sexta-feira, 31 de maio de 2013

Naqueles tempos: 1992 e o início da débâcle

Naqueles tempos: 1992 e o início da débâcle

No início de 1992, Collor já estava desgastado. Os debates na universidade eram acirrados. Alguns militantes do PT, com sua rebeldia açodada, já ansiavam por uma “revolução” cuja forma nem mesmo eles conheciam. Eu não era – nunca fui – filiado ao PT e sempre tive restrições em relação às posturas que o partido como um todo adotava. A maioria de seus militantes levantava a bandeira do monopólio da moralidade pública, da ética e da transparência – exatamente como Luiz Inácio fez recentemente. Pois é, certas coisas parecem não mudar...

Interessado no debate político, tinha a convicção de que os partidos de esquerda – PT, PSB, PPS, PC do B – estavam se posicionando da maneira correta. Aguardavam a oportunidade para tomar uma providência em face dos indícios de condutas ilícitas na gestão collorida. Quando a possibilidade do impeachment assumiu contornos nítidos, a esquerda radicalizada a entendeu como esperança real de subversão da ordem. A inocência de alguns caminhou para a crença de que estávamos frente a uma nova chance de revolução, algo que pudesse encaixar o Brasil nos trilhos do socialismo. Por incrível que pareça, os militantes mais intransigentes acreditavam piamente nisso. À queda do presidente sobreviria uma grande catarse e o capitalismo seria banido na sociedade brasileira. O discurso era uma piada, mas muita gente acreditava nele.

Naturalmente, havia tantas outras facções e partidos que, embora defendessem a moralidade na política, não manifestavam uma leitura tão ingênua do momento nacional. A “substituição” de Collor era desejada, amplamente apoiada. Todavia, apresentava-se, de certa forma, como um fato desprovido de consequências. Não se pensava – ou talvez não se tenha querido fazê-lo – em como se daria a sucessão presidencial para um político que, àquela altura dos fatos, nada mais era do que um ponto sem luz, desconhecido em variada medida. Quem era, afinal, Itamar Franco?

O debate político ecoava nas geniais aulas de Teoria do Estado Moderno ministradas pelo professor Milton Lahuerta. Temas como a concepção explosiva do Estado, as vantagens do atraso e a revolução passiva, entre outros, orientavam o pensamento de quem construía seu repertório intelectual. Ler Gramsci, Bobbio, Marx e Engels, Lenin... Tudo aquilo me oferecia (creio que a todos da turma) um horizonte interpretativo extremamente fecundo, sobretudo num momento conturbado. A teoria e a realidade políticas constituíam um enigma a ser decifrado.

Ainda haveria muita leitura para ser feita, muito a ser estudado. Faltava, entretanto, pouco tempo para que o impeachment se tornasse realidade.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Naqueles tempos: 1992 e a patrulha ideológica


Naqueles tempos: 1992 e a patrulha ideológica

Naqueles tempos, o que não faltava na faculdade era patrulha ideológica. Tratava-se de algo tão difundido e corriqueiro entre os alunos que, mesmo não desejando incorrer nessa conduta, muitas vezes não conseguíamos frear nossos impulsos.

Hoje pode parece banal, mas naquele contexto certas palavras assumiam um tom de heresia. A palavra “liberal” e a expressão “liberal-democracia” eram problemáticas. Qualquer tendência a ser identificada com elas era suficiente para que o debate desembocasse na patrulha – ou na zombaria. O interlocutor, de socialista comprometido com a divisão material dos meios de produção (veja só o exagero!), passava, em virtude de um pequeno lapso, a ser defensor intransigente do liberalismo político. Ninguém perdoava.

“Que socialista, o quê! Liberal enrustido, isso sim”.

Houve um dia em que, não suportando mais a pressão da tropa de fiscalização da turma, um aluno se rebelou. Dissera que, em conversa com o pai, foi convencido a adotar o credo liberal. Sob ele poderia proteger-se dos dissabores da uniformidade socialista e da falta de criatividade que o Kremlin faria se espalhar pelo mundo. A metáfora utilizada para persuadir o filho não era nada engenhosa. Bastou uma imagem cruelmente estúpida e reiterativa: depois que o Brasil produzisse o grande bolo do desenvolvimento, deveriam abocanhar a maior fatia dele. Pois é, o rapaz abraçou a ideia paterna e imagino que até hoje esteja com fome.

