terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Em tempos sombrios....

Em tempos sombrios qualquer atitude, por mais boba que seja, pode significar algo suspeito. É com base nessa suspeição quase paranóica que a ditadura militar brasileira, nos idos dos anos 1960-1970, incorreu numa série de lamentáveis equívocos. É sabido que muitos funcionários do aparato repressivo do Estado não eram bem preparados para executar as incumbências dadas por seus chefes. Eram meros autômatos, destituídos de inteligência própria. Lembro-me de uma reportagem da Folha de S. Paulo que versava sobre a incapacidade técnica (leia-se: burrice) desses funcionários.

Um dos capítulos da série Anos Rebeldes, veiculada pela Rede Globo em 1992, "revelou" (não se sabe se o fato aconteceu) que um estúpido meganha do governo foi capaz de apreender um exemplar do livro A capital, de Eça de Queiroz. Por certo, o imbecil acreditava tratar-se de leitura subversiva. É óbvio que confundira o livro do escritor lusitano com O capital, de Karl Marx.

Um equívoco curioso também aconteceu numa faculdade pública de engenharia.

Em 1970, quando chegara para aplicar a prova de sua disciplina, o professor se deparou com uma discussão. Seus alunos estavam divididos entre fazer ou não fazer a avaliação. Alguns queriam prazo maior para estudar. Outros, se pudessem, fariam a prova naquele mesmo dia. O debate foi longe e os ânimos se acirraram. Enfim, decidiu-se que a avaliação seria adiada.

Sem imaginar que, em poucos minutos, aquele fato seria noticiado por todo o campus, o professor voltou para seu departamento. Lá chegando foi informado de que o diretor da faculdade, à época um militar, queria lhe falar. Surpreso, compareceu à sala do sujeito.

Iniciou-se, então, um discurso sobre os benefícios do regime de exceção militar. O insano diretor elencou ao professor os "avanços" da ditadura, tentou mostrar-lhe que a criminalidade diminuíra, que a taxa de desemprego caíra substancialmente. Vociferou contra os estudantes, por ele considerados vagabundos que só faziam política universitária. Deixou claro que ocupara o posto no qual estava para fazer ruir qualquer tentativa de subversão estudantil.

O professor não conseguiu compreender a motivação daquela estúpida campanha ideológica encetada de forma tão particular e tão limitada. Teria questionado o poder vigente em alguma reunião da universidade? Fizera alguma observação afrontosa ao governo? Colocara em xeque alguma diretriz do autoritarismo brasileiro? Não, nada disso. Embora avesso ao Estado ditatorial, o professor preferia acompanhar a política de longe, com o cuidado necessário para não conspurcar sua atividade profissional, que lhe era tão cara.

Ao fim do discurso, o diretor revelou que ficara sabendo da "insurreição" dos estudantes da turma do professor. Imaginou que ali estivesse o início de uma contra-revolução, algo capaz de abalar a estrutura da política nacional. Chegara a seus ouvidos que aquela turma estava disposta a lutar pelo fim da ditadura e que iria depor o ilustre diretor.

O professor, com a lucidez que lhe sempre fora peculiar, tentou mostrar ao seu interlocutor que o debate de seus alunos era tão-somente para resolver a data de uma prova e não tinha nenhuma intenção política. Depois de sua explanação, ainda ouviu o brado da inteligência militar brasileira:

- Nós temos maneiras eficazes de acabar com aqueles que lutam contra a ordem.

Quanta burrice!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Por trás de um grande homem....

Sempre achei curiosa a idéia de que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Conheci uma dessas mulheres.

Na década de vinte, ainda moça, foi vizinha de Heitor Villa-Lobos. Conversava com ele amiúde. Acompanhou, não sei em que medida, o conturbado relacionamento do primeiro casamento do maestro. Afirmou-me, por várias vezes, que ele não transpunha para a partitura suas composições, cabendo à sua esposa essa árdua tarefa. Disse-me, também, que conheceu a velha guarda do samba e do choro cariocas. Benedito Lacerda e outros compositores ficavam nas ruas da pacata capital brasileira a executar músicas que entrariam para a história. Talvez tenha sido nessa época que se lhe despertou alguma aptidão para a música. Estudou piano e, ainda sem precisar trabalhar, se prestava, juntamente com amigas, a virar as partituras dos pianistas que faziam o som dos cinemas naquele período.

Nunca falou-me sobre seu pai. Soube depois que o sujeito era um alfaiate de mão cheia, servidor de gente graúda, mas que, por ter se envolvido com negócios escusos, teve de aportar à socapa em terras argentinas. Sua mãe e ela, por necessidade, passaram a fazer doces para a famosa Confeitaria Colombo.

