manifestei votos, pugnei pela necessidade de se promover discussões respeitando a diversidade ideológica e, mais do que tudo, demonstrei minha frontal contrariedade à postura de quem prega os votos nulo e branco.

Num passado não muito distante, costumava a acreditar que os partidos políticos eram instrumentos de transformação social, capazes de organizar a política e administrar o dissenso. Acreditava também que, à exceção da cultura, não haveria outro caminho que não o político para a transformação da sociedade. Defluía daí minha insistência para que se assumisse, mesmo diante de opções eleitorais não satisfatórias, o compromisso do voto. Todos deviam prestigiar o instituto da representatividade política.

Não foram poucas as vezes em que me insurgi contra opiniões que derivavam do senso comum. “Cada povo tem o representante que merece”, “políticos são todos farinha do mesmo saco”, “Os políticos usam dos partidos para obter vantagens pessoais” e “Não há político que preste, todos são bandidos” foram máximas que rechacei de pronto, convicto de que havia alguns vocacionados e dispostos a atingir o objetivo da política, o bem comum.

Devo confessar que grande parte das minhas convicções eram sustentadas pela práxis de um partido político que honrava seu discurso. Tratava-se de um partido que lutava pela ética na política, que não fazia acordos com meras intenções eleitoreiras e que chegava até mesmo a recusar alianças consideradas espúrias em nome da coerência com sua plataforma ideológica.

A um rapaz que participaria da primeira eleição direta depois dos longos anos do regime de exceção era extremamente sedutora a ideia de que aquele partido poderia romper, em alguma medida, com as práticas fisiológicas, com o nepotismo que sangrava a máquina pública, com o costume do caudilho, com um passado abominável, enfim. No voto da eleição de 1989 depositei muita esperança, sobretudo porque era preciso combater o adversário, àquela altura dos acontecimentos um lídimo representante de todas as práticas nefastas acima aludidas.

Nas eleições subsequentes, já com muitas ressalvas, ainda houve esperança. O discurso continuava sedutor. As metas eram explícitas e ditas com todas as letras: minar a hiperinflação, minimizar as disparidades sociais, proporcionar condições dignas à massa de brasileiros que vivia abaixo da pobreza, erradicar o analfabetismo e distribuir a renda!

O Brasil, diziam, precisava crescer por si só, “jamais dando o peixe, mas ensinando o povo a pescar”. Reproduzia-se essa máxima à larga. O assistencialismo era quase um palavrão, uma afronta ao rigoroso – quase inexorável – estratagema ideológico de desenvolvimento social. Com invejável habilidade, o líder máximo dessa agremiação política convenceu muita gente.

E tinha mais: seus asseclas enchiam a boca para dizer que aquele era o único partido ético, alheio às práticas obscuras da política tradicional, da velhacaria que se praticava amiúde no país. Pugnava-se pela fidelidade partidária, pela coerência ideológica das alianças eleitorais. Em tudo o partido era digno de elogios.

Veio, finalmente, o poder. A esperança venceu o medo, disseram. E, então, começou o pesadelo. O cumprimento das promessas anteriormente jogadas à população se mostrou inviável. O governo do sempre ético Partido dos Trabalhadores ficou refém da política econômica tão criticada por ele mesmo. Aos poucos, o partido mostrou-se contaminado por um sem-número de atitudes suspeitas.

Evidentemente, já estava em curso um discreto processo de aparelhamento do Estado brasileiro. Nas gestões dos executivos municipais não se deixou de verificar o velho nepotismo, outrora acidamente criticado pelo partido. A hipocrisia do discurso era patética. No âmbito federal, alguma coisa acontecia sem que Luiz Inácio “soubesse de nada”.

O “mensalão“ rompeu qualquer dúvida à época existente sobre a idoneidade de muitos políticos do Partido dos Trabalhadores. Rompeu, também, com a aura da pureza e da honestidade que, pensava-se, pertencia a poucos. Caiu por terra a crença de que aquele era um partido afeiçoado à ética na política. Luiz Inácio continuou a reivindicar o monopólio da moralidade pública. Com inenarrável desfaçatez afirmou: “Ninguém neste país tem mais autoridade moral e ética do que nosso partido. Admitimos que tem gente igual a nós, mas não admitimos que tenha melhor”. Quem não conseguiu rir, certamente foi capaz de chorar.

O julgamento da ação penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal não deixou dúvidas sobre a ilicitude das atividades desempenhadas por líderes do Partido dos Trabalhadores, alguns dos quais sempre se orgulharam por terem lutado pela democratização do Brasil. Eles, que supostamente tanto fizeram por uma sociedade democrática, foram condenados por ajudá-la a se corromper. Quanta ironia!

O maior esquema de corrupção praticado no Brasil não foi uma fantasia como querem muitos petistas. Sua apreciação pelo Poder Judiciário não demonstrou a existência de nenhum tribunal de exceção. É muito difícil convencer os donos da verdade sobre a impessoalidade das normas jurídicas. Para eles sempre haverá uma exceção. Eles são a exceção. Por isso, a regra jamais poderá ser aplicada em relação a eles.
                                          
Vivenciando todo esse cenário, somente um insensível não seria capaz de repensar suas convicções. Pois eu, agora, não me tornei adepto das máximas do senso comum. Não entendo que políticos sejam, todos, iguais e inescrupulosos. Mas não posso deixar de afirmar que já não me importo mais com a escolha de uma plataforma partidária e tampouco julgo um político pelo partido ao qual ele está vinculado.

Fidelidade partidária e coerência ideológica não fazem mais parte dos critérios que utilizo para escolher algum representante. Continuo acreditando – não sei por quanto tempo – que os votos nulo e branco não devem ser utilizados. Insisto na necessidade de uma escolha, ainda que ela não nos satisfaça plenamente.

De forma talvez corajosa – ou ingênua! – sigo acreditando que há políticos interessados em transformar a sociedade em que vivemos. Ainda há aqueles que “vivem para a política” e não “vivem da política”, como diria Weber.

Embora desiludido, continuo confiante. 



Links relacionados: 








quarta-feira, 30 de julho de 2014

Copa do Mundo de 2014: teorias da conspiração.


O sucesso de divulgação das teorias da conspiração depende menos da plausibilidade de seus postulados do que da convicção daqueles que a professam. Não se tenha dúvidas: é fundamental afirmar categoricamente, insistir no argumento e nunca – nunca mesmo! – recuar. Não importa se a teoria é débil, se existem elos frágeis a compor sua sustentação. Tudo se resolve com a intensidade da crença. Em uma palavra, é preciso ter fé e passá-la adiante.

O que aconteceu com a Copa do Mundo de 2014 não foge à lógica do que ora se alega. Muitos foram os comentários acerca de compra do resultado pelo Brasil. Estamos diante da “teoria da compra da Copa”. A ideia é simples: depois de ter conseguido sediar a Copa em terras nacionais, nossos dirigentes teriam tramado, nas conjuras do futebol internacional, o acordo que daria a taça à seleção brasileira. A trama, evidentemente, incluiria a disposição de alguma cifra milionária. O dinheiro, entretanto, justificaria uma série de benesses para o programa eleitoreiro em curso. Trocando em miúdos, a nossa presidente e seus asseclas, poderiam garantir sua estada no poder a partir do suposto êxito da seleção canarinho.

O espetáculo começou e os defensores dessa teoria se viram cada vez mais convictos e donos da razão. O Brasil estreou ganhando. Contra a Croácia fez 3 a 1. Depois, para que não houvesse desconfiança alguma, resolvera empatar com o México, por zero a zero. Era um abalo planejado e necessário. Conforme os defensores da teoria, a compra da Copa implicava expedientes discretos, daí a necessidade de, ao menos, um empate. Veio, então, o embate com Camarões. Nesse jogo a vitória brasileira teria de acontecer. Do contrário, também haveria desconfiança. 4 a 1 era um placar razoável (leia-se: comprado).

