domingo, 15 de março de 2009

Diálogo bizarro

Sugiro àqueles que não gostam de tomar conhecimento da boçalidade humana que se furtem a ler esse post. Eu mesmo não sei como estou aqui, diante do computador, para relatar o bizarro diálogo que presenciei na terça-feira de carnaval. Se o faço, é por absoluta necessidade de desabafar.

A história é a seguinte. Numa livraria de um shopping (portanto, cara, arrumada, chique e muito limpa) vi um menino de uns quatro anos chorando. Ele estava segurando três livros que encontrara numa das estantes e, por absoluta inocência, queria levá-los para casa. O pai e a mãe tentaram dissuadí-lo do contrário. Fizeram-no com extrema paciência e educação, como geralmente sói acontecer com pais diligentes.

O moleque, contudo, não aceitou as sugestões dadas e abriu o berreiro. Gritou, fez um escândalo terrível, chamou a atenção de todos. Foi uma loucura. Loucura típica de uma criança. Perfeitamente compreensível, admita-se!

Em duas mesas não muito distantes, uma mulher falou para um homem:

- Esse moleque é um bicho!

O sujeito complementou:

- Um animal! O brasileiro não sabe educar seus filhos. É só dar um tapa na boca desse infeliz. O choro acaba na hora.

A mulher foi além, deixando claro que ambos tinham uma filha:

- A fulana nunca fez isso. Nunca deixamos!

O boçal avançou:

- Quer levar os livros embora. O desgraçado já quer consumir!

Sim, repito: ele disse, em tom abjeto, que o desgraçado – no caso, a criança – já queria consumir.

O sangue subiu-me à cabeça e, com controle extremo, decidi sair dali. Ainda revoltado, refleti sobre a última frase do diálogo.

O "desgraçado" já estava disposto a consumir, como se houvesse no mundo algum pecado em fazê-lo. Ou seja, o menino era um "desgraçado" por ter nascido numa sociedade de consumo e por ser incapaz de refrear seus instintos. Como se vê, algo "absolutamente compatível" com a idade do garoto. Talvez o menino devesse ler Adorno, Horkheimer e todos os críticos da Escola de Frankfurt! Pesava-lhe sobre as costas a grande herança do mundo ocidental capitalista.

Perguntei-me quem seriam aquelas pessoas. O que estavam fazendo ali? Comprariam livros? Revistas? Por certo, não. Mas estavam a consumir os produtos da livraria. Liam os livros, como se deles fossem. Uns caras-de-pau!

Por acaso, consumir significa comprar? Quem vai ao shopping e não compra também não consome? Alguém, aliás, faz alguma coisa em shopping senão consumir alguma coisa? Eram, portanto, hipócritas.

A revolta que senti com aquela aberração foi pouco a pouco cedendo o passo e dando vazão a uma fantasia curiosa: os boçais haviam de sofrer uma penalidade. A eles seria impingida uma sanção lesiva às suas idiossincrasias. A pena seria incorpórea, afetando nada além de suas consciências.

Ambos seriam expostos publicamente no centro de um grande palco. Avessos ao consumo da sociedade em que vivem, seriam obrigados a comer um grande e saboroso Big Mac. Vestiriam um boné do Ronald, com o "m" amarelo caindo sobre seus olhos. Intercalariam as mordidas da refeição pecaminosa com diabólicos goles de uma coca-cola gelada, também com o "m" em relevo. Depois, a platéia, já farta de tanto escárnio, os impeliria a tomar uma casquinha da magnífica lanchonete da América.

Vestiriam indumentárias de grife, sempre sob risos vexaminosos. Vestiriam pares de tênis Nike, desses desejados por "crianças desgraçadas". Por fim, seriam obrigados a assistir a um filme hollywoodiano, com Silvester Stalone ou Jean-Claude Van Dame. Não faltaria, é claro, a utilização de um aparelho que nada representa em matéria de consumo moderno: teriam de fazer uma ligação de um I-Phone e se comprazer com ela.

Um bom banho lhes faria bem. Mas isso já não faz parte da fantasia. É uma simples constatação de algum desgraçado que, ao contrário deles, adora consumir higiene.