quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A imagem

A imagem - Roberto Barbato Jr

Conto publicado no Portal Literal

Quando a primeira pedra do prédio foi fincada na terra, todos suspeitaram de que sua construção seria uma falácia. A proposta das Irmãs Beneditinas era mesmo muito audaciosa. A julgar pela pouca tecnologia existente no início do século, uma obra com tais proporções só seria possível se se tratasse de um milagre. Anos depois, chegou-se a acreditar em sua ocorrência. O prédio estava pronto e sugeria existência eterna. Eterna seria também a lenda divulgada após a inauguração da enorme capela do colégio: o Vaticano havia cedido uma imagem de ouro maciço cravejada com diamantes para ostentar a beleza do novo templo católico. No dia em que fora rezada a primeira missa, a imagem desapareceu sem que ninguém soubesse o motivo. O fato teve repercussão nacional, sendo motivo de lamentações de toda sorte.

Hoje parece consensual a opinião de que lá foi criada a maior instituição educacional da pequena cidade. Associada às vantagens que se pode auferir de uma lenda, a simples intenção de educar os filhos das famílias tradicionais converteu-se em um eficaz instrumento de acúmulo de riqueza. Por trás de tanta pregação e devoção havia também o desejo imperioso de enriquecer o patrimônio da instituição. Muitas vezes criticadas por suas intenções um tanto duvidosas, as irmãs resolveram fazer ruir os comentários maldosos amiúde feitos pela comunidade. Assim, investiram em iniciativas filantrópicas, criando o Serviço de Assistência Psicológica, destinado aos jovens carentes. O projeto era tão pretensioso que para sua consecução foi chamada uma psicóloga de renome nacional: a doutora Maria Lúcia.



Saí da redação do jornal rumo ao Colégio. Malu estava ansiosa para me colocar a par do que a trouxera para a cidade depois de tantos anos.

– Mas isso é lenda, não tem fundamento, Malu – disse sem paciência.

– Não tinha fundamento. Agora tem.

– E qual é?

– A história é a seguinte: uma empresa da capital foi contratada para reformar o subsolo do colégio. A estrutura do prédio está comprometida. Existe um aposento que não será mexido, embora seu estado de conservação seja precário. As irmãs teimam em alegar que se trata de um lugar sagrado, porque é lá que está o cadáver do padre que rezou a primeira missa da capela. Para reestruturar as bases do aposento seria necessário exumar o cadáver e removê-lo para um outro lugar. Isso está fora de questão, pois elas jamais aceitariam um fato como esse.

– E o que tem a ver a tal imagem? – indaguei.

– Na revista da Congregação desse mês existe uma reportagem sobre a história do colégio. Dentre os inúmeros fatos narrados, estão registrados o episódio do desaparecimento da imagem e a primeira missa rezada. O padre é mencionado como uma figura enigmática, cujas relações com o clero da época estavam sujeitas a todo tipo de altercações.

– E daí?

– E daí que ele pode ter escondido a imagem. Talvez porque quisesse tirar proveito dela, talvez porque quisesse tê-la para sua contemplação exclusiva. Seja como for, se ela está aqui, seu lugar é junto ao cadáver do padre.

– Tudo bem. Se encontrarmos a imagem, o que faremos com ela?

– O que faremos? Desvendaremos a lenda. E não me parece que você se furtaria a publicar uma reportagem dessa importância. Ou será que estou enganada quanto às suas ambições profissionais?

A noite havia chegado. Acompanhei Malu até o colégio para que pudesse cuidar de suas instalações temporárias. Ela ficaria próxima à ala do misterioso quarto. Se fosse eu, recusaria uma proposta como essa: cadáver de padre enterrado no subsolo de um colégio de freiras? Nem que o tal projeto de assistência me pagasse em dólar. Das duas uma: ou Malu estava ficando louca como seus pacientes ou havia se convertido numa ávida especuladora de acontecimentos históricos. Marcamos encontro para às seis da tarde do dia seguinte.