Quartas de final. Felipão alardeou que a vitória não seria fácil e vociferou que o Chile é um grande time. O Brasil teve de disputar a vaga nos pênaltis. Até aqui, tudo como previsto. A próspera seleção campeã ia avançando em consonância com o programa da compra. O próximo adversário era a Colômbia. O Brasil teria de ser moderado. Dois gols no vizinho sul-americano eram suficientes e, para manter o expediente insuspeito, seria bom tomar um gol.
Enfim, era a vez de enfrentarmos a Alemanha. Os baluartes da teoria continuaram fiéis. Até mesmo pela terra de Hegel o Brasil passaria, ainda que tivesse de recorrer novamente aos pênaltis. Se isso acontecesse, não haveria preocupação. Jogadores e goleiro do time germânico já estariam avisados de que teriam de errar. Não foi o que aconteceu. Por motivos que até hoje ninguém sabe quais são, o Brasil foi vítima do tal “apagão”, a maior goleada da história de todas as Copas do Mundo. Uma humilhação  com direito a discursos populistas dos jogadores mais carismáticos.

Pronto! A teoria da compra da Copa do Mundo não havia sido comprovada. Não resistira aos vaticínios feitos. Para que não cedessem totalmente, seus defensores lançaram mão da “teoria da compra parcial da Copa do Mundo”. De acordo com seus pressupostos, o Brasil não poderia, de fato, ter comprado a Copa. Mas não deixaria de garantir um honroso terceiro lugar. As “vozes da razão” foram mais cautelosas: um terceiro lugar se ajustava aos anseios eleitorais daqueles que estão no poder.

O Brasil perdeu da Holanda por três a zero, resultado que fez qualquer brasileiro lembrar a fatídica derrota para a França na final de 1998. Aliás, faça-se parênteses para lembrar que, também naquela Copa, houve teorias da conspiração, sendo, todavia, a França a adquirente do título (a suposta adquirente de má-fé). 

Nem mesmo o terceiro lugar pôde dar lastro à viabilidade da teoria tão propagada nesta Copa. Aqueles que juraram de pés juntos que o Brasil seria campeão tiveram de se conformar que difundiram uma ideia tão inviável quanto estúpida.

Não é só.

Como o brasileiro é inventivo – e sobre isso ninguém ousa discordar –, surgiu recentemente a “teoria da venda da Copa”. Segundo ela, o Brasil teria vendido a Copa do Mundo. Entenda-se.

Tendo comprado a Copa de 2014 – ou seja, o título –, o Brasil resolveu vendê-lo. Qual seria o propósito da negociação? A resposta é simples: sediar a Copa do Mundo de 2022. Vamos à descrição sumária desse sofisticado esquema teórico.

O Brasil deveria avançar o suficiente para se fazer crer que teria condições de ser campeão. No entanto, após o ingresso nas quartas de final teria que abdicar do sonho da taça. Assim, a coluna fraturada de Neymar foi meticulosamente combinada. Zuniga teria recebido orientações – e quiçá dinheiro – para colidir de maneira não responsável com a coluna do craque brasileiro. Neymar também teria recebido seu quinhão para chorar de dor e sair de campo. O executor do plano (não se confunda o papel de Felipão com os mentores intelectuais do esquema) a tudo endossaria. Fred e Hulk também estariam no centro das ações. Pouco talentosos, não seria difícil permanecerem inertes ou desastrados em campo. Dante teria descoberto a falcatrua e mostrara interesse em denunciar a todos. Entretanto, conforme a fantástica teoria, fora ameaçado antes que pudesse fazer alguma coisa. Optara pelo silêncio.

O tal “apagão” ocorreu, portanto, em decorrência de um planejamento traçado pelos beneficiários da teoria da venda da Copa. Como se percebe, o investimento foi grande e só produzirá seus frutos em oito anos.

O importante, agora, é propalar a teoria de modo enfático: em 2022 o Brasil voltará a sediar o maior espetáculo futebolístico do mundo.

O que eu penso disso tudo? Estou com Cony: "Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito".



