domingo, 14 de março de 2010

Intelectuais ou vagabundos?

Não tenho dúvidas de que existe, mesmo para os mais esclarecidos, um grande preconceito em relação ao trabalho intelectual. Aqueles que têm de seguir horários rigidamente, imaginam que o intelectual não trabalha e tem uma vida tranquila. Há, aí, uma equívoca analogia com os boêmios. Não se consegue entender que, tirante a exigência dos horários rígidos, o intelectual também trabalha. E muito.

Durante algum tempo da minha vida – época em que me dedicava apenas e tão-somente à atividade intelectual – estabeleci uma rotina de trabalho que a muitos soaria como vagabundagem ou boemia. Iniciava meu estudo (trabalho) por volta das onze horas da noite e ia dormir após as quatro ou cinco horas da manhã, encharcado de café e cigarro. Acordava na hora do almoço. À tarde ia para a universidade fazer pesquisas, pegar livros, conversar com professores, etc. Enfim, tinha uma vida muito peculiar e distante da maioria das pessoas.

No prédio em que morava, era tido como um legítimo vagabundo. Era o sujeito que não dormia de madrugada (todos sabiam porque eu fornecia o café do porteiro noturno) e acordava na hora do almoço.

A faxineira do prédio – casualmente filha do porteiro – devia saber disso. Um dia, chamei-a para fazer faxina em casa. Combinamos que ela iniciaria o trabalho na hora do almoço, ou seja, justamente no momento em que eu acordaria. Ocorreu que, naquele dia, houve um contratempo e ela preferiu antecipar o início da faxina.

Às dez horas da manhã, tocou a campainha do meu apartamento. Não atendi, pois dormia pesado. Novo toque.... um, dois, três, quatro.... A faxineira, já enfurecida, começou a tocar a campainha como uma doida.

Acordei assustado e corri para abrir a porta. Quando olhei para a cara dela, ouvi:

- Cê dorrrrrme, hein!

Após passar o café para garantir que eu ficaria em pé, sentei-me no sofá. Ela, então, me perguntou sobre meus horários, modos de vida e a razão pela qual eu "dormia tanto". Expliquei-lhe que meus horários eram distintos dos dela, mas que eu não passava a noite em festa, e sim trabalhando. Creio que mesmo após a explicação clara, ela não entendeu, mesmo tendo um pai que trabalhava à noite.

O barbeiro que cortava o meu cabelo naquela época também tinha alguma dificuldade para entender minha atividade. Não compreendia que meu estudo era uma espécie de trabalho remunerado. Eu bem que expliquei, mas de nada adiantou. Toda vez que eu ia lá, ele perguntava:

- Mas, afinal, você estuda ou trabalha?

Para terminar os exemplos que justificam o preconceito contra o trabalho intelectual, vejam a seguinte história.

Uma professora da Unicamp entrava em seu escritório residencial pela manhã, trancava a porta e passava o dia produzindo, parando apenas para almoçar. Ao final da tarde, saía do escritório e desabafava o quanto estava cansada. O dia de leituras, pesquisas e escritas sempre lhe custava caro, o que é absolutamente natural.

Um dia, à socapa, ouviu um comentário de sua doméstica para a faxineira que ali estava:

- A minha patroa é uma come-dorme. Não faz nada o dia inteiro. Entra nesse escritório e fica lá sentada. No final da tarde, ainda tem a cara de pau de dizer que está cansada. Ê vida boa!

Alguém conseguiria explicar? Não dá....

sábado, 6 de março de 2010

Caetano: é melhor ouvi-lo cantar!

Há tempos a obra de Caetano não me desperta interesse. Não tenho acompanhado seus discos autorais desde Livro (1999). Também não me interessei por Coração Vagabundo, documentário sobre o próprio Caetano. Todavia, como estava disponível na locadora um exemplar do DVD, resolvi assisti-lo em plena segunda-feira de carnaval.

Não sei qual é o juízo da crítica sobre o documentário. Nem procurei pela opinião especializada. Apenas assisti. Nada mais.

Os monólogos não surpreendem. Trata-se de Caetano falando da importância de ter sido criado em Santo Amaro da Purificação e ter ido para São Paulo após os 18 anos. Os temas que sempre o inquietaram estão lá, vivos: a música brasileira, a pujança do tropicalismo, o etnocentrismo, cidades para se morar (ele confessa que nunca pensou em morar fora, mas, se tivesse que fazê-lo, moraria em Nova Iorque ou Madri).

O ponto alto desses monólogos é a menção ao surgimento de Sampa. Segundo ele, a música surgiu porque lhe pediram um depoimento sobre São Paulo. Ele deveria gravar um programa de TV no qual esse depoimento seria veiculado. De um dia para o outro, surgiu a música. Simples! Uma das obras primas da música (e da literatura) brasileira saiu assim, rapidamente, de um dia para outro....

O documentário em si não é lá animador. Entendo mesmo que seja pobre, insosso. Ocorre, todavia, que é acompanhado de um outro DVD. E é nele que está a graça.

Nesse segundo DVD está registrado um show que Caetano deu no Bar Baretto por ocasião do registro do CD A Foreign Sound. Nos bastidores, de modo descompromissado, revela que o ingresso para o show custou R$ 500,00 e que esse preço só poderia ser cobrado em São Paulo. O telespectador, porventura incrédulo quanto ao preço, logo fica satisfeito ao ser informado de que o cachê do mano Caetano foi doado para algum hospital. Cuidava-se, portanto, de show caríssimo, mas benemérito.

A apresentação é aberta com Não tem tradução, de Noel. A música, naturalmente, não faz parte do CD, mas, para Caetano, isso não faz diferença. Cole Porter é representado por duas fantásticas interpretações: So in love e Love for sale. Esta última é cantada sem nenhum acompanhamento. Kurt Cobain também está em seu show.

Poucos seriam capazes de fazer as combinações que Caetano fez sem deixar o show incoerente. Os músicos que o acompanham são de primeira linha (Jorge Helder e Moreno Veloso estão lá) e a produção é preciosa.

Enfim, quem não quiser ouvir Caetano falar em Coração Vagabundo, poderá ouvi-lo cantar. Valerá mais a pena.