quinta-feira, 22 de maio de 2008

Adorando Fernanda Young


Andei sumido. É a falta de tempo. Voltei, embora ainda falte o tempo...

O título desse post só poderia resultar no gerúndio... É que, para os desavisados, o título do programa da Fernanda é "Irritando Fernanda Young" (IFY). Até aí, tudo bem. Mas, por que o infame trocadilho? Nem eu sei... Adoro a Fernanda! Isso basta...

Já havia iniciado um post sobre sua sinceridade espontânea quando despertou-me interesse pela leitura de seu último romance: Tudo que você não soube (Rio de Janeiro: Ediouro, 2007). É óbvio que não vou fazer nenhuma resenha do livro. Tampouco vou contar a história, adiantando tal ou qual detalhe do livro.

Pelo título da obra é possível perceber que se trata de uma confissão ou de algumas memórias. A narradora tem um pai moribundo e, por razões que aqui não convém falar, escreve um amargo relato para ele. Pretende terminá-lo antes que o velho morra.

O livro é repleto de referências aos anos oitenta; várias delas bastante conhecidas; outras, nem tanto. Fernanda retira do baú, sempre oscilando entre o ínicio e o fim daquela década, preciosidades curiosas.

Uma delas é Atração Fatal, filme de Adrian Lyne, com Glenn Close e Michael Douglas. É belíssima a digressão feita sobre a personalidade dos personagens... Em um dado momento da narrativa surge aquela imagem que não sai da cabeça daqueles que assistiram ao filme: o coelho branquinho que está na panela com água fervente, os olhos abertos, cozinhando por inteiro. Pois é pautada nessa situação que a narradora cunha a expressão “coelho-na-panela”. Diz ela: "Uma mulher está coelho-na-panela quando ela fica tão ensandecida com uma situação, que passa a ver razão nas piores crueldades" (p. 40).

Fiquei a pensar que a expressão pudesse ser difundida no universo feminino para denotar situações semelhantes àquelas resultantes da TPM. Seria uma variante da TPM em sua forma social. Se a TPM resulta de fatores naturais, a "mulher coelho-na-panela" resultaria dos intrincados labirintos do relacionamento humano. Em suma, não defluiria de causas orgânicas. Não se imagine como seria a "mulher coelho-na-panela" acometida pela TPM...

Voltemos à expressão... O que a deprecia é a serenidade exigida para colocar o tal coelho na panela em circunstâncias de aflição e ira. Talvez por isso ela soe inviável. Todavia, pensemos.

Como poderia a mulher colocar o bicho na panela? Deveria matá-lo, por suposto. O coitado não poderia ser cozido vivo. Isso seria muita sacanagem (que o digam os defensores dos animais!). Pois bem. Então, seria preciso matá-lo. Mas, como fazê-lo? Não importa. Na hora da raiva, a mulher faria isso, sem hesitar. O segundo passo consistiria em arrumar uma panela na qual coubesse o coelho. Haveria que se procurar por uma. E se ela inexistisse? Se houvesse apenas uma canequinha para ferver a água do café? Suponhamos, para prosseguir com a brincadeira, que a mulher encontrasse a panela. Pacientemente, deveria abrir a torneira e esperar que o recipiente ficasse cheio. Colocaria o coitado na panela, ligaria o fogo e pronto: teríamos um coelho na panela.

Falando assim, tudo parece fácil. Imagine-se, entretanto, uma mulher desperada equacionar todos os dados dessa tarefa e executá-la de modo eficaz. Coisas que só acontecem no cinema...

A expressão derivada de uma trama ficcional não precisa de justificativa. O problema seria a falta de praticidade para pronunciá-la. "Mulher coelho-na-panela" é muito extensa... Não se afigura interessante, sobretudo se comparada à TPM, sigla vagabunda de três letras, curta e fácil de pronunciar...

Esqueçamos a expressão, a mulher, o coelho e a panela.

Outras referências daquela década são mencionadas quando a narradora das memórias refere-se ao SBT. Antes de enumerar alguns programas da emissora, diz ela: "agora, que o SBT fodeu com a minha vida, ah, isso fodeu". (p. 55). Sugere que deveria receber "indenização por perdas e danos" e que essa indenização deveria ser duplicada "por ter visto um filme chamado O Homem Cobra". (p. 55).

Embora não fosse minimamente afeito à emissora (e ainda não sou!), cheguei a assistir ao filme, confesso. Eu era moleque e naquela época não havia internet, TV a cabo e outras modernidades mais. As opções de entretenimento eram exíguas. Daí porque, muitas vezes, tínhamos de assistir ao que se nos apresentava... A vida era muito tacanha!