Pude perceber que ela não estava tão à vontade como no dia anterior. Não dormira bem. Passara a noite ouvindo um som esquisito que vinha, provavelmente, do aposento do padre. Segundo seu relato, parecia uma música sacra, com muitas vozes e repentes graves. Ela então mudou de assunto, falando sobre o primeiro paciente que atendera durante a tarde: um rapaz que foi acolhido pelas irmãs e que prestava serviços de limpeza ao colégio em troca da moradia e refeição. Eventualmente manifestava alguns distúrbios mentais.

Dois dias depois, ao final do expediente, fui para casa. Em poucos minutos recebi a visita de minha amiga.

– Lembra do Alaor? – perguntou ofegante.

– Sei, o bonzinho que bate fora do bumbo!

– Hoje ele teve uma crise. Tentou abrir a porta do quarto do padre. Disse que Deus chamou por ele a noite inteira.

Em face das minhas risadas, Malu repreendeu-me com um olhar severo. Falou-me que o rapaz também tinha ouvido aqueles sons procedentes do quarto misterioso. Era de supor que Deus o tivesse chamado por meio da música. Mas, que música seria tão imponente a esse ponto? O moleque até podia ser louco, mas, achar que Deus fosse cantar para ele, era um grande exagero.

– Ninguém entra lá. Só a madre – ela disse. – Isso só reforça as minhas suspeitas. Por que motivo ela vetaria a entrada das outras irmãs?

– Onde ela dorme? – Suspeitei que fosse junto ao padre.

– Num quarto ao lado do meu.

Acendi um cigarro e comecei a pensar alto:

– Bom, até agora temos o seguinte: na história toda existe uma imagem preciosa, um defunto e um louco. Por razões diferentes da nossa, o louco quer entrar no quarto e é bem possível que não desista, a menos que a música pare de tocar. Se a imagem está lá e nós quisermos descobrir, temos que entrar antes dele. Do contrário, a lenda terá vida longa. Ainda que ele descubra a existência da imagem, ninguém iria acreditar num sujeito como ele.

– E o senhor sabe me dizer como fazer para entrar lá? – ela perguntou insinuando que eu só falara o óbvio.

– Isso é você quem tem de descobrir...

Levei-a ao colégio. Naquela noite pude acompanhá-la até a ala íntima. Antes que ela se despedisse de mim, apontou-me o aposento sagrado. Consegui ouvir a tal música. Não restava dúvida alguma: era o Réquiem de Mozart. Pude perceber, então, que não se tratava de uma música qualquer. Aquilo faria com que até os homens mais sóbrios pudessem enlouquecer. Alaor devia ter razão: Deus estava cantando.

Passaram-se alguns dias. A música continuava a tocar e o rapaz insistia na sua atitude suspeita. Chegamos à conclusão de que havia um ritual diário praticado pela madre superiora: toda noite ela entrava no aposento e colocava o Réquiem para cultuar a alma do padre. Malu passou a frequentar seu quarto, aos finais de tarde, com o pretexto de passar informações sobre o tratamento de Alaor. Era a oportunidade que esperávamos. A chave deveria estar escondida lá. Não foi preciso mais que duas visitas para notar a existência de uma Bíblia com fundo falso.

Na madrugada de uma sexta-feira acordei com um telefonema de Malu. A mensagem que ela me deu foi literalmente telegráfica:

– Tire cópia da chave embaixo do meu carro. Estacionamento do colégio. Devolva antes de amanhecer.

Como eu iria fazer tudo aquilo?

Acordei o chaveiro que conhecia, fiz a cópia da chave e a coloquei no lugar em que a encontrara. Não dormi. Cheguei à redação antes de todo mundo e resolvi pesquisar o arquivo do jornal. Encontrei material sobre a família de Alaor. Curiosamente, seus parentes eram proprietários de uma joalheria na capital. A pesquisa foi interrompida pelo telefonema de Malu.

– Pode ser impressão minha, mas acho que o rapazinho tem um outro motivo para entrar no quarto do padre. O moleque é um delinqüente, isso sim – falei com tom debochado.

– Como, delinqüente? Clinicamente ele é louco.

– Então é um louco safado!

Ela me contou que só foi possível pegar a chave quando viu a madre sair do aposento sagrado, por volta das três da manhã. Naquele momento a música tinha parado de tocar. A madre já estava pronta para dormir quando Alaor teve uma crise e começou a bater na porta de seu quarto. Foi aí que Malu se prontificou a ajudá-la e apanhou a chave que já estava no fundo falso da Bíblia. Até o dia raiar, sua falta não seria notada. Depois, bastaria uma desculpa qualquer para repô-la: minha amiga lhe pediu uma aspirina e fez a reposição.

Como a restauração do colégio começaria em breve, resolvemos entrar no quarto no dia seguinte. Restava saber o que faríamos se a imagem estivesse lá. A fim de lograr a credibilidade da população decidimos levar uma filmadora para registrar sua existência. Depois disso, publicaria meu furo de reportagem sobre o sumiço da preciosa imagem e sairia do anonimato jornalístico.

No dia seguinte, almocei com Malu, que me confirmou o horário do ritual macabro e me disse também que Alaor andava de vigília. Ele acompanhava cada movimento de quem quer que fosse no corredor escuro. Combinamos executar nosso plano às três e quinze da madrugada.

Após o expediente, encontramo-nos para repassar todo o itinerário a ser cumprido. Fui para casa, tomei banho e esperei até as três horas. Parti para o colégio. Encontrei Malu no estacionamento. Entramos sorrateiramente na parte íntima do prédio. Não havia sequer uma única lâmpada acesa. Com a exígua luminosidade da minha lanterna chegamos à porta do aposento. Entramos e acendemos um abajur pequeno situado no chão, ao lado direito da porta. Quanto à Malu não sei, mas fui tomado por um medo assombroso. Aquilo era uma filial do inferno! No escuro, o túmulo do padre assumia proporções grandiosas e a vetustez do material empregado em sua construção imprimia um aspecto mórbido ao lugar. A pintura do teto parecia uma reprodução da Capela Sistina fazendo com que, paradoxalmente, aquelas gravuras atenuassem o clima tétrico. Enquanto Malu procurava pela imagem, eu ia iluminando seu caminho com a lanterna. Sem ter a mínima intenção, bati na quina de uma mesa de mármore e avistei a imagem. Nós estávamos diante de algo absolutamente real, alheio a qualquer invenção. A razão de tanto mistério só poderia ser encontrada na beleza plástica e no valor material daquele objeto.

– A filmadora – murmurou Malu ainda perplexa diante da descoberta.

Jamais me perdoaria: eu a havia esquecido. Ficamos admirando o brilho dos diamantes cravados na imagem. Chegamos a pensar em tirá-la dali, mas nossa postura moral jamais permitiria. Como já tínhamos a chave e sabíamos como proceder novamente, não nos preocupamos. Meu dia de glória estava por vir. Eufóricos e quase realizados pela descoberta, fomos embora de lá. Voltaríamos na noite seguinte. Cheguei em casa e desmaiei de sono no sofá.

Assim que amanheceu tocou o telefone. Falei com Malu e saí às pressas. Cheguei ao colégio em pouco tempo. Um tumulto na entrada me fez perceber que alguma coisa estranha havia acontecido. As irmãs estavam reunidas em frente ao mausoléu do padre. Malu aguardava por mim com uma expressão sôfrega. Deram-me passagem e entrei no quarto, como se não o conhecesse. O Réquiem era tocado e, daquela vez, o Offertorium ecoava por todo o colégio. Ao lado do túmulo do padre, encontrava-se a madre superiora. Inteira retalhada, com o rosto exangue e um pequeno terço na mão esquerda, ela ainda agonizava. Suspirou e morreu.

Imediatamente olhei para a mesa de mármore e senti falta da imagem. Certamente Alaor a teria levado. Minhas últimas esperanças de sucesso foram por água abaixo. A expectativa de tornar pública uma realidade desconhecida não passava de uma grande quimera e o fato de ter desvendado o enigma em nada me consolava. Mesmo que jurássemos diante das câmeras de TV, ninguém acreditaria em nós. A cidade inteira continuaria especulando sobre a lenda. Ela seria definitivamente eterna.

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