Se conto tudo isso, não posso deixar de dizer que também fui vítima dessa patrulha ideológica. Comigo, entretanto, um dos episódios foi relativamente cômico. Cheguei à faculdade logo de manhã, peguei um café e fui me sentar à mesa do pessoal que ali conversava sobre a possível queda do ministério do Collor. Sem saber qual era o assunto versado, acendi um cigarro e perguntei:

- Alguém aí sabe quem ganhou o Oscar ontem?

A resposta foi furiosa.

- O ministério do Collor está quase caindo e você está preocupado com o Oscar?

Era isso mesmo. Eu não poderia gostar de cinema. Muito menos, me interessar pelo vencedor do Oscar. A arte cinematográfica não combinava com a política.

Detalhe: naquele ano, Silêncio dos Inocentes venceu 5 oscars, inclusive o de melhor filme. Essa era a informação que eu desejava. E, por causa dela, quase apanhei.


sexta-feira, 17 de maio de 2013

Naqueles tempos: 1990 e a nação collorida

Naqueles tempos: 1990 e a nação collorida

15 de março de 1990. Araraquara. Faculdade de Ciências e Letras da UNESP. Primeiro semestre do curso de Ciências Sociais.

Por volta das 10 horas da manhã, eu estava na fila da cantina para comprar um café. Ouvi pelo rádio a transmissão da posse de Fernando Collor. Imediatamente, veio-me à cabeça a voz do meu avô chamando-o de fascista. “Fascista”, xinguei-o mentalmente (acho que foi uma das poucas vezes que concordei com meu avô em matéria de política).

No dia seguinte, veio a notícia do confisco da poupança. Com um imaturo e vingativo riso, pensei em todos aqueles que tanto haviam defendido o “caçador de marajás”. Lembrei-me de cada argumento dado por conhecidos para justificar a eleição do jovem presidente. Depois, oportunamente, perguntei se estavam satisfeitos com a gestão collorida do Brasil, aquela que, finalmente, tiraria o país do atraso.

Esse sentimento pueril de forra, deixou de existir quando tomei a real dimensão daquela patética situação. A conduta de Collor, infelizmente atingia também aqueles que jamais depositaram qualquer voto em seu nome. Ouvia, aos poucos, relatos de gente que havia guardado dinheiro para a compra da casa própria, a realização do casamento, a construção de um negócio de família.

Os primeiros meses daquela gestão, foram conturbados e deixavam sempre em suspense o que poderia acontecer dali para frente.

Em meio a toda essa turbulência política, iniciava meus estudos de ciências sociais um tanto perdido em relação à teoria que lia e à realidade que vivia. A leitura d’ O capital, do Manifesto do Partido Comunista e dos artigos publicados por Florestan Fernandes, às segundas-feiras na Folha de S. Paulo, acirravam ainda mais a antipatia que nutria por Collor. Com suas tórridas metáforas, Florestan comparava o então presidente a um imperador e desancava todas as suas condutas. Sua coluna semanal ressoava como um brado de resistência que, infelizmente, a poucos tocava.

Aquela foi minha primeira eleição. Era, também, a primeira eleição direta após tanto tempo de silêncio popular para a escolha presidencial. Quer dizer que depois de longos anos, o brasileiro havia conquistado o direito de ir às urnas para eleger o filho da aristocracia alagoana? Daríamos vida ao continuísmo? Justamente num momento em que o que mais se desejava era a modernização da política e a moralização da rés pública?

