sábado, 6 de novembro de 2010

Era carnaval

Era carnaval – Roberto Barbato Jr

Era carnaval. O desfile das Escolas de Samba talvez fosse o único programa para aquela noite. Hesitara ligar a TV, temendo que todo seu passado viesse à tona, em quadros nítidos, detalhistas. Temia por isso e não raro evitava qualquer situação capaz de fazê-la regredir no tempo. Pensara que devesse dormir, mas a idéia lhe soara covarde. Aceitara o desafio, não sem antes preparar uma dose de malte importado que houvera guardado para ocasiões especiais.

Uísque em punho, TV ligada. Acompanhava o desfile observando cada minúcia das fantasias. Apreciava-as. A velhice não fora capaz de elidir o despudor que tivera nos anos de juventude. As mulheres desnudas, seios aparentes e as nádegas destacadas pelas câmeras não lhe causavam nenhuma espécie de repulsa. Não tinha, ademais, o falso moralismo característico das mulheres de sua geração. Não sabia, por questão de natureza, ser hipócrita. Agira assim desde sempre. Agora, tão-só e concentrada, via a pouca vergonha de que outrora fora cúmplice, sem ter de opinar e tampouco se defender. Se quisessem, poderiam se desnudar por inteiro, pensava sobre as meninas da tela. Tanto fazia. Era carnaval.

Lembrava-se com sabor dos anos em que figurava como a mais destacada vedete do Teatro de Revista. À época, tachada de sirigaita, fazia questão de afrontar as senhoras de família. Deixava as coxas à mostra, despertando a lascívia masculina. Não abria mão do alto salto, sempre a retesar a panturrilha, de modo a evidenciá-la em seus mais definidos contornos. Rebolava vulgarmente, içava a anca, dando giros sutis para que parecesse provocante. Mesmo os homens menos abnegados lhe enxergavam um excesso de leviandade.

O ônus de sua irreverência, contudo, fora pesado: apaixonara-se e casara-se com Heitor Fontana. Político ambicioso, Heitor logo se encarregara de enfrear a mulher. Dela exigia que o acompanhasse, resignadamente, em jantares os mais enfadonhos, típicos da classe política de então. Dela também exigia que se vestisse assaz contida. Por ele, teria que abandonar os hábitos da vida pregressa, os dizeres, as indumentárias. Não foi sem relutância que fizera tudo isso. Depois, dera um, dois, três filhos ao marido.

Os meninos cresceram ouvindo, sempre à socapa, comentários sobre o passado da mãe. Acometia-os um sentimento de injustiça, como duvidassem do teor daquelas narrativas. Trancavam-se na biblioteca com o pai, a fim de confirmar a veracidade dos boatos.

Eram filhos da puta!

Do dia para a noite, os comentários cessaram: Heitor ocupara pasta no Ministério. Já não eram filhos da puta, os meninos. Eram filhos-do-Ministro. Ela passou a ser a mulher-do-Ministro, a senhora Fontana. Tivera de se conter ainda mais. Haveria de reprimir-se demasiado, senão pela vontade, pela força. Passara a freqüentar, com relativa assiduidade, eventos ligados a ações beneméritas. Chás com primeiras damas e salões de beleza, embora não lhe interessassem, eram-lhe menos inconvenientes. A proximidade com o poder, o requinte e a abundância financeira não lhe causavam prazer, entretanto. Pudesse optar, continuaria na vida de tempos pretéritos, participando de espetáculos de casas de show, exibindo os belos dotes físicos que Deus felizmente lhe dera.

Rebelara-se um dia. Deixara de ser a mulher de Heitor, mãe de seus filhos, mulher de ministro, enfim. Tivera um repente e voltara para vida noturna. Assinara contrato com uma casa de prestígio. Lá fatalmente compareceriam os amigos do marido e - quem sabe? – até os filhos.... Sentira orgulho da decisão. Irromperia contra qualquer adversidade, manteria seu firme propósito. A idade, já um pouco avançada para quem possui tamanhas pretensões, não lhe dedicara peso nenhum. Era com leveza que reacendia as chamas do antigo ofício, com paz de espírito e, sobretudo, com serenidade.

Inconformado, Heitor fizera várias diligências: fechara a casa, procurara abafar o pretenso escândalo, comprara a imprensa. Tudo quanto pudesse ser resumido às cifras de sua posse seria devidamente utilizado. Lançara mão de todos os expedientes para que sua reputação não fosse conspurcada. Não escondera a verdade dos meninos, já crescidos. Desde então Julieta jamais fora vista em festas e coquetéis. Passara extenso tempo reclusa em casa. Dizia-se que sofria dos nervos, tendo se submetido, inclusive, a incansáveis tratamentos de choque e terapia.

Mudara o governo. A carreira promissora de Heitor não resistira ao segundo ato. Sobreviera-lhe um infortúnio quando, imprudente, deixara-se levar pelos sedutores louros da corrupção. Não fora capaz de se aprumar tal como seus pares faziam com tanta facilidade. Restara-lhe apenas o ofício de causídico e, mesmo este, diante de circunstâncias tão vexaminosas, não lhe pudera garantir o padrão de vida com o qual havia se acostumado. As causas que assumia eram raras e pouco rentáveis. Os filhos, destituídos de habilidades profissionais, tiveram de procurar emprego! Findaram-se as polpudas mesadas que serviam a extravagâncias de variado gênero.

Emprego!, diziam de si para si mesmos, a boca desdenhosa, torta.

Julieta a tudo assistia calada. Testemunhava a decadência material da família sem um mínimo de compaixão pelos seus. Achava mesmo que os filhos deveriam tomar tento, mostrando-se úteis de alguma maneira. Chamava-os para conversar.

Vagabundos! Eram vagabundos! Uns indolentes.

Desentendera-se com todos, não falava mais palavra com nenhum. Heitor expulsara-a de casa. Que fosse aos infernos! À merda! Pagara-lhe o aluguel de uma edícula fétida, no subúrbio da cidade. Deixara-a apenas com a memória sadia, apta a lhe dar alguma satisfação. Vivia só, embriagada de recordações.

Naquela noite, por longas horas, entre cores, sons, alegorias e nomes, pôde rever toda sua vida. Esboçando um riso furtivo e sarcástico, pensou em Heitor. Pensou no ministro. Pensou nos vagabundos. Pensou nos filhos da puta. Pensou também que nada mais importava: era carnaval.

Um comentário:

Morelli disse...

Oi, tudo bem!
Obrigado pela visita.
Quando souber de alguma novidade, me avise pelo blog ou Twitter.
Bacana teu blog.
Gostei do post das pesquisas eleitorais.
Até+