sábado, 28 de julho de 2007

"O caso da Aranha" - Mário de Andrade

"O caso da Aranha" - Mário de Andrade

Como estou sem tempo e prometi postar algumas crônicas do Mário, segue abaixo uma delas... É uma delícia. Faz parte d' O Turista Aprendiz, obra de anotações etnográficas datadas da década de 1920. Não me estendo mais... Tampouco comentarei a crônica.

É só... Por ora é só...

***

O CASO DA ARANHA

ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 307.

"Este primeiro dia de Paraíba tem que ser consagrado ao caso da aranha. Não é nada importante porém me preocupou demais e o turismo sempre foi manifestação egoística e individualista.

Cheguei contente na Paraíba com os amigos, José Américo de Almeida, Ademar Vidal, Silvino Olavo me abraçando. Ao chegar no quarto pra que meus olhos se lembraram de olhar pra cima? Bem no canto alto da parede, uma aranha enorme, mas enorme.

Chamei um dos amigos, Antônio Bento, pra indagar do tamanho do perigo. Não havia perigo. Era uma dessas aranhas familiares, não mordia ninguém, honesta e trabalhadeira lá ao jeito das aranhas. Quis me sossegar e de-fato a razão sossegou, mas o resto da minha entidade sossegou mas foi nada! Eu estava com medo da aranha. Era uma aranha enorme...

Tomei banho, me vesti, etc. fui jantar, voltei pro quarto arear os dentes, ver no espelho se podia sair pra um passeinho até a praia de Tambaú, mas fiz tudo isso aranha. Quero dizer: a aranha estava qualificando a minha vida, me inquietava enormemente.

Passeei e foi um passeio surpreendente na Lua-cheia. Logo de entrada, pra me indicar a possibilidade de bom trabalho musical por aqui, topei com os sons dum coco. O que é, o que não é: era uma crilada gasosa dançando e cantando na praia. Gente predestinada pra dançar e cantar, isso não tem dúvida. Sem método, sem os ritos coreográficos do coco, o pessoalzinho dançava dos 5 anos aos 13, no mais! Um velhote movia o torneio batendo no bumbo e tirando a solfa. Mas o ganzá era batido por um piazote que não teria 6 anos, coisa admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou, pediu pra uma menina fazer a parte dele. Essa teria 8 anos certos mas era uma virtuose no ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas habilíssimas orquestrinhas maxixeiras do Rio, quem excedesse a paraibaninha na firmeza, flexibilidade e variedade de mover o ganzá. Custei sair dali.

Os coqueiros soltos da praia me puseram em presença da aranha. O passeio estava sublime por fora mas eu estava impaciente, querendo voltar pra ver se acabava duma vez com o problema da aranha. Nuns mocambos uns homens metodicamente vestidos de azulão, dólmã, calça e gorro. Eram os presos. São eles que fazem as rodovias do Estado e preparam os catabios. Não fogem. E não sei porque não fogem.

E fiquei em presença da aranha outra feita. Olhei pro lugar dela, não a vi. Foi-se embora, imaginei. De-repente vi a aranha mais adiante. Está claro que a inquietação redobrou.. De primeiro ela ficara enormemente imóvel, sempre no mesmo lugar. Agora estava noutro, provando a possibilidade de chegar até meu sono sem defesa. Pensei nos jeitos de matá-la. Onde ela estava era impossível, quarto alto, cheio de frinchas e de badulaques, incomodar os outros hóspedes, fazer bulha. A aranha deu de passear, eu olhando. Se ela chegar mais perto, mato mesmo. Não chegou. Fez um reconhecimentozinho e se escondeu. Deitei, interrompi a luz e meu cansaço adormeceu, organizado pela razão.

Faz pouco abri os olhos. A aranha estava sobre mim, enorme, lindos olhos, medonha, temível, eu nem podia respirar, preso de medo. A aranha falou:

- Je t'aime".

