sábado, 23 de fevereiro de 2013

Livros impressos


Os livros são objetos transcendentes 
Mas podemos amá-los do amor táctil 
Que votamos aos maços de cigarro 
Domá-los, cultivá-los em aquários, 
Em estantes, gaiolas, em fogueiras 

Ou lançá-los pra fora das janelas 
(Livros - Caetano Veloso)

Certa vez, na Livraria Cultura, flagrei uma vendedora aspirando as páginas internas de uma obra qualquer. Indagada sobre sua inusual atitude, disse-me que não conseguia deixar de cheirar um livro quando recém-adquirido pela livraria. Talvez a moça, a exemplo do que descreveu Caetano Veloso, possa amar os livros "do amor táctil". De minha parte, não tenho essas excentricidades e, hoje, já hesito em afirmar que o livro impresso não irá acabar.  

Quando iniciei minha atividade de leitura, tinha apreço por livros velhos, encontrados em sebos. Campeei por raridades e edições esgotadas em vários estabelecimentos, livrarias e bibliotecas. Ao achar alguma coisa interessante, ficava feliz, com o sabor de uma conquista. Assim foi quando encontrei a Ontologia do ser social, de Lukács; A consciência conservadora no Brasil, de Paulo Mercadante; Tratado de Sociologia, de Luis Recaséns Siches e os livros de Caryl Chessman (o verdadeiro bandido da luz vermelha), inexistentes no Brasil em tradução para o português.

A cada descoberta, um ponto, um regozijo. A sensação de ter acesso a algo que praticamente desapareceu é muito prazerosa. É como se pudéssemos agarrar com veemência alguma coisa que está na iminência de acabar. Assim, a leitura dessas obras era ainda mais valorizada.

Aos poucos, os livros antigos foram perdendo o glamour. Depois de lidos, já não tinham mais utilidade a não ser a insossa possibilidade de falar a alguém que tal edição – raríssima! – havia caído em minhas mãos.

Não é só isso. O tempo também é implacável com os livros. Refiro-me não ao seu conteúdo, mas à sua forma física. Tornam-se deformados, puídos e, sobretudo, inesgotáveis fontes de ácaros. Embora tenha vontade de relê-los – ou mesmo consultar uma passagem ou outra – a tarefa torna-se inviável.

Teria vários exemplos para mencionar aqui. Minha edição de “Formação da Literatura Brasileira” – clássico da crítica literária nacional, de Antonio Candido – foi impressa naquele papel semelhante ao de jornal. Os dois volumes foram condensados, formando um catatau considerável. Hoje, é um acúmulo de poeira e microbichos passíveis de serem inalados por qualquer incauto. Qual é a possibilidade de eu voltar a manusear esse exemplar? Quase nenhuma. Ele está na lista para a próxima doação (alguém se habilita?).

Depois que soube ter alergia crônica, o afastamento desses livros quase se me impôs, como um castigo. A despeito disso tudo, existe, ainda, uma necessidade de guardar algumas obras impressas. Meus volumes d’ “O Capital” tem anotações da época da graduação. Ali estão informações das primeiras vezes que, maravilhado, li “A assim chamada Acumulação Primitiva” e “A mercadoria”. Como me desfazer desses volumes?

A mesma situação pode ser mencionada em relação às várias obras de Mário de Andrade, adquiridas ainda no início da década de 1990. O que fazer com todos aqueles volumes já anotados, fichados, que um dia serviram para alguma reflexão interessante? Já ofereci a amigos. Espero que eles ainda venham buscá-los. Aliás, preparo uma doação de quase todo meu acervo. Assim que criar coragem....

Se me arrependerei disso? Espero que não. Apenas manterei a expectativa de que um dia todos esses títulos sejam lançados em formato digital. Enquanto isso não acontecer, vou guardando um número considerável de obras cuja leitura (ou releitura) me parece, cada vez mais, distante.

A atitude de tatear um livro, virar suas páginas, marcar a orelha, etc. já não me parece mais tão prazerosa. Ando preferindo algo mais fácil de se manusear, podendo ler nos eReaders, nos Tablets e até mesmo no celular. Isso, contudo, é assunto para depois.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Terceira opção

Terceira opção - Roberto Barbato Jr

A terceira opção é pouco provável e talvez não passe mesmo de um sopro de esperança. Como o momento da transcendência deve ser precedido pela  narrativa da vida pretérita, pintemos um quadro animador. Afinal de contas, sonhar é gratuito e, a rigor, não faz mal nenhum.

Durante toda a minha vida, não houve um momento sequer de privação material. Sempre tive o que queria. Para mim, querer era poder. Em virtude disso, não precisei trabalhar arduamente. Como filho de uma família aristocrata e muito abastada, entendi, desde cedo, que fazer firula era um meio de vida. Apenas para não ficar desagradável aos olhos dos menos afortunados, fingia lograr algum tipo de atividade laborativa. Isso mesmo, simular o trabalho era quase uma necessidade para privar de algumas companhias que me apeteciam. Mera forma de socialização. 

Sabe-se que o dinheiro não compra felicidade e, bem ao contrário do que dizem por aí, não manda buscá-la. É certo que também é incapaz de adquirir saúde. Mas que ajuda, isso ajuda. O meu caso é exemplar. Fiz esportes, alimentei-me bem, dormi a contento e pude desfrutar de excelente orientação médica. Nunca fumei, não usei drogas e quando ousei beber, era apenas para degustar, com parcimônia, o sabor de algum vinho. A genética, componente fundamental desse processo virtuoso, sempre me foi favorável. Hoje, com a idade já avançada, não tive nenhum diagnóstico de qualquer doença degenerativa, nenhuma ocorrência de neoplasia e tampouco adversidades de ordem cardíaca. Minha lucidez é constantemente aprovada pelos meus netos. Eles adoram me testar.

