sábado, 3 de outubro de 2009

Gadelha e a cidade grande

Gadelha e a cidade grande - Roberto Barbato Jr

Conto publicado originalmente no Portal Cronópios (http://www.cronopios.com.br) em 03/10/2009


Sua existência estivera circunscrita ao restrito mundo da venda de seu pai. Completara duas décadas praticamente trancado ali, entre notas e carregamentos, vendas e pedidos. Seus conhecimentos nas matemáticas eram exíguos, sabia executar de modo claudicante as quatro operações elementares – o suficiente para levar a termo a tarefa que sr. Afrânio desde cedo lhe confiara. Tinha relações as mais cordiais com os fregueses e não raro os recebia em casa, quando a necessidade os surpreendia no meio da madrugada. Gadelha era um menino dado às generosidades da alma humana. Um bom rapaz, dizia a voz do vilarejo.


Amigos, fizera poucos. Lograra o infortúnio de uma paixão quase platônica. Jamais nutriria tamanha afeição por qualquer outra mulher. Amelinha representava a descoberta de sua sexualidade e de seus sentimentos mais nobres. Um dia entrara na venda para anunciar que mudaria para a cidade grande. Tinha devaneios incompatíveis com a vida de Gadelha. Seria atriz.

Sofria calado, sonhava com o momento de conhecer aquilo que só havia no relato de companheiros e na televisão. Pensava em edifícios grandes, os chamados arranha-céus – disseram-lhe que eles existiam! Mesmo diante de evidências, hesitava acreditar que aquilo tudo seria possível. De quando em vez, suplicava ao pai para conhecer a cidade grande. Reticente, o velho assentia:

- Um dia, quem sabe...

Divertimentos, só na Casa de Lulú, a cortesã do vilarejo. Lá passava as noites com o consentimento do pai. Tinha já sua rapariga cativa, a quem transferia as fantasias outrora sonhadas com Amelinha. Ao final do prazer, tal qual uma epifania, imperava a imagem da musa eterna. Depois, acometia-lhe a preocupação com os afazeres comerciais, restava-lhe o dissabor da labuta.

Iniciara-se nas primeiras locuções da língua inglesa. Pronunciava-as com sotaque carregado, tentando alcançar a perfeição. Como fosse incapaz de articular um período com lógica, repetia expressões sem lograr seu completo entendimento. Com isso, imaginava prescindir da legenda do telão quando de sua primeira visita ao cinema. Também sonhava com ele.

Passaram-se alguns anos. Sr. Afrânio agonizava na cama. Já não era sem tempo!, exclamara o filho. Presenciara sua morte, suspirara e atirara-se em cima do velho. Um choro indefinido: não sabia se de alegria ou desespero. Vencera o primeiro, imprimindo-lhe uma sensação de liberdade jamais experimentada. Iria atrás de Amelinha, decidira.

Mas, como?, refletia na solidão da venda, por trás do balcão. Elvira, a vizinha, concordara em levá-lo desde que prometesse discrição. Não queria repentes e vexames, já lhe custara muito a imagem de caipira na cidade grande.

Foi então que, com um misto de receio e alumbramento, Gadelha pusera-se a sonhar novamente. Ensaiara posturas, gestos e frases de efeito. Buscava a naturalidade de uma situação que, sabia, lhe seria hostil. Preparara com dificuldade sua mala; arrumara roupas e pertences de forma desordenada; vestira sua melhor camisa. Partiram.

Ao aproximar-se da cidade, estacara perplexo. Calara-se. Quisera voltar, desistir de tudo. Elvira encrencara:

– Assenta, homem.

Gadelha a tudo olhava. As pontes, os edifícios, as ruas, largas construções, carros a mancheias: tudo lhe causava assombro! Flagrara-se diante de um universo temeroso. Preferira ficar calado, não abrir a boca. Elvira, vez por outra, explicava-lhe as coisas, dizia o nome, a utilidade. Mostrava-lhe o sentido daquele cenário inédito, fazendo-o crer que para além da venda de seu pai havia um mundo repleto de significados.

A primeira noite fora de casa... Foram ao cinema assistir a um filme de procedência norte-americana. Gadelha fazia questão: queria testar seu inglês. Poucas foram as palavras que conseguira captar. Depois de poucos minutos rendera-se à lépida legenda. Ao final da fita, após tantos diálogos perdidos, não pôde entender o intrincado jogo de artimanhas entre a mocinha e o bandido. Passara a repudiar o cinema. Melhor seria confinar-se à venda, lá teria compreensão de tudo quanto lhe parecesse dificultoso.

Mal dormira durante a noite pensando em Amelinha. Como encontrá-la? Disseram-lhe que a cidade grande é realmente grande. Teria pouquíssimas possibilidades de rever o antigo amor. A menos que o encontrasse casualmente, sem a mínima intenção. Mas, qual o quê? Gadelha não tinha boas relações com as coincidências. Sempre que elas se lhe apresentavam era porque estava a caminho alguma desdita.

Impingira-o um desalento implacável, já não tinha mais ânimo para nada. A vizinha tentara consolá-lo, convencendo-o de que Amelinha já não se importava com ele. E mesmo que estivesse enganada, um novo encontro de nada adiantaria: após longos anos, ela não se renderia às mesuras do rapaz. Sugeriu-lhe que aproveitasse a última noite na cidade grande assistindo a um musical em uma dessas casas de duvidosa reputação.

Espetáculo começado, a boca de Gadelha não se continha em pequenos risos. Deleitava-se com cenas de intensa vulgaridade. Gargalhava com a precária coreografia das danças. Sentira-se absolutamente feliz até o momento em que, perplexo, notara a presença de Amelinha no palco. Palpitara-lhe o coração, ficara pálido, trêmulo, inerte.

Poderia voltar para casa. Já era indiferente ao sonho da cidade grande, do cinema e do amor de Amelinha.

Nenhum comentário: