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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Conversa 2

Conversa 2

O filme ainda está em negociação. Mesmo assim, resolvi puxar papo.
- Escuta. E os mistérios?
Ele imaginou que eu estivesse a falar dos mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos, luminosos... Ficou feliz. Sentiu que, pela primeira vez, poderia ter uma boa conversa comigo. Fui logo me explicando.
- Tô falando dos mistérios da vida. Aquelas coisas que eu nunca soube como aconteceram.
- O quê, por exemplo?
- Como foi o acidente que matou o Dr. Ulisses.
- Qual é a dúvida?
- O Senhor pergunta “qual é a dúvida”? O Brasil inteiro desconfiou que aquilo não foi acidente, que foi uma armação de um político muito....
- Veja lá o que você vai dizer – Ele me alertou.
- Pois, então. O Senhor sabe. Foi mesmo acidente? Ulisses e Severo Gomes. O Senhor entende, né?
- Entendo. Claro...
- E a renúncia do Collor?
- O que é que tem?
- Como “o que é que tem”?
- O que aconteceu na noite anterior à renúncia? Ninguém entendeu. Pegou todo mundo de surpresa.
- Ele não podia renunciar? – a ironia Dele me afligia.
- Podia, claro. Mas, o Senhor concorda que aquilo foi, no mínimo, inusual, né?
- Uhmmm.
- E aquele meu amigo?
- Qual?
- Aquele que morreu num acidente de carro. A gente era moleque ainda. O Senhor lembra?
- Tenho ótima memória.
- Então, o que aconteceu? Disseram que ele estava num bar e se levantou dizendo que alguém o havia chamado. Foi o Senhor?
- Eu?
- É. O Senhor!
- Ele recebeu alguma ligação no celular?
- Não, é óbvio que não. Naquela época nem tinha celular, o Senhor sabe. Uma pessoa que estava com ele afirmou que, de repente, a mesa ficou quieta. Antes de sair e sofrer o acidente, ele se levantou e disse: “Alguém está me chamando”. Era o Senhor?
- Você viu isso ou te contaram?
- Me contaram, já falei. Eu estava meio distante dele e naquela noite não havíamos saído juntos.
Percebi que Ele estava se esquivando da resposta. Ou, então, não queria assumir a responsabilidade.
Arrisquei mais uma:
- E o Rubens Paiva?
- O pai ou o filho?
- O pai. Onde é que estão os ossos dele? Onde enterraram?
- Você sempre foi muito curioso – Ele me disse.
- O Senhor pode estar enganado.
- Eu nunca me engano.
Olhei para frente e vi duas portas se abrindo. Isso mesmo: a sessão iria começar.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conversa

Conversa
(Narrativa do diálogo que se seguiu a qualquer uma das opções)

Pronto: morri. Não importa como.
Olhei para Ele e fui logo perguntando:
- E o meu filme?
 - Que filme?
- Aquele que todo mundo vê quando morre.
Ele não entendeu. Olhou para mim meio desconfiado.
- Filme?
- É, filme. O filme da minha vida, com cada momento, desde o meu nascimento até a morte.
Ele ficou impassível. Sabia que eu ficaria irritado.
- Vamos lá. Vou ser claro com o Senhor. Eu morri e tenho direito a rever minha vida. Quero ver como eu era quando criança. O senhor sabe: até os cinco anos, a gente não guarda nada na memória. Imaginei que ao morrer pudesse me ver com as fraldas sujas, mijado, cagado...
- Sei.
- E mesmo depois. Também quero relembrar o que já sei. Sentir de novo algumas sensações. A primeira paixão, o primeiro beijo, o desespero naquela tarde de dezembro.
- Você supõe que alguém tenha filmado tudo isso?
Inconformado, e numa clara demonstração de arrogância, alteei a voz com Ele:
- Mas é claro! Se da vida não restar ao menos um filme, não valeu nada.
Ele só meneava a cabeça.
- Eu tenho direito a uma diversão! Ou será que a vida era só aquilo?
- Aquilo?
- É. Aquilo. Aquilo mesmo que o Senhor sabe. Aliás, o Senhor sabe do que eu estou falando: trabalho, família, restrições, concessões, infortúnios. E alguma alegria, é bem verdade.
Àquela altura da conversa, meu tom não era amistoso. Pensei até que Ele pudesse lançar um “Você sabe com quem está falando?”. Mas, não. Ele jamais agiria assim.
Sempre ouvi dizer que a negociação é o melhor caminho. Meu professor de Ciência Política dizia que a gente deve negociar, mesmo que seja com um pau na mão. Evidentemente, com Ele não adiantaria nem a negociação, nem o pau.
Ele continuou quieto, me observando.
- E então? Vai rolar a sessão?
- O filme? Você quer dizer “o filme”?
- Isso. O filme. Tem projeção digital, som double, tela grande?
Ele é realmente generoso. Deu uma risada serena e disse que pensaria no assunto.

