segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Incômodos espelhos

Incômodos espelhos – Roberto Barbato Jr

Ainda moleque notei uma disposição ímpar para suscitar desditas. Elas se me apresentavam amiúde, sem hora nem lugar certo. Acometiam-me os assombros dos espíritos de má fé que, sempre sequiosos de aporrinhar alguém, encontravam em mim presa fácil. Já estava desconfiado de que o pagamento de certos tributos mundanos me era mesmo uma dessas imposições as quais não se pode delir. Cogitei da possibilidade de uma sina, um destino adrede traçado. Mas, ora, isso não podia ser...

Pouco a pouco percebi que modificara a forma como vislumbrava minhas desventuras. Tudo agora se cifrava a uma tortura psicológica, eivada de idéias fixas, tormentos íntimos e outras coisas mais. Se outrora importunavam-me as agressões evidentes, hoje vivo perplexo diante de uma evidência sutil, porém nada rasa.

Sua presença em minha vida tornou-se tão insidiosa que me flagro pensando em sua morada. Ele vive numa edícula, nos fundos de um imóvel velho, quase abandonado. Ao abrir a porta da entrada, nota-se estranhamente espelhos dispostos irregularmente. Sente-se logo o cheiro de mofo e o olor indecente das fezes dos felinos que lá fincaram raízes, com seu consentimento. Recebem-no com indiferença, resignando-se a mover apenas os olhos. Depois, instados a sair de onde estão, rebelam-se à farta, berram um grito quase humano. Correm lépidos para fora da sala, não sem antes esbarrar em seus sapatos. Ele coloca sua sacola rente ao sofá puído, furado pelas guimbas de cigarro que lá caíram porque negligenciou a busca do cinzeiro. Senta no chão e ali fica horas, inerte. Não sabe se come os restos da refeição que logrou fazer na rua, colocados num saco plástico já deteriorado. Imagina que seria prudente tomar um banho após quase duas semanas de abstenção à água. Incomoda-se muito pouco com o cheiro que exala de suas roupas e do suor escuro, porque misturado com as crostas de sujeira de seu corpo. Regozija-se, aliás, com elas. Crava-lhe as unhas compridas para depois deleitar-se ao tirar as pequenas fileiras de gordura ali acumuladas e levá-las ao nariz. Desiste da refeição e do banho. Afaga a testa com o indicador, deslisa o dedo até encontrar o limite da peruca loira, amarelo-cor-de-gema, que lhe atribui um inconteste aspecto postiço. Deita no colchão, boceja e dorme um sono profundo, bastante atormentado. Sua aparência repugnante é mais uma cor a compor o quadro daquele lugar sombrio.

Ele somente sonha um sonho tranqüilo quando Alferes posta-se ao seu lado, a cabeça empinada, como a insinuar que o assiste a cada instante. Por certo não tem ciência da presença do felino, mas a sente. O nariz adunco não lhe é bastante para aspirar o ar que precisa; por isso, recorre à abertura da boca com certa freqüência. O cheiro fétido exalado de seu estômago já constituiu interesse para o bichano que, com andar ressabiado, chegara perto do dono, olhara furtivamente as lacunas frontais de sua dentição e abandonara o intento de saborear o que quer que se mostrasse atraente.

Ao acordar, já na manhã seguinte, não boceja, não espreguiça; apenas olha com indiferença para os raios do sol que incidem sobre o rabo de Alferes. Imagina que poderia dar ao gato dileto um tratamento mais requintado: tosa, banho e consultas periódicas ao veterinário. No inverno colocar-lhe-ia uma roupa meticulosamente planejada para seu corpo. As patas, ah... as patas seriam calçadas com meias antiderrapantes... No verão, como a insinuar a fidalguia do bicho, limitar-se-ia a colocar um laço pomposo em sua cabeça. Fosse qual fosse a estação do ano, não deixaria de passar algum xampu manipulado em farmácias, dessas que atendem gente... Tudo isso só faria sentido uma vez rico. Uma vez rico! Sim, ele já fora rico. Houve, em tempos mais ditosos, um conforto a permear aquela vida hoje decadente.

Ele agora permanece deitado, como a recordar sua história pretérita. Lembra-se de quando, concluído o colegial, dissera ao pai que pretendia mesmo gozar a vida. Não lhe passava pela cabeça a possibilidade de qualquer labor; não havia, ademais, descoberto sua vocação. Na falta de uma, resolvera que vagabundear não seria mau negócio. Especializara-se em modalidades várias de vícios: bebidas, fumos, jogos e também mulheres. Estas lhe eram tão íntimas que não usava o tempo para conhecê-las; restringia-se apenas a aproveitar aquelas disponíveis. Eram muitas, invariavelmente ao seu dispor. Não se importava se alguma delas não lhe pudesse satisfazer a contento. Nesses casos, solicitava a presença de outra que certamente o saciaria de pronto. Era generoso com a retribuição dos favores sexuais prestados. Ao término da cópula, sentia ainda mais prazer emitindo frêmitos cadenciados enquanto tateava levemente as notas destinadas ao pagamento. Dobrava-as em seqüência de valores; do menor para o maior, como a sugerir que tudo tenciona ocorrer evolutivamente. Pegava o elástico amarelo, manchado, dava duas voltas no maço de notas e ouvia o estalar da borracha no papel. Era o ápice!

Não quisera casar-se. Tivera um rompante caso de amor, desses arrebatadores. A princípio, Lucélia lhe deixara inebriado de paixão, suspirando forte sempre que a via. Emoções batiam-lhe no peito e o coração batia forte, sempre muito forte. Sentia odores, os mais agradáveis. A moça entrevira sua preferência por aromas doces, dulcíssimos. Banhava-se com ervas, fragrâncias finas. Sabia como lhe agradar. Seduzira-o pela primeira vez num bosque, enquanto passeavam. Ali mesmo, entre um jequitibá e outro, consumaram a paixão. Ele, afoito; ela, tranqüila e sem medo. A partir de então passaram a abusar da privacidade que quatro paredes poderiam lhes propiciar. Os lençóis cheirosos, limpos e passados; o tinto, devidamente respirado, aguardando pelo primeiro trago; o som tocado de alguma composição apta a estimular a lascívia; a facilidade para o despojamento das indumentárias... Isso apetecia mais a ele do que a ela. Era, enfim, um rapaz de costumes refinados. Ela sabia disso...

Propusera-lhe casamento. Lucélia ansiava constituir família. Os parcos proventos que recebia não lhe eram suficientes. Ele declinou da proposta, que julgou, aliás, indecorosa. Um desvario! Onde já se viu! Casamento... Continuara com a vida promíscua, pródiga e em tudo exagerada!

Morrera-lhe o pai. Chorou a morte do velho ciente de que o vultoso patrimônio herdado logo mais seria digerido, queimado juntamente com as mulheres, os jogos, os vícios, os vinhos. E, assim, deixara de copular, de jogar, de tragar...

Naquela manhã, pelejando compreender sua aviltante condição social, sobreviera-lhe algum traço de consciência possível. Em profunda solidão, depositara o olhar rútilo nos incômodos espelhos dispersos pela sala e vira, de modo inequívoco, a si próprio. Era eu quem me olhava, buscando sonegar, ao menos dessa vez, os tributos que a vida me cobrava.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Tom Jobim, sempre

Hoje faz 16 anos que Tom Jobim morreu. Pela falta de tempo e pela necessidade de recordá-lo, sempre, segue abaixo o link para o post publicado em 08/12/2008.

Trata-se de A morte do Maestro Soberano