O Homem Cobra é um inequívoco trash dos anos oitenta. A história é patética... Até onde minha memória alcança, trata-se da trajetória de um sujeito que aceita submeter-se, sabe-se lá por qual razão, a alguns experimentos do pai de sua namorada. E tome picada de cobra no banho! Os tais experimentos não dão certo e o rapaz acaba tendo o organismo todo alterado. Parece desenvolver o couro característico das cobras e outras feições do animal. Pouco a pouco, vai apodrecendo, virando um bicho esquisito. Perde os membros inferiores e superiores. Fica verde. Nessas circunstâncias, o que poderia restar a um homem/animal como ele? Virar objeto de exposição em um circo de aberrações da comunidade local.

Numa noite qualquer, a namorada, que havia tempos não se encontrava com ele, entra no tal circo e passa perto da banheira em que o coitado se encontra. A seguir temos a seguinte sequência: ela olha para ele, ele emite alguns grunhidos como a insinuar sua identidade pretérita, ela berra, balança a cabeça, descabela-se, chora e sai correndo. Os incautos telespectadores ficam sem saber se a moça o teria reconhecido ou se apenas ficou aparovada com a aparência daquela criatura. Não sei como o sujeito termina... Nem o filme. Não cheguei a sonhar com ele, mas espero não vê-lo nunca mais...

Se comecei a falar da Fernanda e logo passei ao livro é porque há alguma razão. Embora se diga que geralmente o autor se esconde por trás de seus personagens, gerando um cômodo álibi, acredito que há um pouco de Fernanda Young na narradora daquelas memórias. Há momentos em que o leitor pode supor uma identificação entre a autora e a personagem da trama. A consonância entre as opiniões da Fernanda expressas no programa e verificadas na trama do livro talvez corrobore minha impressão. Quem quiser conferir, deve assistir ao programa e ler o livro. Valerá a pena.

Para terminar, explico a sinceridade espontânea aludida no início desse post. Fernanda Young é a única personalidade midiática capaz de afirmar diante das câmeras que desejaria chamar alguém de vaca no trânsito (entrevista com Caio Blat), é a única capaz de reputar punheteiros os moleques que andam em bando e xingam meninas gordas (entrevista com Cláudia Gimenez), é a única capaz de confessar, em tom de pilhéria, o pavor de vento encanado, herança da criação de seus avós (não lembro quem era o entrevistado). É espontaneamente sincera porque capaz de declarar que a voz de Paulo Miklos é a melhor dentre todas as demais dos Titãs; porque capaz de declarar, sem nenhuma histeria, que invejou Paula Toller quando a moça cantou com o Chico...

A Fernandinha – ela que me perdoe a inconveniente intimidade – é inteligente, bem humorada e simpática. Com ou sem TPM, coelho-na-panela, homem cobra e o escambau, é a salvação dos domingos.



terça-feira, 6 de maio de 2008

O segredo de Mário de Andrade: memórias de um assassino

O segredo de Mário de Andrade: memórias de um assassino

Conto originalmente publicado no Portal Cronópios (http://www.cronopios.com.br), em 03/05/2008.


Observação: os personagens verídicos constantes desse conto, embora inseridos em seu contexto histórico, são tratados de forma ficcional numa mistura de fantasia e realidade. Esse é, portanto, um conto de ficção.

Mário de Andrade morreu de infarte do miocárdio, no dia 25 de fevereiro de 1945, madrugada de domingo. Luis Saia, seu amigo, presenciou sua morte. Depois de algum tempo, houve rumores de que Mário lhe teria confidenciado um grande segredo. Muito se especulou a respeito. Alguns achavam que se tratava de uma brincadeira do Saia, outros acreditavam que era verdade.


Muito prazer! Meu nome é Octávio Leal. Eu matei Mário de Andrade. Como sofrera o pobre coitado!

Por trás do nosso grande escritor, estava eu, sempre a incentivá-lo, a fazê-lo crer que suas obras valiam a pena! Apoiava-o incondicionalmente, até o dia em que logrei sua indiferença. Resolvi, então, me vingar. Realizei minha obra prima: arruinei sua vida e depois, sutilmente, assassinei-o.

A história, sempre ingrata, impediu a revelação do meu nome. Ninguém nunca soube de mim. Boicotaram-me, deixaram-me mudo. Jamais uma linha de minha autoria foi conhecida. Resta agora a esperança de que essas memórias caiam nas mãos de algum incauto editor.