(continua)

sábado, 29 de março de 2014

Até que ele morra

Até que ele morra

Era ainda menino e já havia tomado consciência da injustiça do mundo. Um tio materno impingiu-lhe uma lavagem cerebral, creditando todo o mal da humanidade às vísceras do capitalismo. Apoiou-se num daqueles credos socialistas que professavam a socialização de tudo, até mesmo dos mimos familiares. Desde então, não hesitava em pensar que seus brinquedos e roupas deveriam ter o destino inevitável das chamadas classes subalternas. Como o tio era exagerado, falava em lumpemproletariado. O moleque morria de pena. Pois é, o raciocínio era simplista, mas funcionava. Privava-se do pouco que lhe ofereciam, era realmente pródigo em doações.

Ainda imberbe, foi cooptado pelo Partidão. Disseram-lhe que o mundo se dividia entre os filiados e os demais seres humanos, órfãos da dignidade partidária. Fez política estudantil no segundo grau e na faculdade. Sua militância era fervorosa: participava de congressos e discussões, acampava com a pastoral, participava de distribuição de merenda e o escambau. Lia tudo quanto podia. Marx, Engels, Lenin, Gramsci e Rosa eram citados com familiaridade ímpar, de dar inveja aos mais tradicionais quadros do Partidão e aos intelectuais de carreira.

Vinte anos depois, estava casado, era pai e tinha emprego fixo sem nenhuma ligação política. Pouco a pouco, foi se tornando amargo, descrente. Já não queria saber de laços partidários, não falava com companheiros da antiga militância. Queria apagar o passado, a cerveja quente das reuniões com pretextos socialistas, a fiscalização ideológica e a repreensão aos quadros pelegos da política. Agora, tudo lhe parecia produto de dissabores, de uma história sem sentido. Mas, no fundo...

No fundo, em algum recôndito intocável e quase invisível, ainda sonhava com a economia planificada, a ordem social igualitária. Ao tomar conhecimento do ataque ao World Trade Center, deu um risinho de esguelha. A tal convulsão social mencionada pelo velho barbudo no Prefácio para Crítica da Economia Política (ele sabia até a página da edição) irromperia no centro do capitalismo. Teria chegado a hora? Enfim, os proletários de todo o mundo iriam se unir. Bin Laden? Fundamentalismo? Ora, aquilo não existia. O ataque foi produto de algum gênio do Kremlim. “A revolução! A revolução!”, sussurrava para si enquanto ouvia mentalmente os acordes iniciais da Internacional Socialista.

Quando anunciaram a nova crise das bolsas de investimento, teve o último sopro de esperança. Wall Street seria o sinônimo da ruída tão aguardada. Qual o quê!

Hoje, o mundo continua injusto e ele, já conformado, sabe que isso não vai mudar. Pelo menos, até que ele morra.




segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Dorinha 2

Dorinha: deve ser sonho mesmo - Roberto Barbato Jr

Você pensa que foi fácil? Não. Não foi. Fiquei ali, esperando, esperando. Até perguntei pra vendedora, Ei, a Dorinha vem sempre aqui? A Dorinha? É. A da televisão? É. A que fez a Jujú naquela novela das oito? É, ela vem sempre aqui?, perguntei. Não sei, ela respondeu. Pergunta pra sua colega, pedi. Ela foi lá pra dentro.

Enquanto esperava (a Dorinha ou a vendedora), fiquei ensaiando mentalmente. Olha, Dorinha, desculpe-me pela inconveniência [ela para, dá uma risadinha e fica esperando que eu fale]. É o seguinte, eu te vi aqui num desses sábados, com seus filhos, fazendo compras. Antes, veja bem, eu me encontrei com você no corredor. Podia ter falado alguma coisa, mas vou ser honesto, não te reconheci. Depois, nossa, fiquei boquiaberto ao perceber que a moça do corredor era você, a Dorinha. Aí, te vi aqui na loja. Não quis ficar olhando, porque você podia pensar que eu era um paparazzo ou um caipira. Fui embora, tipo nem te ligo, mas me dei conta de que eu estava apaixonado por você. Aliás, não era paixão.

A vendedora volta.

A Dorinha vem aqui, sim. Vem? Vem. Sempre? Não, de vez em quando, parece que veio no mês passado. Ah. Dizem que é ela é bonita mesmo. Bonita? É linda, falei meio irritado. Vocês têm o cadastro dela na loja? Cadastro? É, cadastro, nome, endereço, telefone. Ah, deve ter, claro. Mas é confidencial, não podemos dar pra ninguém, ela explicou. Não, imagine, nem pensei nisso...