Como este relato vai remanescendo enfadonho, resolvo encerrá-lo, não sem antes assinalar que amei, constante e intensamente. Construí família digna de inveja. Uma prole unida, sem desvios ou qualquer tipo de desventura significativa.

Agora, cabe-me apenas projetar o que virá. Numa tarde de sexta-feira, em pleno outono, estarei na sala de casa. Será um cômodo bem asseado, com acústica ímpar. Quase deitado no sofá, após sorver uma taça de tinto e degustar um Monte Cristo, ficarei, uma vez mais, encantado com a melodia da música que estará grassando pelo infinito, sem nenhuma interferência. Ao meu lado, aberto no capítulo do Paraíso, repousará um exemplar da Divina Comédia. Beatriz estará ali para conduzir Dante, tal como desejei que me acontecesse na primeira opção.

Já em estado de torpor, algum desconforto anestesiado irromperá subitamente dentro de mim. Com a placidez de quem realmente merece descanso sem sofrimento, tombarei a cabeça para o lado. Meu corpo aguardará estático e rijo até que alguém tenha ciência do meu fim.

Em tempo: é óbvio que esta narrativa padece de um sério problema: a omissão da música que estará tocando no momento da partida. Deixarei uma lista aqui na próxima semana. Mas, desde já, aguardo sugestões.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

Veríssimo e o Jazz


Veríssimo e o Jazz

Que Veríssimo toque Saxofone, não é novidade. O que soa curioso – ao menos para mim foi motivo de surpresa – é seu conhecimento e sua paixão pelo Jazz, pelos seus maiores representantes e pelas peculiaridades técnicas desse estilo. Tudo isso e um pouco mais é abordado em seu recentíssimo Jazz, publicado pela editora Foglio, em formato digital (sim, é um e-book). Não sei se os textos ali reunidos foram publicados em algum veículo ou coletânea de crônicas.

Então, quer dizer que Veríssimo – um dos maiores cronistas brasileiros – publicou um trabalho de exegese e crítica musical? Nada disso. O que se lê nas páginas digitais são, também, crônicas. Algumas delas têm caráter puramente ficcional, como é o caso daquela em que ele narra o encontro entre Jorge Luis Borges e Benny Goodman, ambos mortos em junho de 1986. O diálogo entre eles contrasta o universo da música com o da literatura. Ali, quase se trava um duelo estético.

A obra se inicia com especulações sobre a origem da palavra Jazz, passa pela exposição de características técnicas de Dave Brubeck e Paul Desmond, aponta a paixão de Miles Davis pelo boxe, compara a extração social de Cole Porter com a de Gershwin e revela a verdadeira identidade do saxofonista Bob Fleming (alguém o conhece?).

Veríssimo é dos poucos cronistas capazes de fazer com que uma narrativa com dados biográficos se assemelhe a melhor ficção, como se fosse, de fato, uma estória criada. O leitor de Jazz ficará estupefato – e talvez até desconfiado – ao se deparar com breve relato sobre o dia em que, ainda jovem, o autor perambulou por Nova Iorque em busca de sessões musicais e se deparou com... ninguém menos que Charlie Parker e Dizzy Gillespie. O detalhe: encontrou-os juntos, tocando no mesmo palco, no Birdland. Fantástico!

Por essas e tantas outras, vale apreciar Jazz.

Boa leitura para os interessados! E muito Jazz, mesmo durante o carnaval!

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Segunda opção


Segunda opção - Roberto Barbato Jr

Meu corpo já putrefaz. Bebi, fumei, experimentei ervas e essências. Um sedentário incomparável. Nunca segui uma prescrição médica. Por décadas, dormi mal e pouco. Materialmente também sou uma catástrofe. Gastei tudo o que ganhei, sem pudor. Não acumulei, não projetei, não previ. Vivia a oportunidade do momento. Pagava o almoço, o aluguel e as putas. O que entrava, saía.

O futuro ainda não existia.

Agora, estou convicto de que já vivi mais da metade da minha vida. Daqui para frente, o caminho será pesaroso. Sujeitar alguém a viver é o pior castigo. Muito pior que a morte. Não é isso que dizem?

Não terei mulher. Meus filhos não saberão onde estarei. A dona da pensão a que serei relegado, depois de alguma paciência, vai me despejar por motivos óbvios: meus serviços não lhe serão mais úteis. Sem alternativa, desembocarei num abrigo municipal, ávido por uma sopa e um cobertor capaz de me ensejar alergia. Serei alocado em um cômodo fétido, recendendo a urina. Minha cervical, quase pó de osso, não me permitirá dormir. Anti-inflamatórios me serão negados, sob a desculpa de que a verba para remédios foi há muito cortada pelos gestores da coisa pública (justo pra mim que, um dia, acreditei no Estado). Quando chegar o verão, a coluna de certo vai melhorar, mas os pernilongos e as baratas farão a festa. Malditos.

Eu sei, eu sei. Esse cenário é quase idílico diante das doenças que estarão em curso. Males, síndromes degenerativas e infecções de toda sorte. Dor de verdade, sem nenhuma droga para aplacar. Com a superveniência de uma isquemia, metade do meu corpo ficará paralisado e eu sucumbirei na cama. Ficarei todo cagado, mijado, esperando que alguém me limpe. Será insuportável.

Só, então, vou me arrepender de não ter agarrado a primeira opção. Seguirei desgraçadamente acordado. E vivo.