sexta-feira, 2 de maio de 2008

Ella

Como quase todo meu patrimônio musical, Ella me foi apresentada pelo meu pai. Depois dela cheguei a ouvir – sem muita vontade, confesso! – as demais divas da música norte-americana: Billie Holiday, Carmen MacRae, Nina Simone, Sara Vaughan. Nenhuma delas foi capaz de me tocar tanto.

À época, eu havia ouvido falar em Cole Porter, merecedor de duas menções no Estrangeiro do Caetano. Era 1989. Ele aparecia na música título do LP (estávamos na era do Vinil, bem lembrado!) como o compositor que adorou as luzes da Baía de Guanabara. Também marcara presença com Easy to love, na introdução de Branquinha. Logo depois, ouvi Get out town com voz e violão do próprio Caetano. Achei, então, que o tal Cole devia ser interessante. Ella me confirmou isso quando ouvi os dois volumes do Songbook dedicado às suas composições. Voltemos à ela, portanto...

Mesmo as deusas têm lá suas imperfeições. Ella é diferente: tem pequenos, mínimos desatinos. Dream a little dream of me, parece ser um deles. A impressão que se tem ao ouvi-la é a de que Ella não se empenha em passar o clima contagiante da melodia. Como pode uma música falar de "Birds singing in a Sycamore Tree" em tom pesaroso? É um contra-senso! Talvez isso se deva, também, ao arranjo faltoso de brilho, triste, calado e até sorumbático. Um horror! Laura Figgy, Zélia Duncan e Zizi Possi – talentosíssimas, mas anos luz distantes de Ella – fizeram interpretações fantásticas da música.

O problema é que a interpretação depende muito do arranjo... A presença das cordas, por exemplo, em algumas músicas do Songbook do Cole Porter soa melancólica. Mesmo nas melodias econômicas de metais em que se exige outro instrumento, elas poderiam ter outra função ou, quiçá, serem abolidas. Que algum músico fã da Ella não me ouça!

Alguns arranjos me suscitam depressão. Lembram-me musicais que, na infância, quase me matavam de tristeza. Na década de oitenta eram veiculados pela Globo, na hedionda Sessão da Tarde. Quando aparecia uma música e irrompia a legenda, pronto: quase entrava em desespero. Os números musicais, intercalados com a trama do filme, não faziam, àquela época, sentido algum. Acho que por isso mesmo nunca assisti por inteiro a Noviça Rebelde. Como aquela molecada cantava! Haja cantoria! Minha implicância com musicais somente acabou quando assisti Cantando na Chuva.

Voltando novamente à Ella... Há algum tempo, o Chico Buarque disse ser Every time we say goodbye a música mais bonita do mundo. Embora de pronto discordasse dele (porque é justamente ele o autor da música, esta sim, mais bonita do mundo), resolvi ouvi-la, na interpretação da Ella. Pasmo, verifiquei a abundância das cordas. Nem por isso deixei de reconhecer a beleza do arranjo. Trata-se de uma interpretação definitiva, ímpar.

Em decorrência da diabetes, Ella teve as duas pernas amputadas. Lembro-me que chegou a fazer um show na cadeira de rodas. Morreu em 15 de junho de 1996, com 79 anos. Mas nunca parou de cantar!

Ouço Ella porque ela é a maior (que me perdoem Marquinhos e Paulo Francis). Ouço Ella porque me sinto mais próximo do meu pai.




Um comentário:

Antonio Ozaí da Silva disse...

Caro Roberto,

muito obrigado.
Ler o seu texto foi um prazer (e olha que eu tinha e tenho muito o que fazer rsrsrs). Confesso que não conhecia Ella, mas a história me comoveu e deu vontade de ouvi-la... E, falando sério (permita-me a sinceridade), penso que vc não deveria divulgar o seu blog com a mensagem estilo "os que não tiverem o que fazer"; acho que desqualifica o seu trabalho e nem vc nem ele merece isso... bem, talvez tenha sido apenas uma ironia e eu ande muito sério... desculpe... de qualquer forma, continuarei a ler os seus textos... muito obrigado.

abraços e tudo de bom,

Ozaí