segunda-feira, 21 de abril de 2014

Nós, elas e eles

Nós, elas e eles

Para Fernanda Grota D’Agostino

Nossas cabeças fervilhavam. Vestibular à vista, amores sufocados, inquietações sobre sentimentos e, com frequência, conversas sobre as indefinições do futuro. Geralmente era na sala da casa dela que ficávamos, sentados em duas poltronas mediadas pelo aparelho de som. A música era baixa e a conversa também, como se estivéssemos fazendo confidências. Até eram segredos, mas ninguém teria interesse em ouvi-los.

Quando chegava o inverno, quase tudo era motivo de conversa. Vem prá cá, eu faço um cappuccino. Agora? Claro. Cê tá ocupado? Não, tava tocando guitarra. Podia ser a qualquer hora. Morávamos perto e naquela época não tinha essa história de cuidados com a segurança noturna. O problema era enfrentar o frio. Contudo, eu tinha uma fiel jaqueta e umas camisas de flanela que só Deus sabe o quanto eram queridas.

Em época de provas, corríamos à casa de alguém, a pretexto de estudar. Vez por outra, rolava um som, uma TV Pirata ou mesmo um filme que tivesse disponível nas velhas VHS. Voltávamos a pé, abraçados ou de mãos dadas. No caminho, a discussão não era, em si, a prova do dia seguinte e tampouco o interesse que a matéria poderia despertar. O que estava em pauta eram nossos dilemas sentimentais. Revezávamos o tempo para falarmos dela e dele. E, se porventura, um de nós se excedia, não havia incompreensão. Ao final, desculpávamo-nos e garantíamos que ele ou ela seria o assunto do dia seguinte. Eu a deixava em casa e ia embora.

É verdade. Ela e ele, ou elas e eles, sempre suspeitaram que entre nós houvesse alguma coisa. Não se justificava tanto tempo juntos, tanta conversa e cumplicidade que transcendessem a amizade. Abraçados ou de mãos dadas, convenhamos, soava inequívoco sermos um casal apaixonado. É provável que tenhamos constituído até motivos de apostas alheias.

Seguimos juntos até que chegasse o temido vestibular. Então, aos poucos, cada um tomou um rumo e alguns daqueles dilemas antigos perderam importância. Cada qual se encontrou e o nosso afastamento se tornou uma realidade. Se tivesse de apostar em alguma razão para isso ter acontecido, jogaria tudo na minha incapacidade de desprendimento, no meu estúpido egoísmo e naquela acomodação que o tempo vai tornando cada vez mais forte e triste.

Ainda nos falamos. Eventualmente e com muita saudade.