Conheci Mário no dia 25 de fevereiro de 1922. Dez dias antes, estive no Municipal, entre a multidão que o vaiou, enquanto lia versos na escadaria. As vaias eram intermináveis, ensurdecedoras. Olhei tudo com perplexidade. Aturdido, resolvi que o conheceria. Encontrei-me casualmente com ele no centro da cidade. Apresentei-me manifestando satisfação com o que lera por ocasião da Semana. Inicialmente, zombou de mim, fez pilhéria: imaginou que estava a fazer troças. Esclareci que falava sério. Caminhamos até a Praça da República em cujas imediações ele fraternalmente me convidou a tomar um lanche no Carlino. Ali conversamos por algumas horas. Elogiei os versos de Paulicéia Desvairada, publicado havia pouco. Disse-lhe que tinha pretensões literárias, mas supunha não levar jeito algum para a coisa. Ouvi seus conselhos com atenção. Ao final da conversa, deu-me seu endereço e convidou-me a aparecer a qualquer hora.

Temi ser inoportuno. Entretanto, na semana seguinte bati em sua porta, na Lopes Chaves. Levei alguns contos ainda esboçados. Queria sua opinião. Pegou-os de minha mão antes mesmo que eu entrasse em sua casa. Subimos as escadas que davam acesso ao seu escritório particular e lá, entre tantos papéis espalhados em sua escrivaninha, sentou-se para lê-los. Aqueles foram minutos longos, duraram mais que a eternidade. A figura de Mário, imponente, dava-me a impressão de que estava diante de um gigante. Suas palavras talvez mudassem minha vida. Sim, porque eu estava disposto a abandonar os negócios de minha família. Já havia tido inúmeras discussões com papai sobre minha incapacidade de administrar as cifras oriundas do ramo cafeeiro. Após ter me formado em engenharia, tive convicção de que queria estrear no mundo literário. Se fosse preciso, sairia de casa.

Ele lia e relia alguns trechos em voz alta. Ressaltava o que lhe parecia interessante. Tomei minha decisão naquele momento. Haveria de me tornar escritor. Hesitei em falar que já tinha começado a redação de um romance. À época, falava-se muito em poesia. Somente mais tarde é que os modernistas se arriscariam no terreno da prosa. Mário, é claro, estava à frente disso tudo. Rascunhava crônicas, contos, poesias e talvez já planejasse algum livro sobre folclore, outra de suas paixões.

Passei a frequentar sua casa para preservar a amizade ainda incipiente. Sempre era muito bem recebido. Vez por outra apresentava-me o que estava escrevendo. Como a esperar por uma opinião favorável, perguntava meu parecer. Aquilo me deixava lisonjeado! Sem se importar com a intromissão, também deixava-me vasculhar sua papelada. Desfrutar da intimidade de Mário era o que de melhor podia acontecer a um homem como eu.

Tudo isso aconteceu até que um grande infortúnio se colocou entre nós. Falo de Paulo Duarte, um dos grandes amigos de Mário. Creio ter sido por volta de 1925 que se conheceram. Tornaram-se íntimos e, por razões que até hoje não compreendo, sempre que se encontravam em minha presença, faziam questão de me ignorar. Sentia-me realmente desprezado. Sabia que Paulo não tinha afeição alguma por mim. Desde o dia em que fomos apresentados, soube que não poderia haver qualquer sentimento de amizade entre nós. O fato de ser filho de um perrepista militante talvez tenha contribuído para essa animosidade. Mesmo assim, convidava-me a participar das reuniões em seu apartamento, na Avenida São João, onde recebia amigos íntimos.

Ah! As reuniões... Paulo bancava todo o estoque de vinho. Falávamos de tudo: literatura, artes, política e até de mulheres. Foi durante uma dessas reuniões que dei a ideia de fundar um instituto de cultura em São Paulo. Já havia pensado nele como uma espécie de embaixada paulistana da cultura, um órgão que pudesse concretizar algumas das ideias que discutíamos calorosamente naquelas noites. Embora a Semana ainda fosse muito falada, achava que era necessário investir em alguma coisa prática. Algo que fizesse dos modernistas não uns loucos, uns desvairados, mas gente de ação.

Como se fosse hoje, recordo-me do olhar de Paulo quando sugeri, quase gritando, em seu próprio apartamento:

– Precisamos de um instituto de cultura.

A bagunça começou com as palmas do Couto de Barros e terminou quando todos principiaram a pensar em elaborar os projetos do tal instituto. Choviam ideias! Quem não as têm nessas horas? Dado o pontapé inicial, todos foram pródigos em elaborar planos e lançar alternativas. No dia seguinte, contudo, ninguém se lembrou de que eu estava lá.

Em poucos anos, o Prefeito Fábio Prado decidira dar vazão à minha ideia: fundara o Departamento de Cultura e de Recreação. Era 1935! Acometeu-me um estado de grande euforia, alimentei ilusões de que algum dia alguém fosse se recordar do instante feliz em que soltei aquela frase.

Muita coisa aconteceu antes do Departamento de Cultura. Voltemos no tempo para que se tenha uma noção do quanto estreitei amizade com Mário.