Por volta da ditadura varguista, mais precisamente nos anos do Estado Novo, conheceu um jovem egresso do interior paulista. Ele fora estudar Medicina na capital e certamente se encantou com seus enormes olhos azuis. Casaram-se quando o regime de exceção de Vargas havia recrudescido. Depois que ele terminou a faculdade, mudaram-se para São José do Rio Preto, interior paulista, já com um filho a ser criado. Depois, viria outro.

Sempre a ouvi dizer que estava longe de sua terra. Havia nesse comentário algo que se assemelhava aos sentimentos dos escravos quando se queixavam da distância da mãe pátria. Acompanhava pelos jornais e pela TV o que acontecia no Rio de Janeiro. Não conseguiu, durante extenso tempo, acreditar que o paraíso no qual fora criada se transformara em uma cidade hostil, sujeita a disputas de territórios pelos narcotraficantes. Queixava-se disso, embora não demonstrasse muita tristeza.

O marido, já médico estabelecido e bastante conhecido, resolveu atirar-se na política. Obteve êxito, elegendo-se vereador por quatro vezes consecutivas. Ele casou-se também com a cidade, transitando por vários segmentos, costurando tramas políticas, estratégias sociais e tudo aquilo que era capaz de fazer pelo bem dos riopretenses. Cobiçou a prefeitura que, diziam, seria conquistada sem muitos esforços. Dela desistiu quando algo mais importante lhe aconteceu: foi nomeado diretor do Instituto Adolfo Lutz. Conduziu-o com severidade e rigor extremos. Entre tantas conquistas, em 1958, logrou a erradicação da Poliomielite dos arrabaldes da região.

Enquanto ele se mostrava um sujeito de educação rígida e muito austero – o que o afastava de muita gente, admita-se! – ela a todos encantava. Era uma gozadora. Não havia quase nada que escapasse à sua ironia despretensiosa, muito sutil. Gargalhava, debochava de coisa séria e não se deixava abater quando o marido lhe impingia alguma espécie de reprimenda injusta. Tinha a serenidade necessária para suportar a personalidade frenética dele. Mais que isso, tinha a fibra incansável para apoiá-lo em suas missões. Sem ela, ele não teria empreendido tanto.

Essa grande mulher morreu na semana passada, aos noventa anos, talvez com a mesma placidez com que sempre viveu. Era minha avó.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Leite derramado

Depois que li Leite Derramado (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), quarto romance do Chico, senti-me tentado a escrever alguma coisa sobre ele aqui no blog. Furtei-me a realizar a tarefa porque tinha a convicção de que não conseguiria fazê-lo sem isenção. Além do mais, faltava tempo para refletir e produzir algo que fosse minimamente decente.

Agora, já no final do ano, quando muitos dos detalhes do livro se perderam na minha cabeça, apareceu o William Lial (vejam o blog dele aí do lado), para me fazer um convite: escrever sobre o melhor livro lido ao longo do ano para participar de uma "blogagem coletiva". Trata-se do "Meu melhor livro do ano".

Aceitar o convite, seria, necessariamente, o mesmo que ceder à antiga tentação de escrever sobre Leite Derramado. Depois de muito hesitar, resolvi não escrever nada. Mas, como isso soaria covarde, aceitei parcialmente o convite. Digo parcialmente porque o máximo que conseguirei fazer é amontoar alguns comentários sumários sobre um dos múltiplos aspectos do livro: a questão do preconceito racial.

Vamos lá. Meu tempo é curto!

A história do romance versa sobre o decadente aristocrata Eulálio Montenegro d’Assumpção, nascido em 16/06/1907. Eulálio passa seus últimos dias num leito hospitalar a recordar seu passado e mostrar a genealogia de sua família. Assume um tom nitidamente cômico, sem abrir mão de manifestar o aristocratismo que alimentou sua vida.

A estirpe de Assumpção lhe facultaria, ainda moço, subjugar sexualmente o escravo Balbino, residente em sua fazenda. Quando adolescente, Eulálio pôs na cabeça que deveria enrabar Balbino. Este, certamente, cederia às suas ordens, mas nem mesmo elas seriam necessárias. O trecho de Chico é lapidar:

"Durante um período, para você ter uma ideia, escasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. Então lhe pedia que fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela manga específica, lá no alto, que nem madura estava. Balbino pronto me obedecia, e suas passadas largas de galho em galho começaram de fato a me atiçar. Acontecia de ele alcançar a tal manga e eu lhe gritar uma contra-ordem, não é essa, é aquela mais na ponta. Fui tomando gosto por aquilo, não havia dia em que não mandava o Balbino trepar nas mangueiras uma porção de vezes. E eu já desconfiava que ele se movia ali no alto com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos para recolher as mangas que eu largava no chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda. Só me faltava ousadia para a abordagem decisiva, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias , ponderações tão acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas" (p. 19-20)

Eulálio só desistira de seu intento porque conheceu aquela que seria sua companheira misteriosa, Matilde. A convivência com o escravo Balbino lhe forneceria um traço de personalidade diferente de seus ancestrais. Diz o narrador: "garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor" (p. 20).