Parecia mágica. Quando terminei de falar, a Dorinha apareceu. Acredite. Sozinha, sem filhos, sem bolsa. Calça jeans, tênis, celular no bolso traseiro e camiseta. Simples, sem maquiagem, de cara lavada. Uma mulher que é bonita assim, é bonita mesmo, não tem truque, não tem grupo, como diziam os mais antigos. E pensar que ela aparecia na televisão, era vista por milhões de pessoas. A Dorinha, a Dorinha mesmo (juro que era ela), estava ali, de novo. Bem diante de mim.

O que eu fiz? Cheguei perto dela, trêmulo, extasiado. Disse Oi e vi seu rosto sendo desfeito, se pulverizando. Aos poucos, na minha frente, ela foi sumindo, como o final de uma personagem, o ocaso de uma trama. Não sei porque isso aconteceu, mas ainda vou esperar por ela. Se não vier no sábado que vem, virá no outro. Será sempre um devir. Não interessa, vou esperar. A vida inteira.

sábado, 10 de agosto de 2013

Dorinha

Dorinha: a  moça do sonho numa noite de verão - Roberto Barbato Jr

Pra ser sincero, não percebi quem era. Pensei, Nossa, que moça linda. Só depois, andando um pouco pelo corredor, é que imaginei que pudesse ser mesmo a Dorinha da televisão. Sabe aquele efeito retardado? Deve ter sido o impacto da beleza dela. Quando eu poderia imaginar que a Dorinha frequentasse aquele shopping? Estava lá com os filhos. Dois meninos. Entrou numa loja de moda feminina e os moleques ficaram ali na frente, sentados jogando alguma coisa, cada um no seu tablet. Ela veio até a porta da loja e deu meia volta. Foi tão rápido que nem consegui visualizar seu rosto. O problema é que eu, pra não dar pinta de caipira, não fiquei olhando. Se soubesse de pronto que era ela, diria alguma coisa ali mesmo, no meio daquele corredor. 

Perguntaria sua identidade ou se a conhecia de algum lugar qualquer. Quem sabe fosse prima da tia Lalá? Não, não, você deve tá me confundindo. Eu sou atriz. Eu sabia, eu sabia. Poxa, você é linda mesmo. É como a gente vê na televisão. Quer dizer, você é mais bonita assim, ao vivo. Obrigada, ela agradece. E vai embora calada. Linda.

Era mesmo a Dorinha. Na adolescência eu arrastava um bonde – um bonde, não, um comboio – por ela. Até hoje me pergunto como a figura de uma atriz pode fascinar tanto alguém que está do outro lado da tela, na plateia, ou no corredor do shopping. Essa atriz encarna uma personagem, entra na sua vida toda noite, destroça o seu coração, faz você sonhar com ela. E o pior é que você não sabe se é a atriz ou a personagem. Quem é que faz você se perder. Eu nunca me enganei. A Dorinha era a Dorinha, a atriz. Fosse qual fosse a personagem.

Eu sonhava com ela uns sonhos reais, a gente conversando e tal. Era tudo colorido, nítido. Pegava na mão dela, caminhava pertinho. Só uma vez, uma vez só, o sonho foi erótico. Mesmo assim não passou de um beijo. Ela nem aparecia sem roupa, nem nada. Era um beijo de uma atriz. O sonho era tão real que senti, juro que senti, o gosto daquele beijo. Falo isso porque os beijos de sonhos não têm gosto, são insípidos. O da Dorinha tinha.

Aquele encontro – teria sido um encontro? – me pirou. Fiquei um mês pensando nela. Logo que cheguei em casa procurei por alguma informação na internet. Ninguém falou nada. Os sites de celebridades não disseram que ela estava no shopping. Nem as revistas publicaram “Dorinha Meireles faz compra com filhos em shopping”. Aquele devia ser um dia normal. Acordou, almoçou e foi com as crianças fazer compra. O marido? Não. Não tem marido. Está separada. Foi casada com um cara que, pra conquistá-la, convenhamos, só pode ser um deus. Fiquei até imaginando como eles se conheceram e que tipo de conversa rolou antes do primeiro beijo. Ela era atriz contratada e ele fazia sabe-se lá o quê. Ele devia ser o cara, porque nem artista era. Quando uma atriz é casada com um ator ou músico, a gente entende. Mas a Dorinha, não. Ela se casou com alguém que não era do meio artístico. Daí a grandiosidade do sujeito. Não houve ensaio, encontro na coxia, no set de filmagem, nada disso. Ele chegou e arrebatou o coração dela, como alguém simples. Alguém que até podia ser eu, se eu não fosse esse bocó.