Apoiava-o em todos os seus projetos. Tal foi o que ocorrera quando tivera um plano maluco: queria ir ao norte, conhecer a região e colher material etnográfico. Lembro-me com nitidez do dia em que me convidou a participar da iniciativa. Faria a viagem para colher partituras, acompanhar danças dramáticas e outras manifestações culturais perdidas pelo interior do Brasil. Dissera-me que iriam d. Olívia Guedes Penteado e suas sobrinhas. Na realidade, o plano da viagem foi dela e Mário só aceitou porque também iam o Paulo Prado e o Afonso de Taunay. Quando eles manifestaram suas impossibilidades de partir é que ela veio me procurar, dizendo se tratar de assunto sério. Eu estava realizado! A pretexto de ter mais um homem na excursão, recorreu a mim. Asseverou que Mário era por demais teimoso e que a viagem ofereceria riscos. Tentou me responsabilizar pela segurança dele.

– O senhor vai, sim. Assunto encerrado! – exclamara categórica.

Fiz-me de rogado, alegando que não gostava de mato, rio, pernilongo. Ela, então, apelou:

– Você é uma das poucas pessoas a quem Mário dá ouvidos.

Aquilo não era verdade. D. Olívia sabia, no entanto, como me conquistar. Uns poucos elogios baratos eram suficientes para que eu cedesse. E, de fato, teria mesmo ido se não tivesse apanhado uma terrível gripe.

– Não aguentarei chegar sequer ao Rio – disse a Mário, mostrando-me enfraquecido.

Prometera que voltaria com uma coleção de partituras e faria questão de executá-las pessoalmente para mim. Durante o período em que estivera por lá, só mandara notícias à família. Eu aguardava ansiosamente por sua chegada, pois sabia que logo se trancaria em seu escritório para sistematizar o material colhido. Quando o regresso se aproximava, d. Maria Luísa, sua mãe, informou-me a data da chegada. Ele fazia questão de minha presença em sua casa. Não se esquecera de mim. Era bom demais saber aquilo.

O novíssimo material esperava o momento de ser utilizado. Mário dissera-me que precisava de tempo, de dedicação. Queria investir em um texto cuja ideia ainda não tinha. Permitiu-me ler as anotações que fizera ao longo da viagem.

Dia após dia, durante duas semanas, examinei tudo. Ao terminar, sugeri que escrevesse um romance. Sim, um romance! Por que não? Aquelas lendas, costumes e tradições dariam um pano de fundo extraordinário para a composição. E haveria de criar também um personagem marcante. Uma espécie de herói, um herói brasileiro...

Confesso que nem mesmo eu estava certo de que aquilo poderia render um livro. Julgava que ele quisesse transformar sua viagem etnográfica em um estudo sobre a cultura nacional. Ainda assim, deixei que comprasse a sugestão. Reiteradamente, colocava a necessidade de elaboração de alguma ficção.

Meses depois, avisara-me que tiraria férias na chácara de seu tio Pio Lourenço, em Araraquara, interior do Estado. Não nos vimos durante longo período. Fiquei a pensar que as tais férias estavam por demais extensas. Encontrei-o no Franciscano, tomando um chope. Mostrou-me alguns papéis datilografados. Eram os originais de Macunaíma. Bati os olhos no primeiro parágrafo. Lambi os beiços, implorando para que consentisse sua leitura integral. Mário recusou, queria que todos lessem quando viesse a lume. Macunaíma era justamente o livro que eu havia idealizado e lhe sugerido. De uma certa maneira, aquilo também era obra minha.

Acometeu-me, então, uma grande decepção. Flagrei-me totalmente ressentido ao me deparar com a primeira edição do livro numa livraria do centro da cidade. Ao abrir o exemplar não pude deixar de procurar pela dedicatória. Mal pude terminar sua leitura:

"A Paulo Prado, a José de Alencar, pai-de-vivos que brilha no vasto campo do céu".

Mário havia me preterido. Meu nome deveria constar daquela dedicatória! Era eu o único homem capaz de merecê-la.

Meses depois, no apartamento do Paulo, insinuei ao próprio Mário o quanto fora interessante minha sugestão. Paulo ouvira a conversa de esguelha e ambos caíram na risada. Enrubescido, partilhei da gargalhada, tendo um choro sentido por dentro. A exemplo de Macunaíma, jurei vingança.

Sim, jurei vingança! Estava decidido: sua sobrevida começaria naquele dia. Para tanto, deveria cuidar para que nossa amizade não desbotasse.

Minha rotina não mudara, exceto pela expectativa de surgir o momento de arruiná-lo. A cada dia levantava-me da cama imaginando a existência de um possível ponto fraco de Mário. Ele devia ter um! Passaram-se alguns anos, vieram as revoluções, fundou-se a Constituinte. Vivíamos um momento de intensa turbulência. Sempre alheio às questões políticas, o poeta continuava o mesmo: às vezes viajava, mas a maior parte do tempo vivia recluso em sua casa, estudando ou escrevendo. Continuei a visitá-lo, fingindo que nada acontecera.