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Questões de linguagem

Questões de linguagem

Durante o dia de ontem, em meio a tanta coisa, pensei se deveria levar adiante esse blog. Não sabia o que escrever. Decidi falar sobre linguagem, ainda que isso possa soar redundante para os textos iniciais.

Pois bem... Inquietam-me sobremaneira as questões de linguagem. Como narrar? Qual é o critério usado pelo autor para definir o fio narrativo? Não sei... Sei que Mário de Andrade tinha uma forma bem peculiar de escrever. É certo que no caso dele, subjacente à linguagem empregada, havia uma ambição maior: o projeto de aproximação entre o português falado e o português escrito. Suas crônicas, sobretudo aquelas produzidas nas décadas de 1920 e 1930, evidenciam o quanto investira nesse projeto. Não é só: a tal Gramatiquinha da Língua Portuguesa talvez seja a expressão mais candente de sua preocupação com a nossa língua. Por causa dela, o líder modernista recebera ataques os mais variados. Graciliano Ramos, por exemplo, a rotulara de "frescura", em Linhas Tortas. Quanto a Macunaíma...

Espero futuramente postar algumas crônicas do Mário por aqui. Valerá a leitura...

É só... Por ora é só...

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Sem compromisso: a razão desse Blog

Sem compromisso: a razão desse Blog

Tenho a impressão de que muita gente não escreve por excessivo zelo da linguagem. Incapazes de publicar algo descompromissado, alguns preferem simplesmente renunciar ao ato da escrita. São indivíduos que temem a tela branca, a escassez de idéias e ficam receosos de tudo, de toda crítica que lhes possa atingir. Por não abrir mão do perfeccionismo, optam pela resignação, pela voz calada, surda e anódina. Besteira? Quem sabe?

Já escrevi várias vezes a mensagem de abertura desse Blog que, aliás, era outro. Chamava-se Literocinemusical. Um vexame de título! Faltoso de criatividade e tudo o mais. Transfiro para cá, após anos, algumas das anotações de lá... Espero, contudo, que dessa vez a iniciativa tenha vida longa.

Jamais fico satisfeito com a minha escrita. Se pudesse, retocaria tudo, burilaria reiteradamente o texto até encontrar a forma ideal, aquela capaz de me satisfazer. Como ela nunca existirá, resolvi desistir... Desisti de buscar a forma ideal, bem entendido. E, por isso, arrisco-me a falar de tantas coisas quantas me parecerem interessantes. Sem rigor, sem compromisso...

É essa a razão do Blog: escrever sem compromisso!

Lembrei-me de um belíssimo trecho d' Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, no qual é possível notar a insatisfação de quem trabalha com a escrita e se vê na obrigação de cumprir determinadas normas que se revelam inúteis e, na maioria das vezes, pouco práticas. Vale a pena lê-lo! Ei-lo:

"O embaixador causa-me muitos dissabores, eu já o previra. É o tolo mais metódico que se pode imaginar; quer tudo passo a passo e é minucioso como uma comadre. É um homem que nunca está contente consigo mesmo e do qual ninguém é capaz de colher palavras de gratidão. Trabalho sempre apressado e não gosto de retocar as coisas, e isso lhe dá ocasião para devolver-me qualquer escrito e dizer: ' Não está mal, mas reveja-o, encontra-se sempre um termo melhor, uma partícula mais castiça'. Nesses momentos, de bom grado mandaria tudo ao diabo. Nem um 'e', nem a mínima conjunçãozinha pode ser omitida, e é inimigo mortal de toda ordem inversa, que às vezes me escapa. Se um período não for construído segundo a velha musiquinha de costume, ele não entende e não aceita nada. É um martírio ter de trabalhar com um homem assim".

(GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Tradução, organização, prefácio, comentários e notas de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001).

Por fim, o comentário derradeiro: o título Lápis impreciso foi tirado da letra de Tempo e Artista, do meu autor soberano, Chico Buarque.

É só... Por ora é só...