Era justamente aí que Assumpção se diferenciava de seus ancestrais: o pai "que só apreciava as loiras e as ruivas" e a mãe que chegara a perguntar se Matilde, "de pele quase castanha", "não tinha cheiro de corpo". Diferentemente do perfil desenhado pelo pensamento social nacional, Eulálio não seria o herdeiro de uma das piores mazelas brasileiras: o preconceito racial. Seu avô também comportava-se de maneira semelhante. Era, conforme o narrador, um "bem feitor da raça negra". Veja-se:

“Do meu último passeio, só me lembro por causa de uma desavença com um chofer de praça. Ele não queria me esperar meia horinha em frente ao Cemitério São João Batista, e como se dirigisse a mim de forma rude, perdi a cabeça e alcei a voz, escute aqui, senhor, eu sou bisneto do barão dos Arcos. Aí ele me mandou tomar no cu mais o barão, desaforo que nem lhe posso censurar. Fazia muito calor no carro, ele era um mulato suarento, e eu a dar ares de fidalgo. Agi como um esnobe, que como vocês devem saber significa indivíduo sem nobreza. Muitos de vocês, se não todos aqui, têm ascendentes escravos, por isso afirmo com orguho que meu avô foi um grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês” (p. 50-51).

A temática racial perpassa todo o romance, mas tem seu cume, segundo entendo, na exposição do seguinte trecho:

“O Balbino nem era mais escravo, mas dizem que todo dia tirava a roupa e se abraçava num tronco de figueira, por necessidade de apanhar no lombo. E vovô batia de chapa, sem malícia na mão, batia mais pelo estalo que pelo suplício” (p. 102)

Com exímia destreza, Chico evidencia que, embora já terminado o estatuto legal da escravidão, a herança escravocrata haveria de perdurar na raça negra mesmo depois de conquistada a liberdade almejada. A necessidade de se abraçar ao tronco de figueira não seria, naturalmente, nenhum sadismo, mas apenas o termômetro da extensão da escravidão na alma negra.

Além do preconceito racial, o patrimonialismo – tema tão caro à obra do pai de Chico – também é exposto com o brilhantismo de quem conhece os meandros da história brasileira e bem sabe – para dialogar novamente com Sérgio Buarque – quais são as "raízes" do Brasil.

É claro que para além das temáticas políticas (dirigidas, a bem dizer), o livro é recheado de trechos cômicos, sempre evocativo de alguma figura familiar de Eulálio. Seu tataraneto, por exemplo, é um garotão que paga suas despesas hospitalares e cujos rendimentos não tem a menor idéia de onde provêm. Diz o narrador: “Sou muito grato ao garotão, mas para ganhar milhões sem instrução alguma, deve ser artista de cinema ou coisa pior” (p. 78). E a origem espúria de seus proventos é sugerida quando Kim, sua namorada que vive com um "brinco no umbigo", oferece a Eulálio cocaína de rara qualidade. Não é aquele “pó de gesso” que otário cheira por aí” (p. 173).

Enfim, a exemplo dos demais livros do Chico, Leite derramado contém sugestões sutis de talhe político e ideológico. É uma obra-prima que revisita o passado brasileiro tal como fizeram os autores da década de 1930. A despeito de toda sua pujança, suscitou um sem-número de comentários descabidos dos críticos de plantão que jamais tiveram a sensibilidade necessária para entendê-lo.

Ainda bem que Chico sabe que não temos boa crítica. Ainda bem que existe Roberto Schwarz para colocar os pontos nos is e mostrar a fecundidade de Leite Derramado.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Certa vez, num certo país

Certa vez, num certo país, o líder de uma banda compôs uma música muito interessante. Ela dizia que um político daquela época havia dito que no Congresso daquele mesmo país existiam 300 picaretas com anel de doutor.

Hoje, talvez o compositor mudasse a letra da música. Diria que, além dos 300 picaretas com anel de doutor, temos também um grande picareta sem anel de doutor....

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ufa!

Amanhã a Globo vai passar um especial sobre Raul Seixas (Por toda minha vida). Trata-se daquela série de reportagens sobre algum músico brasileiro que já não habita o mundo dos vivos.

Na chamada do programa, a belíssima Fernanda Lima refere-se à relação entre Raul Seixas e Paulo Coelho, seu parceiro em algumas canções. Tão logo termina de falar, aparece uma rápida cena do Mago dizendo:

- Nós tentamos mudar o mundo!

Ufa! Ainda bem que eles não conseguiram.