Em maio de 1935, recebi recado de que ele queria ter comigo. Quando cheguei em sua casa, abriu a porta com olhar circunspecto. Terminara de ler os originais do meu romance, entregues em ocasião passada. Se aprovasse meu texto, qualquer editora iria publicá-lo. Seria minha estreia no mundo das letras. Suas observações insinuavam, entretanto, que não havia salvação: minha prosa era pobre e minha linguagem, precária. Não foi preciso que falasse muito, percebi que não haveria futuro para meu livro. Restava-me ir embora, pensar em outro projeto. Repentinamente, Paulo Duarte aparecera.

Aquela manhã entraria para o álbum de minhas memórias mais ríspidas. Paulo procurara Mário para lhe convidar a ser diretor do Departamento de Cultura que o Prefeito Fábio Prado resolvera criar. Não era um sonho, era a mais pura realidade! Fiquei pasmo ouvindo a conversa dos dois. Ao convite, Mário respondeu recusando. Eu ali mudo, quieto, imaginando que alguém pudesse olhar para a cadeira em que me sentara. Quem sabe não seria convidado também? Aceitaria qualquer cargo! Era uma oportunidade única de projeção intelectual. Além disso, a ideia do tal departamento era minha. Num dado momento, Paulo caminhou em direção a mesa de Mário, colocou as mãos em meu manuscrito, leu o título e soltou uma enorme gargalhada. Estava ridicularizando meu trabalho. Mário, ironicamente, meneou a cabeça, como a insinuar a pobreza do texto. Nunca me senti tão revoltado. Se pudesse, arrebentaria os dois! Só me acalmei quando d. Maria Luísa entrou no cômodo, a pedido de Paulo. Ambos convenceram Mário a aceitar o convite. Mais uma vez, o maior intelectual daquela época seria promovido às custas das minhas ideias geniais.

Ele apostou todas as suas fichas no Departamento de Cultura. Ouvindo-o falar a respeito, qualquer um teria a impressão de que se tratava da grande obra de sua vida. Junto dele estavam Sérgio Milliet, Rubens Borba de Morais, Nicanor Miranda e, é claro, Paulo Duarte. Numa São Paulo que crescia freneticamente, eles revolucionaram a cultura paulistana. Concertos gratuitos, Bibliotecas Ambulantes, estudos sobre folclore, Parques Infantis, criação de uma Discoteca Pública... Estava em curso um projeto de democratização cultural jamais visto no Brasil. Tudo isso e muito mais teria dado certo, não fosse minha interferência e algumas contingências da história.

Não poupei esforços para arruinar o Departamento. Foi complicado derrubar aquele pessoal: Mário, Sérgio, Borba e Paulo eram já homens influentes, gozavam de prestígio junto a Fábio Prado e a Armando de Salles Oliveira, governador de São Paulo. Por isso, tive de usar justamente uma arma repudiada pelo próprio Mário: a política. As contendas entre os perrepistas e os democráticos ainda eram visíveis. Mesmo após a união das agremiações em torno da Frente Única o clima de animosidade perdurara. Encontrei aí minha estratégia de vingança. A militância política de meu pai e o contato que desde a infância eu tinha com os líderes do PRP me proporcionariam a munição eficaz para a morte de Mário. Lembrei-me de um redator da Gazeta e do Correio Paulistano, ambos jornais da oposição. Era amigo de minha família e nos devia alguns favores. Não foi preciso muito esforço para convencê-lo a publicar uma série de artigos caluniosos sobre o Departamento. Aquilo tocaria profundamente a vaidade intelectual de Mário.

No início de 1936 publiquei na Gazeta um texto que teria ampla repercussão. Atacava frontalmente a iniciativa das Bibliotecas Populares. Por razões óbvias não o assinei. Sabia que agrediria o Borba, a quem tanto gostava, mas Mário seria o maior atingido, já que respondia por tudo. No dia da publicação, como se nada tivesse ocorrido, passei por sua casa. Quando cheguei, vi-o tremendo de raiva. Ele sussurrava trechos do artigo, batia no jornal e exclamava coisas impensáveis. Mostrava para mim aquilo que saíra de minha própria pena. Eu conhecia o teor daquele texto como ninguém, palavra por palavra. Procurei acalmá-lo, demonstrei-me condoído. Por dentro, regozijava-me. Minha vingança estava apenas começando.

