O moderno cabotinismo - Roberto Barbato Jr
A primeira vez
que ouvi a palavra “cabotino”, foi por intermédio de minha mãe que tinha lido
no jornal uma ácida crítica a Robert de Niro. O articulista da Folha de S. Paulo, cujo nome não convém
revelar, havia dito que De Niro era um cabotino. Ato contínuo, recorri ao
Aurélio e vi um dos significados do termo. Tratava-se de um ator comediante de
baixa desenvoltura, aquilo que talvez, hoje, se assemelhe a um canastrão.
Naturalmente, não poderia concordar com a crítica. De Niro tinha acabado de
filmar “Tempo de despertar” e qualquer apontamento negativo a seu respeito me
parecia uma heresia.
Tempos depois,
ouvi falar num texto de Mário de Andrade, intitulado “Do cabotinismo”. Àquela
época, já esquadrinhava minha pesquisa sobre o pensamento brasileiro e corri
para ler o artigo publicado em O
Empalhador de Passarinho. Por óbvio, a acepção que o líder modernista dava
ao termo era um pouco distinta daquela usada pelo articulista e tinha um
alcance maior.
Para Mário, o
cabotinismo poderia ser definido como o fato de o “artista sacrificar grande
parte da própria espontaneidade e da própria comoção e das próprias ideias em
favor das ideias e comoções alheias”. Diria mais: “O artista perfeito nunca
perderá de vista o seu público, e isto é cabotinismo. O artista completo jamais
perderá de vista a ambição de se tornar ou se conservar célebre, e tudo isto é
cabotinismo”. (ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 3. ed. São
Paulo: Martins; Brasília: I.N.L., 1972, p. 78-79).
A reflexão de
Mário de Andrade pode atender a duas perquirições sobre o assunto. Em primeiro
plano, parece útil para ponderar se as injunções do mercado cultural moderno
não impõem a atores, escritores, diretores e músicos uma postura cabotina. Não
é improvável que muitos deles sejam compelidos a abrir mão de sua
espontaneidade em benefício do produto final a ser comercializado. Livros,
filmes e peças teatrais, por mais geniais que sejam, carecem da contrapartida
financeira. Nesse caso, a lógica do mercado preponderaria sobre a sinceridade
artística. Solaparia a espontaneidade natural que deveriam ter os homens de
arte e de letras. Cedendo, portanto, a uma imposição da mídia, o artista, já
despido de suas convicções íntimas, acabaria se revelando um cabotino. Estão
aqui todos os ingredientes apontados pelo líder modernista para a confecção da
prática cabotina: “nunca perder de vista seu público”, “abrir mão da
espontaneidade” e a “ambição de se tornar célebre”. Para fins práticos – e jamais
filosóficos –, pouco importaria se o cabotinismo partiu de um ato volitivo do
artista ou se lhe foi imposto.
Em outro
plano, não se deve eximir o sentimento próprio – este sim, volitivo – de muitos
artistas. Se é verdade que a indústria cultural produz cabotinos em
conformidade com seus interesses, não é menos verdade que mesmo os artistas
independentes não dispensam apreender seu público e projetar seu nome no elenco
da notoriedade. Com efeito, deve haver, em todo artista, alguma dose de
cabotinismo. Não importa o nível de sua humildade, de sua simplicidade. Talvez
seja um imperativo ínsito à sua personalidade a busca pela celebridade, pela
conservação do brilho de sua obra para a posteridade.
Expondo a
questão nesses termos, pode parecer que vivemos uma época em que o cabotinismo
se tornou patológico, uma situação endêmica. A hipótese não é tão absurda,
sobretudo num mundo em que a veiculação de obras de artes, ideias e textos se
mostra fluida, gratuita e de facílimo acesso. Basta observar a profusão de
material publicado na internet: blogs, videologs, posts no Facebook ou no Twitter e outras redes sociais. Os
internautas tornaram-se artistas, filósofos e pensadores. No quinhão do espaço
virtual que cabe a todos, temos, diariamente, manifestações de afetação
individual e disseminação de nossa vaidade. Prestamo-nos a verdadeiramente
filosofar, construir máximas e fórmulas com a vã esperança de que elas
vicejarão.
Seria exagero
pensar assim? Quantos de nós, que nem artistas somos, não aspiramos ao
reconhecimento de um público que, pouco a pouco, se constrói nas modernas redes
sociais? Não buscamos a concordância com os pontos de vista que ousamos expor
em nossas pequenas manifestações? Ao elaborar um projeto acadêmico, escrever um
texto ficcional, montar e encenar uma peça, não estamos de alguma forma cortejando
nossas próprias ideias, fazendo delas um palco para nunca perder de vista nosso
público e dotar nossa pequena contribuição de alguma feição célebre?
Quanto há de
cabotinismo e de espontaneidade artística nessa postura?
A resposta a
essa questão pode ser encontrada na bela música de Caetano Veloso: “cada um
sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Será que sabemos mesmo? E, se assim
for, que nos importa o juízo alheio? Talvez o próprio Caetano, parafraseando
sua obra-prima “Língua”, diria: “Sejamos cabotinos!”
Que encrenca,
hein!
Um comentário:
ótima reflexão, contribui para que não sejamos vítimas do auto-engano rsrsrs Muito obrigado. abraços e tudo de bom
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