Tio Harlan - Roberto Barbato Jr
Não. Não acredito nessa história de loteria e mega sena. É tudo uma grande sacanagem. Coisa de picareta, como o tio Harlan, que todos dizem ter tino comercial apenas porque deixou de ser empregado e hoje tem uma empresa. O tio Harlan recende a picaretagem. Só virou empresário porque ganhou na loteria. Um dia quis me convencer que há homens eleitos pelo dinheiro. Eu perguntei um “como assim” meio envorgonhado e ele me garantiu que existiam os predestinados. Tio Harlan, seu filho da puta!
Não adianta. Você não vai encontrar uma fonte de renda remansosa. Esqueça o que te disserem. O negócio é o trabalho. Viver de renda, de aluguel, ser cafetão, agiota, onzenário, tudo isso é fria. Só o trabalho constrói. Somente o esforço agrega. Ou, então, você tem pai rico. Rico e comedido. Do contrário, as pompas ficarão nas memórias. Um pai rico perdulário é um castigo. Você fica aí pensando que o sujeito vai te deixar de boa, na sombra e na água fresca. Quando sai o inventário, você percebe que, quando muito, te restou uma aplicação de alto risco que, se não for resgatada logo, adeus. Se você tiver irmãos, fodeu. O adeus é de rigor.
Por entender que a vida é só trabalho, resolvi meter as caras. Como as teses do tio Harlan nunca me serviram de nada, achei melhor encarar o trabalho. Saí à cata de uma ocupação. Nem era emprego, era ocupação mesmo. Faria qualquer coisa. “Então tá bom”, disse o dono do hotel. “Você carrega mala de terça a domingo. Pode folgar na segunda-feira de manhã e pode usufruir da piscina, já que nunca tem ninguém nesse horário. Salário? Bom, isso a gente vê depois”. Foi o que ele me falou.
Vestido de um uniforme pesado, carreguei mala (com ou sem rodinha, pequena, grande e também nécessaire). Carregava, inclusive, hóspede bêbado. Levei cantada de madame, de camareira e de veado velho. Tinha certeza que não podia comer ninguém, o que poderia comprometer meu novo ofício.
Tinha de tudo no hotel: milionário de verdade, falso rico, alpinista social, puta de luxo e até michê disfarçado de garçom. As finanças começaram a andar mal. Quando suspeitei que iria pro olho da rua, me cocei. Primeiro, só de birra, entrava na piscina pra mijar. O esquema tinha um preparo interessante. Ficava quatro horas sem comer, tomava muita água, deixava a bexiga ficar bem cheia e ia nadar. Mijava o tempo inteiro, uma mijada em cada canto da piscina. Como a bomba estava quebrada, não havia reciclagem de água alguma. Em duas semanas aquilo ficaria fétido, cheio de bactérias. Alguém se estreparia por ali. Depois, pra dar um jeito momentâneo na vida, meti a mão na gaveta do seu João. Ele era o gerente do estacionamento e guardava a gorjeta da semana numa gaveta sem chave. Era uma paca. O dinheiro daria para um mês, sem muito luxo, é claro.
Acabou a grana. Encontrei um velho amigo da escola e ele perguntou se eu queria ganhar algum. “Você tem boa aparência. É o que precisamos lá na clínica. Um rapaz que atenda ligações e resolva problemas de última hora”. Era uma clínica clandestina de aborto. Perguntei pra ele se a clínica era mesmo clandestina. Ele não entendeu a piada. Recusei a proposta.
Corri até Câmara Municipal para procurar um vereador conhecido do Tio Harlan. O cara, diziam, tinha bom relacionamento com a turma da situação. Se pudesse me arrumar um cabide na administração atual, ficaria grato pro resto da vida. O seu Tenório conseguiu um lugar no setor de separação e entrega de missivas da própria Câmara Municipal. Eu não sabia o que era missiva, mas aceitei. Não devia ser coisa ruim. No primeiro dia de trabalho, percebi que meu negócio era separar e entregar cartas. Missiva é carta, foi o que o dicionário me disse. Separava correspondência pros gabinetes de vereadores, para a presidência da Câmara e até para dona Justina, que servia o cafezinho.
Foi ela que me avisou, depois de um ano de trabalho duro, que eu seria demitido logo mais. Com a história dessa tal terceirização resolveram terceirizar o serviço de correspondência e entregas. Eu ia tomar na cabeça. Mandaram me chamar. Como eu já sabia da demissão, fui à forra. Disse que ali só tinha bandido, político velhaco e puxa-saco. Uns chupins! E o salário era ridículo. Dei uma risada de louco, de gente desequilibrada. Toquei o terror! Comecei a gritar e simulei que ia morder alguém. Todo mundo subiu nas cadeiras, tinha gente até em cima da mesa. O seu Tenório ficou vermelho de raiva. Disse que minha postura não condizia com as referências que o tio Harlan lhe tinha dado.
A dona Justina, indignada com a situação, me indicou pra garçom de um boteco da família da cunhada da prima dela, lá na periferia. O negócio estava começando, mas dava ares de que iria pra frente. No almoço servia os PFs e à noite, lanche e cerveja. Eles me pagavam direitinho, inclusive o vale transporte pra ir e voltar. Na sexta-feira à noite, o expediente se estendia e eu podia dormir num quartinho do fundo do restaurante, porque, àquela altura dos acontecimentos, o boteco já tinha até nome de restaurante. Graças ao meu empenho, virei sócio. Propunha um evento hoje, uma música ao vivo amanhã, uma feijoada no domingo. Assim fui conquistando meu espaço. Ainda bem que não dei bola pras fantasias do tio Harlan. Em dois anos estava ficando abonado e pensei até em me casar com uma freguesa loirinha que me dava uns beijinhos sem nenhuma emoção.
Ao descobrir minha fibra empresarial, tio Harlan mandou me chamar. Propôs negócio, dizendo que talvez eu já fosse um eleito do dinheiro, tal como ele. Iríamos unir forças, ganhar muita grana. Resisti um pouco. Contudo, acabei cedendo. Vendi minha parte no restaurante da periferia, terminei com a loirinha insossa e virei sócio dele. O futuro prometia.
Prometia nada.... Ele passou a perna em mim. Quando percebi, estava trabalhando no almoxarifado da empresa, como um funcionário raso. Perdi minhas cotas da sociedade e a única coisa que me restou foram os convites para nadar na casa do Tio Harlan. Eu só precisava dar um jeito de quebrar a bomba da piscina.
Um comentário:
Belo conto. O Tio Harlan é mesmo um filho da puta.
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