Artigos não bastavam, queria mais. Em outubro daquele ano, procurei por Sílvio Margarido, vereador da oposição. Em meio a nossa conversa, mencionou seu descontentamento para com o Departamento. Disse-me que os gastos com as brincadeiras daqueles "futuristas", como se costumava dizer para irritar Mário, eram enormes. Dei-lhe a ideia de contestar, em sessão na Câmara Municipal, as atividades em andamento. O sucesso da provocação foi enorme. Tanto assim que a resposta de Vicente Azevedo, vereador ligado aos democráticos, ocupou duas sessões para narrar os avanços da instituição paulistana e rebater os disparates ditos por Margarido.

Se nas conjuras eu agia com discrição, em público incentivava tudo o que dizia respeito ao Departamento. Deviam achar que eu era um grande entusiasta daquela maluquice toda.

O esboroar-se de tudo aquilo não se fez esperar. Foi com imensa felicidade que saudei o advento do Estado Novo. Ele seria um balde de água fria para os modernistas. Na noite de 10 de novembro abri uma garrafa de vinho que papai guardava para ocasiões especiais.

As coisas começaram a mudar, enfim. Mário manifestava muita insegurança, pois seu grupo era vítima de patrulhas constantes. Diante do novo regime, sabia que seu posto estava ameaçado. Pior que isso, receava que seu projeto mais importante ruísse: tratava-se da Missão de Pesquisas Folclóricas. Mário e Oneyda Alvarenga, então diretora da Discoteca Pública Municipal, já estavam planejando uma viagem ao norte e ao nordeste com o intuito de colher material etnográfico. Temeroso que não pudesse pessoalmente participar da coleta, Mário logo arrumou quatro homens para a Missão. O primeiro que se dispôs a trabalhar foi Luis Saia, um jovem arquiteto inteligentíssimo e já familiarizado com a metodologia etnográfica. Depois, conseguiu reunir o maestro Martin Braunwiser, Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira. A Missão partiu no início de 1938. E foi neste ano que Fábio Prado foi exonerado da Prefeitura. Armando também saiu da governadoria do Estado.

Esperei para saber quem seria o novo prefeito da capital. Surpreso, tomei conhecimento de que era Francisco Prestes Maia, um antigo amigo e colega na Politécnica. Chiquinho, como eu o chamava, poderia conseguir algum tipo de embargo ao Departamento. Nem precisei fazer muitos esforços. Assim que assumiu a prefeitura, mostrou-se avesso às atividades em curso. De pronto irritou-se com as Bibliotecas Ambulantes que o Borba havia implementado na cidade. Aos poucos foi ficando ainda mais insatisfeito. Em uma de nossas conversas, toquei no assunto da Missão de Pesquisas Folclóricas que já se encontrava no norte do Brasil. Tinha plena consciência da importância dela para Mário. Chiquinho convenceu-se de que aquilo não passava de uma brincadeira de folclorista amador e mandou que os trabalhos de pesquisa fossem abandonados. Os cofres públicos não gastariam mais um níquel com aquela aventura. Os missionários teriam de regressar a São Paulo, abandonando o roteiro de viagem. Mário devia estar em estado de perplexidade e agonia. No entanto, com sua sagacidade, deu um jeito para que seu projeto não naufragasse. Telegrafou a Luis Saia e o instruiu para que adentrasse o sertão, alegando posteriormente que não recebera a ordem de regresso do prefeito. Dessa maneira, poderia cumprir o trajeto estabelecido e terminar a coleta do material etnográfico. Mário era mesmo muito esperto...

Só não foi esperto o suficiente para se manter no cargo de diretor. Friamente, articulei com Chiquinho sua exoneração. Em 10 de março, exatos quatro meses após a irrupção do Estado Novo, tivera de deixar o posto no qual tudo apostara. A demissão lhe custaria muito caro! O primeiro passo concreto de minha vingança havia sido dado. Restava apenas o momento oportuno para completá-la.

Não mais vi Mário durante alguns meses. No final de junho, totalmente deprimido, mudou-se para o Rio de Janeiro. Lá, lecionaria na Universidade do Distrito Federal e, posteriormente, seria contratado para trabalhar no Instituto Nacional do Livro, órgão ligado ao ministro Gustavo Capanema. Sabia que Francisco Pati, seu sucessor no Departamento, não daria continuidade a seus projetos culturais. A frustração lhe seria ainda mais severa por conta disso. Encarreguei-me de lhe enviar relatórios pormenorizados sobre o que acontecia na instituição. Ele me respondia com tom confesso de desalento. Era um Mário diferente, sôfrego, apático... Todos os seus amigos tinham a mesma impressão que eu: ele estava se acabando.