De maneira quase inédita, além de aumentar a insatisfação da oposição, Collor foi cativando o desprezo de seus eleitores. Deixou a todos descontentes. Mesmo assim, a irracionalidade política dos que o haviam eleito era manifesta sempre que instados a se posicionar. Em pouco tempo, o presidente se tornou um homem show, promovendo espetáculos aos domingos em qualquer oportunidade em que pudesse capitalizar a simpatia da população. Virou atleta, malabarista, assumiu um sem-número de funções, inclusive a de arremedo de presidente. Felizmente, aquilo duraria pouco. Bastaria esperar...





sexta-feira, 10 de maio de 2013

Naqueles tempos: 1985, o rock e a política

Naqueles tempos: 1985, o rock e a política

Janeiro de 1985. Ano de mudanças. As chamadas do Rock ‘n Rio na televisão anunciavam que o Brasil seria movimentado. Com 12 anos e já apreciando rock, não tive autorização para ir ao evento. Embora houvesse muito diálogo em casa, nem se discutiu aquela possibilidade. Sem chance. A resposta foi uma irônica piada do meu pai. Teria de me resignar com as transmissões esporádicas da Rede Globo. 

Boatos sobre a duvidosa presença de algumas bandas marcavam o tom das conversas na escola e no clube. Yes, AC/DC, Queen, Iron Maiden e Whitesnake viriam de fato? Reclamações também abundaram. “O que o Gil tem a ver com Rock? E o Ivan Lins?”. Os metaleiros não poderiam admitir que representantes da MPB estivessem misturados no maior evento de rock do mundo. “E James Taylor? Aquele violão insosso, vozinha fina...”.  

Ainda em janeiro daquele ano, teríamos a disputa no colégio eleitoral: Tancredo versus Maluf. No ano anterior, as ruas tinham sido tomadas pela campanha das “Diretas Já”, que defluía da emenda constitucional proposta por Dante de Oliveira. Nós, alunos da 6ª série, colocávamos uma fita amarela nos adereços escolares e íamos para as aulas. Alguns tinham as camisas amarelas com a inscrição “Eu quero votar pra presidente”. Chico Buarque havia composto “Pelas tabelas”, uma espécie de conclamação ao “movimento”.  A emenda, entretanto, foi vetada e o confronto entre Tancredo e Maluf, inevitável.

Lembro-me de ter assistido à votação no Colégio Eleitoral com minha mãe. Já naquela época eu havia cultivado uma inequívoca e justificada repulsa ao sr. Paulo Maluf. A certeza de que jamais votaria nele era tão inexorável quanto a morte. De outro lado, não sabia exatamente o que significavam as forças que apoiavam Tancredo. Todavia, em face da possibilidade de Maluf ser presidente, qualquer candidato poderia ser melhor.

Tancredo foi eleito. Assisti a programas que narraram sua trajetória, mostravam seus discursos e suas ambições. Ouvi dizer que deveríamos aguardar um Brasil sem tantos privilégios para os mais abastados. Uma vaga noção sobre a ideia de combate ao patrimonialismo parecia traçada pelo político mineiro. Enfim, havia o anúncio de algo novo. Para mim, naquela época, o novo era incerto.

Em pouco tempo, a notícia da internação do futuro presidente foi nacionalmente divulgada. Muito se especulou e juraram que ele não chegaria a assumir. No dia 21 de abril, pouco antes de dormir, ouvi Antônio Britto anunciar sua morte.

Puta que pariu, pensei. E agora? 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O LP


“Toma! Aquela música que você gosta taí”, foi o que ela disse ao me entregar o LP, na festa dos meus dez anos. Segurei o disco e olhei para o papel do embrulho. Quando levantei a cabeça para agradecer, ela já tido ido pro lado das meninas.

Aquela música que eu gosto? Que música? Fui pra dentro de casa, tirar o embrulho do LP. Era uma coletânea internacional dos anos oitenta. Ali não tinha nada que eu gostasse. Até Elton John fazia parte daquilo. Justo eu que odiava o Elton John. Guardei o disco e voltei pra festa.

A noite seguiu. Enquanto não se instalasse a pista de dança, elas lá, nós cá. Olhava pra ela e perguntava mentalmente a que raios de música havia se referido.

Antes de ir embora, deu uma piscadinha e veio falar comigo.

- É aquela música mesmo, né?

Titubiei. Fiquei na minha.

- Eu sabia que você ia gostar. O Elton John é demais.

Por ela, até o Elton John poderia ser demais.