sexta-feira, 23 de maio de 2014

Conversa 2

Conversa 2

O filme ainda está em negociação. Mesmo assim, resolvi puxar papo.
- Escuta. E os mistérios?
Ele imaginou que eu estivesse a falar dos mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos, luminosos... Ficou feliz. Sentiu que, pela primeira vez, poderia ter uma boa conversa comigo. Fui logo me explicando.
- Tô falando dos mistérios da vida. Aquelas coisas que eu nunca soube como aconteceram.
- O quê, por exemplo?
- Como foi o acidente que matou o Dr. Ulisses.
- Qual é a dúvida?
- O Senhor pergunta “qual é a dúvida”? O Brasil inteiro desconfiou que aquilo não foi acidente, que foi uma armação de um político muito....
- Veja lá o que você vai dizer – Ele me alertou.
- Pois, então. O Senhor sabe. Foi mesmo acidente? Ulisses e Severo Gomes. O Senhor entende, né?
- Entendo. Claro...
- E a renúncia do Collor?
- O que é que tem?
- Como “o que é que tem”?
- O que aconteceu na noite anterior à renúncia? Ninguém entendeu. Pegou todo mundo de surpresa.
- Ele não podia renunciar? – a ironia Dele me afligia.
- Podia, claro. Mas, o Senhor concorda que aquilo foi, no mínimo, inusual, né?
- Uhmmm.
- E aquele meu amigo?
- Qual?
- Aquele que morreu num acidente de carro. A gente era moleque ainda. O Senhor lembra?
- Tenho ótima memória.
- Então, o que aconteceu? Disseram que ele estava num bar e se levantou dizendo que alguém o havia chamado. Foi o Senhor?
- Eu?
- É. O Senhor!
- Ele recebeu alguma ligação no celular?
- Não, é óbvio que não. Naquela época nem tinha celular, o Senhor sabe. Uma pessoa que estava com ele afirmou que, de repente, a mesa ficou quieta. Antes de sair e sofrer o acidente, ele se levantou e disse: “Alguém está me chamando”. Era o Senhor?
- Você viu isso ou te contaram?
- Me contaram, já falei. Eu estava meio distante dele e naquela noite não havíamos saído juntos.
Percebi que Ele estava se esquivando da resposta. Ou, então, não queria assumir a responsabilidade.
Arrisquei mais uma:
- E o Rubens Paiva?
- O pai ou o filho?
- O pai. Onde é que estão os ossos dele? Onde enterraram?
- Você sempre foi muito curioso – Ele me disse.
- O Senhor pode estar enganado.
- Eu nunca me engano.
Olhei para frente e vi duas portas se abrindo. Isso mesmo: a sessão iria começar.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conversa

Conversa
(Narrativa do diálogo que se seguiu a qualquer uma das opções)

Pronto: morri. Não importa como.
Olhei para Ele e fui logo perguntando:
- E o meu filme?
 - Que filme?
- Aquele que todo mundo vê quando morre.
Ele não entendeu. Olhou para mim meio desconfiado.
- Filme?
- É, filme. O filme da minha vida, com cada momento, desde o meu nascimento até a morte.
Ele ficou impassível. Sabia que eu ficaria irritado.
- Vamos lá. Vou ser claro com o Senhor. Eu morri e tenho direito a rever minha vida. Quero ver como eu era quando criança. O senhor sabe: até os cinco anos, a gente não guarda nada na memória. Imaginei que ao morrer pudesse me ver com as fraldas sujas, mijado, cagado...
- Sei.
- E mesmo depois. Também quero relembrar o que já sei. Sentir de novo algumas sensações. A primeira paixão, o primeiro beijo, o desespero naquela tarde de dezembro.
- Você supõe que alguém tenha filmado tudo isso?
Inconformado, e numa clara demonstração de arrogância, alteei a voz com Ele:
- Mas é claro! Se da vida não restar ao menos um filme, não valeu nada.
Ele só meneava a cabeça.
- Eu tenho direito a uma diversão! Ou será que a vida era só aquilo?
- Aquilo?
- É. Aquilo. Aquilo mesmo que o Senhor sabe. Aliás, o Senhor sabe do que eu estou falando: trabalho, família, restrições, concessões, infortúnios. E alguma alegria, é bem verdade.
Àquela altura da conversa, meu tom não era amistoso. Pensei até que Ele pudesse lançar um “Você sabe com quem está falando?”. Mas, não. Ele jamais agiria assim.
Sempre ouvi dizer que a negociação é o melhor caminho. Meu professor de Ciência Política dizia que a gente deve negociar, mesmo que seja com um pau na mão. Evidentemente, com Ele não adiantaria nem a negociação, nem o pau.
Ele continuou quieto, me observando.
- E então? Vai rolar a sessão?
- O filme? Você quer dizer “o filme”?
- Isso. O filme. Tem projeção digital, som double, tela grande?
Ele é realmente generoso. Deu uma risada serena e disse que pensaria no assunto.