Anos depois, numa noite de verão, em fevereiro de 1941, encontrei-o passeando pelo centro da cidade. Abraçamo-nos e pude ver, contrariado, que ele estava feliz novamente. O que teria acontecido? Voltara para São Paulo? Sim, resolvera regressar à Paulicéia. Contara-me sobre suas relações com os intelectuais cariocas e o ministro Capanema, relatara-me as aventuras da elaboração do projeto da Enciclopédia Brasileira. Enfim, desabafara sobre sua estada no Rio. Agora estava de volta, queria ser feliz novamente. Ser feliz enquanto eu permitisse, bem entendido. Seu destino ainda estava em minhas mãos.


Àquela altura dos acontecimentos já não queria mais importuná-lo. Desejava apenas impingir-lhe o golpe fatal. Decidi que o deixaria viver mais alguns anos, o suficiente para concluir alguns projetos pessoais. Recordo-me que em 1942, planejava, junto a Martins, a publicação de suas obras completas. Eu deveria permitir que isso acontecesse. Também nesse ano, resolveu lavar a roupa suja dos modernistas. Voltou ao Rio para proferir uma palestra que se tornaria célebre: "O Movimento Modernista".

No início de 1945, ouvi rumores de que sua saúde andava debilitada. Seu coração já estava fraco e ele fumava excessivamente. Tinha certeza de que fortes emoções poderiam lhe causar algum dano irreversível. Não havia dúvidas de que uma grande revelação lhe seria letal. Depois de ter ido tão longe, julgava que um simples recuo seria prova de minha incompetência. Precisava prosseguir. Em alguma coisa eu tinha de lograr sucesso.

Na noite de 24 de fevereiro daquele ano fui visitá-lo. Trancafiados em seu escritório, conversamos durante horas. D. Maria Luísa nos serviu mate gelado com torradas. Ficamos sentados um longo tempo... Principiei a narrativa daquela que seria minha única obra.

– Lembra-se de quando você publicou Macunaíma, Mário?

– Claro! – dissera efusivamente.

– Lembra-se de que fui eu quem sugeriu a elaboração do livro, assim que você voltou de viagem?

– Como esquecer? Macunaíma surgiu daí... Foi ideia sua.

– Mas, você nunca admitiu isso.

– Tavinho... não ficava bem... O que diriam?

– Nem ao Paulo você disse – falei ressentido.

– Ora, o Paulo...

Continuei:

– Você não imagina o meu estado quando abri Macunaíma pela primeira vez e vi a dedicatória...

Mário percebeu o castigo que me impingira. Tentou se explicar:

– Você não entendeu o sentido da dedicatória. É que...

Cortei-o. Estancou, ficou rijo, duro, com o peito vazio. Percebera que por trás das perguntas havia alguma cobrança.

– Recorda-se das reuniões no apartamento do Paulo?

Estatelou os olhos. Levantou-se da cadeira e tornou a se sentar.

– Sim... Era uma época formidável...

– Lembra-se da noite em que eu sugeri a criação de um instituto de cultura para São Paulo? Puxe pela memória, Mário. Você há de se lembrar...

– Recordo-me vagamente. Foi você mesmo? – perguntou incrédulo.

– Aquela cena nunca saiu da minha cabeça. Tomávamos um delicioso Montrachet e eu divagava. Você indagou sobre o que eu pensava. Houve um enorme silêncio. Todos se voltaram para mim, como a esperar pela resposta. Depois que falei, Paulo fez uma cara de espanto, zombando da minha sugestão. Só assentiu quando o barulho das palmas sufocou sua ironia. Como todo hipócrita, pôs-se a bater palmas também. O Departamento de Cultura surgiu naquele instante.

– Agora me recordo...

– Mas, no dia seguinte, ninguém se lembrou disso. Veio o Departamento e meu nome continuou esquecido.

– Todos queriam cargos...

Mário entendia o que estava se passando. Houve um momento em que ficou pálido e me pediu um copo de água com açúcar.

Continuei, sem atender ao seu pedido:

– Observe os fatos, Mário! A dedicatória de Macunaíma: tudo começou aí. Naquele dia jurei vingança, como seu querido personagem. Quanta ironia: Macunaíma contra Mário! Eu estava disposto a esquecer o episódio se não houvesse a história do Departamento. Contei com a ajuda de Chiquinho, meu velho amigo. Conhece-o? Não foi difícil seduzi-lo a acabar com seus sonhos. O que você espera de um prefeito fascinado por grandes avenidas? Um sujeito como ele não poderia voltar a atenção para aquelas molecagens que você apelidava de cultura. Eu sabia, no entanto, a importância que elas tinham para você.

Empalidecera novamente. Deixei que ele mesmo pegasse o copo e se servisse.

– Lembra-se da tal Missão Folclórica? O que aconteceu?

– O Maia mandou acabar com ela. Ordenou para que todos os integrantes voltassem para São Paulo.

– Isso mesmo, Mário. De quem foi a ideia?

