sábado, 31 de agosto de 2013

O moderno cabotinismo

O moderno cabotinismo - Roberto Barbato Jr

A primeira vez que ouvi a palavra “cabotino”, foi por intermédio de minha mãe que tinha lido no jornal uma ácida crítica a Robert de Niro. O articulista da Folha de S. Paulo, cujo nome não convém revelar, havia dito que De Niro era um cabotino. Ato contínuo, recorri ao Aurélio e vi um dos significados do termo. Tratava-se de um ator comediante de baixa desenvoltura, aquilo que talvez, hoje, se assemelhe a um canastrão. Naturalmente, não poderia concordar com a crítica. De Niro tinha acabado de filmar “Tempo de despertar” e qualquer apontamento negativo a seu respeito me parecia uma heresia.

Tempos depois, ouvi falar num texto de Mário de Andrade, intitulado “Do cabotinismo”. Àquela época, já esquadrinhava minha pesquisa sobre o pensamento brasileiro e corri para ler o artigo publicado em O Empalhador de Passarinho. Por óbvio, a acepção que o líder modernista dava ao termo era um pouco distinta daquela usada pelo articulista e tinha um alcance maior.

Para Mário, o cabotinismo poderia ser definido como o fato de o “artista sacrificar grande parte da própria espontaneidade e da própria comoção e das próprias ideias em favor das ideias e comoções alheias”. Diria mais: “O artista perfeito nunca perderá de vista o seu público, e isto é cabotinismo. O artista completo jamais perderá de vista a ambição de se tornar ou se conservar célebre, e tudo isto é cabotinismo”. (ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: I.N.L., 1972, p. 78-79).

A reflexão de Mário de Andrade pode atender a duas perquirições sobre o assunto. Em primeiro plano, parece útil para ponderar se as injunções do mercado cultural moderno não impõem a atores, escritores, diretores e músicos uma postura cabotina. Não é improvável que muitos deles sejam compelidos a abrir mão de sua espontaneidade em benefício do produto final a ser comercializado. Livros, filmes e peças teatrais, por mais geniais que sejam, carecem da contrapartida financeira. Nesse caso, a lógica do mercado preponderaria sobre a sinceridade artística. Solaparia a espontaneidade natural que deveriam ter os homens de arte e de letras. Cedendo, portanto, a uma imposição da mídia, o artista, já despido de suas convicções íntimas, acabaria se revelando um cabotino. Estão aqui todos os ingredientes apontados pelo líder modernista para a confecção da prática cabotina: “nunca perder de vista seu público”, “abrir mão da espontaneidade” e a “ambição de se tornar célebre”. Para fins práticos – e jamais filosóficos –, pouco importaria se o cabotinismo partiu de um ato volitivo do artista ou se lhe foi imposto.

Em outro plano, não se deve eximir o sentimento próprio – este sim, volitivo – de muitos artistas. Se é verdade que a indústria cultural produz cabotinos em conformidade com seus interesses, não é menos verdade que mesmo os artistas independentes não dispensam apreender seu público e projetar seu nome no elenco da notoriedade. Com efeito, deve haver, em todo artista, alguma dose de cabotinismo. Não importa o nível de sua humildade, de sua simplicidade. Talvez seja um imperativo ínsito à sua personalidade a busca pela celebridade, pela conservação do brilho de sua obra para a posteridade.

Expondo a questão nesses termos, pode parecer que vivemos uma época em que o cabotinismo se tornou patológico, uma situação endêmica. A hipótese não é tão absurda, sobretudo num mundo em que a veiculação de obras de artes, ideias e textos se mostra fluida, gratuita e de facílimo acesso. Basta observar a profusão de material publicado na internet: blogs, videologs, posts no Facebook ou no Twitter e outras redes sociais. Os internautas tornaram-se artistas, filósofos e pensadores. No quinhão do espaço virtual que cabe a todos, temos, diariamente, manifestações de afetação individual e disseminação de nossa vaidade. Prestamo-nos a verdadeiramente filosofar, construir máximas e fórmulas com a vã esperança de que elas vicejarão.

Seria exagero pensar assim? Quantos de nós, que nem artistas somos, não aspiramos ao reconhecimento de um público que, pouco a pouco, se constrói nas modernas redes sociais? Não buscamos a concordância com os pontos de vista que ousamos expor em nossas pequenas manifestações? Ao elaborar um projeto acadêmico, escrever um texto ficcional, montar e encenar uma peça, não estamos de alguma forma cortejando nossas próprias ideias, fazendo delas um palco para nunca perder de vista nosso público e dotar nossa pequena contribuição de alguma feição célebre?

Quanto há de cabotinismo e de espontaneidade artística nessa postura?

A resposta a essa questão pode ser encontrada na bela música de Caetano Veloso: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Será que sabemos mesmo? E, se assim for, que nos importa o juízo alheio? Talvez o próprio Caetano, parafraseando sua obra-prima “Língua”, diria: “Sejamos cabotinos!”

Que encrenca, hein!


Um comentário:

Antonio Ozaí da Silva disse...

ótima reflexão, contribui para que não sejamos vítimas do auto-engano rsrsrs Muito obrigado. abraços e tudo de bom