(continua)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Nós, elas e eles

Nós, elas e eles

Para Fernanda Grota D’Agostino

Nossas cabeças fervilhavam. Vestibular à vista, amores sufocados, inquietações sobre sentimentos e, com frequência, conversas sobre as indefinições do futuro. Geralmente era na sala da casa dela que ficávamos, sentados em duas poltronas mediadas pelo aparelho de som. A música era baixa e a conversa também, como se estivéssemos fazendo confidências. Até eram segredos, mas ninguém teria interesse em ouvi-los.

Quando chegava o inverno, quase tudo era motivo de conversa. Vem prá cá, eu faço um cappuccino. Agora? Claro. Cê tá ocupado? Não, tava tocando guitarra. Podia ser a qualquer hora. Morávamos perto e naquela época não tinha essa história de cuidados com a segurança noturna. O problema era enfrentar o frio. Contudo, eu tinha uma fiel jaqueta e umas camisas de flanela que só Deus sabe o quanto eram queridas.

Em época de provas, corríamos à casa de alguém, a pretexto de estudar. Vez por outra, rolava um som, uma TV Pirata ou mesmo um filme que tivesse disponível nas velhas VHS. Voltávamos a pé, abraçados ou de mãos dadas. No caminho, a discussão não era, em si, a prova do dia seguinte e tampouco o interesse que a matéria poderia despertar. O que estava em pauta eram nossos dilemas sentimentais. Revezávamos o tempo para falarmos dela e dele. E, se porventura, um de nós se excedia, não havia incompreensão. Ao final, desculpávamo-nos e garantíamos que ele ou ela seria o assunto do dia seguinte. Eu a deixava em casa e ia embora.

É verdade. Ela e ele, ou elas e eles, sempre suspeitaram que entre nós houvesse alguma coisa. Não se justificava tanto tempo juntos, tanta conversa e cumplicidade que transcendessem a amizade. Abraçados ou de mãos dadas, convenhamos, soava inequívoco sermos um casal apaixonado. É provável que tenhamos constituído até motivos de apostas alheias.

Seguimos juntos até que chegasse o temido vestibular. Então, aos poucos, cada um tomou um rumo e alguns daqueles dilemas antigos perderam importância. Cada qual se encontrou e o nosso afastamento se tornou uma realidade. Se tivesse de apostar em alguma razão para isso ter acontecido, jogaria tudo na minha incapacidade de desprendimento, no meu estúpido egoísmo e naquela acomodação que o tempo vai tornando cada vez mais forte e triste.

Ainda nos falamos. Eventualmente e com muita saudade.

sábado, 29 de março de 2014

Até que ele morra

Até que ele morra

Era ainda menino e já havia tomado consciência da injustiça do mundo. Um tio materno impingiu-lhe uma lavagem cerebral, creditando todo o mal da humanidade às vísceras do capitalismo. Apoiou-se num daqueles credos socialistas que professavam a socialização de tudo, até mesmo dos mimos familiares. Desde então, não hesitava em pensar que seus brinquedos e roupas deveriam ter o destino inevitável das chamadas classes subalternas. Como o tio era exagerado, falava em lumpemproletariado. O moleque morria de pena. Pois é, o raciocínio era simplista, mas funcionava. Privava-se do pouco que lhe ofereciam, era realmente pródigo em doações.

Ainda imberbe, foi cooptado pelo Partidão. Disseram-lhe que o mundo se dividia entre os filiados e os demais seres humanos, órfãos da dignidade partidária. Fez política estudantil no segundo grau e na faculdade. Sua militância era fervorosa: participava de congressos e discussões, acampava com a pastoral, participava de distribuição de merenda e o escambau. Lia tudo quanto podia. Marx, Engels, Lenin, Gramsci e Rosa eram citados com familiaridade ímpar, de dar inveja aos mais tradicionais quadros do Partidão e aos intelectuais de carreira.