Ele levou a mão ao peito, insinuando fortes dores.

– Você não fez isso, Tavinho...

– Fiz mais que isso... Por que o Departamento despertaria tanta raiva da imprensa paulistana? Você há de recordar que os artigos não eram assinados. Pois lá estava eu. Quanta diversão! Imaginava que aqueles textos lhe causavam incômodo.

– Quase me mataram de raiva...

– E o discurso do Margarido, lembra-se disso? Ele e eu também éramos amigos. Quantas vezes você nos viu juntos? Nunca desconfiou de nada?

Mário estava com as mãos trêmulas. Seus lábios estavam brancos e sua face, lívida. Calei-me por alguns segundos. Não fui capaz de olhá-lo de frente. Numa sequência rápida de imagens turvas recordei tudo o que aconteceu desde que o encontrei no centro da cidade. Atentei para uma grande coincidência: já passava da meia-noite. Era, portanto, dia 25 de fevereiro. Havia exatos vinte e três anos eu o conhecera...

Ouvimos passos na escada: era Luis Saia que estava chegando, tarde da noite. Reagimos bem, disfarçando o mal-estar. Demos um breve sorriso quando o avistamos. Apressei-me na despedida:

– Fiquem à vontade. Eu já estava de saída.

Na manhã daquele dia, tomei conhecimento da morte de Mário. Haveria apenas um segredo a guardar...


sexta-feira, 2 de maio de 2008

Ella

Como quase todo meu patrimônio musical, Ella me foi apresentada pelo meu pai. Depois dela cheguei a ouvir – sem muita vontade, confesso! – as demais divas da música norte-americana: Billie Holiday, Carmen MacRae, Nina Simone, Sara Vaughan. Nenhuma delas foi capaz de me tocar tanto.

À época, eu havia ouvido falar em Cole Porter, merecedor de duas menções no Estrangeiro do Caetano. Era 1989. Ele aparecia na música título do LP (estávamos na era do Vinil, bem lembrado!) como o compositor que adorou as luzes da Baía de Guanabara. Também marcara presença com Easy to love, na introdução de Branquinha. Logo depois, ouvi Get out town com voz e violão do próprio Caetano. Achei, então, que o tal Cole devia ser interessante. Ella me confirmou isso quando ouvi os dois volumes do Songbook dedicado às suas composições. Voltemos à ela, portanto...

Mesmo as deusas têm lá suas imperfeições. Ella é diferente: tem pequenos, mínimos desatinos. Dream a little dream of me, parece ser um deles. A impressão que se tem ao ouvi-la é a de que Ella não se empenha em passar o clima contagiante da melodia. Como pode uma música falar de "Birds singing in a Sycamore Tree" em tom pesaroso? É um contra-senso! Talvez isso se deva, também, ao arranjo faltoso de brilho, triste, calado e até sorumbático. Um horror! Laura Figgy, Zélia Duncan e Zizi Possi – talentosíssimas, mas anos luz distantes de Ella – fizeram interpretações fantásticas da música.

O problema é que a interpretação depende muito do arranjo... A presença das cordas, por exemplo, em algumas músicas do Songbook do Cole Porter soa melancólica. Mesmo nas melodias econômicas de metais em que se exige outro instrumento, elas poderiam ter outra função ou, quiçá, serem abolidas. Que algum músico fã da Ella não me ouça!

Alguns arranjos me suscitam depressão. Lembram-me musicais que, na infância, quase me matavam de tristeza. Na década de oitenta eram veiculados pela Globo, na hedionda Sessão da Tarde. Quando aparecia uma música e irrompia a legenda, pronto: quase entrava em desespero. Os números musicais, intercalados com a trama do filme, não faziam, àquela época, sentido algum. Acho que por isso mesmo nunca assisti por inteiro a Noviça Rebelde. Como aquela molecada cantava! Haja cantoria! Minha implicância com musicais somente acabou quando assisti Cantando na Chuva.

Voltando novamente à Ella... Há algum tempo, o Chico Buarque disse ser Every time we say goodbye a música mais bonita do mundo. Embora de pronto discordasse dele (porque é justamente ele o autor da música, esta sim, mais bonita do mundo), resolvi ouvi-la, na interpretação da Ella. Pasmo, verifiquei a abundância das cordas. Nem por isso deixei de reconhecer a beleza do arranjo. Trata-se de uma interpretação definitiva, ímpar.

Em decorrência da diabetes, Ella teve as duas pernas amputadas. Lembro-me que chegou a fazer um show na cadeira de rodas. Morreu em 15 de junho de 1996, com 79 anos. Mas nunca parou de cantar!

Ouço Ella porque ela é a maior (que me perdoem Marquinhos e Paulo Francis). Ouço Ella porque me sinto mais próximo do meu pai.