Vinte anos depois, estava casado, era pai e tinha emprego fixo sem nenhuma ligação política. Pouco a pouco, foi se tornando amargo, descrente. Já não queria saber de laços partidários, não falava com companheiros da antiga militância. Queria apagar o passado, a cerveja quente das reuniões com pretextos socialistas, a fiscalização ideológica e a repreensão aos quadros pelegos da política. Agora, tudo lhe parecia produto de dissabores, de uma história sem sentido. Mas, no fundo...

No fundo, em algum recôndito intocável e quase invisível, ainda sonhava com a economia planificada, a ordem social igualitária. Ao tomar conhecimento do ataque ao World Trade Center, deu um risinho de esguelha. A tal convulsão social mencionada pelo velho barbudo no Prefácio para Crítica da Economia Política (ele sabia até a página da edição) irromperia no centro do capitalismo. Teria chegado a hora? Enfim, os proletários de todo o mundo iriam se unir. Bin Laden? Fundamentalismo? Ora, aquilo não existia. O ataque foi produto de algum gênio do Kremlim. “A revolução! A revolução!”, sussurrava para si enquanto ouvia mentalmente os acordes iniciais da Internacional Socialista.

Quando anunciaram a nova crise das bolsas de investimento, teve o último sopro de esperança. Wall Street seria o sinônimo da ruída tão aguardada. Qual o quê!

Hoje, o mundo continua injusto e ele, já conformado, sabe que isso não vai mudar. Pelo menos, até que ele morra.




sábado, 11 de janeiro de 2014

Naqueles tempos: 1992 e os caras-pintadas

Naqueles tempos: 1992 e os caras-pintadas

Tal como os escritores modernistas, creio que os caras-pintadas não tinham muita consciência do que faziam. É claro que o momento político incitava a todos os jovens a protestar, exprimir seus pontos de vista e discutir em rodas de bar as razões da iminente derrota de Collor. A despeito de uma parcela realmente interessada no debate político, havia uma turma que se comprazia em aproveitar a movimentação para, digamos assim, escoar alguns excessos da juventude. Correndo o risco do exagero e de certo conservadorismo, poder-se-ia dizer que os caras-pintadas eram, em sua maioria, uma turma de oba-oba! Uns inconscientes, como diriam os modernistas.

Não foram poucas as passeatas de protesto a favor do impeachment. Em cada cidade havia uma, desde que, é claro, nela houvesse alguma turbulência política. Vi a passeata de Araraquara, em 1992. Não tinha o entusiasmo necessário para engrossar as filas da rebeldia política, mas acompanhei da calçada, juntamente com alguns amigos mais contidos, como eu.

Até mesmo pré-adolescentes e adolescentes estavam por lá. Era interessante ver aquela gente tão nova já participando da política, da definição do destino de um presidente que, após longo tempo de eleições indiretas, havia vencido o pleito eleitoral. Muitos deles diziam que tinham opinião e queriam-na respeitada. Bradavam pela transparência, pela ética, pela democracia e pela moralidade na política. Em suma, levantavam as bandeiras que o então maior partido da oposição (PT) defendia. Às vésperas do século XXI, a puberdade passou a incluir entre seus atributos uma sólida consciência política. Era de admirar!

A respeito do assunto, há algum tempo, Mariana Ximenes, atriz global, deu uma entrevista no quadro Minha Adolescência, do programa Altas Horas, dizendo que se lembrava do impeachment, que saiu às ruas, etc: “Me lembro do impeachment. Me lembro forte. A gente saía na rua. Foi uma época muito marcante. Tirar um presidente...”. Em 1992, a atriz tinha 11 aninhos e já era imbuída de consciência política. Como ela, deve ter havido tantas outras jovens “conscientes”...

Quando olho para trás, fico curioso: gostaria de saber o que aqueles jovens tão engajados pensam do momento atual, como interpretaram a ascensão de Lula e a prisão dos chamados mensaleiros. Também me pergunto se chegaram a redefinir suas noções de respeito à coisa pública, lisura, ética, democracia...

Será que, hoje, eles também têm alguma opinião?

Em tempo: o link para a citada entrevista de Mariana Ximenes (http://www.youtube.com/watch?v=VQOfPF1ZQUMfoi retirado do Youtube com a seguinte justificativa: "A conta do Youtube associada a este vídeo foi encerrada devido a várias notificações de terceiros sobre a violação de direitos autorais.