Olha, acho que a Dorinha é eterna. Ok, tudo bem. Pode parecer que o entusiasmo é grande. Reconheço que tive fases. Primeiro a Lili, depois a Cláudia Helena, a Malu, a Alicia. De fato, a Dorinha deve ter sido meu último arroubo juvenil. Agora, adolescência acabada, não dá para dizer que é só entusiasmo. Deve ser amor mesmo, no duro. É difícil admitir uma coisa assim, tão imponderável, mas isso é o amor.

Sábado que vem estarei lá de novo. Vou passar por aquele corredor e depois me sentar na frente da tal loja. Quando aparecer, juro, vou contar tudo isso pra ela. E ela vai gostar.


(continua)

sábado, 27 de julho de 2013

A desgraçada da internet

A desgraçada da internet - Roberto Barbato Jr

Quando digo que odeio a internet é porque ela arruinou minha vida. Acho que esse negócio de rede virtual é coisa do capeta, de quem pretende a desgraça alheia. Não vou me estender nesses comentários porque a raiva não leva a nada. Mas, também, não posso deixar de contar minha história. Se ela é triste? Não. Nem triste, nem gozada. Talvez por isso seja melhor você não perder seu tempo. Quem avisa, amiga é.

No dia em que me pediu em casamento, o Alcir disse que conhecia um negócio revolucionário, que nele iria investir fundo, a ponto de garantirmos o nosso sustento. Eu poderia parar de dar minhas aulas particulares. Em pouco tempo, estaríamos com a vida organizada e iríamos providenciar nossos filhos. Minha família relutou em aceitar que eu me casasse com um sujeito como ele, meio esquisito, perdido no mundo e desapegado das coisas do espírito.

Seis meses antes da festa, ele apareceu na casa dos meus pais com um aparelho que ninguém imaginava existir. Era um vídeo cassete. Fez a ligação dos fios na televisão, conectou tudo o que era preciso e lá enfiou uma fita do “O homem que queria ser rei”. Assistimos ao filme como se estivéssemos no cinema. Antes de ir embora, o Alcir vaticinou: “Ainda vamos ganhar muito dinheiro com isso”. Ele estava falando da locadora de filmes que pretendia abrir.

No mês seguinte, fez empréstimo no banco, alugou um imóvel, encheu os cômodos de prateleiras, contratou uma funcionária, a Késia, e mandou vir de não-sei-onde as fitas de VHS. A locadora ficou completa, com filmes de todos os gêneros, inclusive de sexo explícito. Naquela época, a aquisição de aparelhos de vídeo cassetes ainda era algo fora da realidade da maioria da população. Poucas famílias conseguiam fazer uma importação ou tinham dinheiro para bancar o alto preço proposto pelas lojas nacionais especializadas em som, áudio e vídeo. Mesmo assim, o movimento da locadora era bom e prometia aumentar.

Logo nos primeiros meses, Alcir teve um lucro interessante e disse que eu poderia acabar com minhas atividades docentes. É bem verdade que ele desdenhava do meu ofício. Dizia amiúde que eu ensinava uma meia dúzia de números a crianças quase débeis mentais, mas aquilo não me ofendia. Em face da possibilidade concreta de largar as aulas, liguei para cada mãe de aluno e comuniquei que não continuaria zelando pela educação de seus filhos. Conforme suspeitava, minha atitude não gerou nenhum desconforto. Minhas aulas não fariam falta alguma. Afinal, sempre fui uma professora medíocre.

Comecei a me dedicar de corpo e alma à “empresa” (ele gostava que a locadora fosse tratada dessa forma). Assistia aos filmes, esboçava as sinopses dos enredos e, uma vez aprovadas por ele, as datilografava em pequenas fichas que eram inseridas nas estantes temáticas. Também ajudava-o a rebobinar todas as fitas que eram devolvidas pelos clientes menos zelosos. Com o passar do tempo, passei a atender no balcão e a colaborar na contabilidade de uma empresa que ia de vento em popa.

Três anos depois do casamento, exatamente como planejado, nasceu Gabriela, nossa filha. No ano seguinte, veio o Elpídio, cujo nome fora sugerido pelo Oscar, um contrabandista que trazia umas máquinas esquisitas do Paraguai para o Alcir. Eram os tais dos computadores. Eu não via graça nenhuma neles, mas me disseram que o futuro estava ali, diante de nós.

Durante quinze anos, nossos negócios prosperaram com toda força. É claro que, vez por outra, tínhamos crises financeiras. Entretanto, com a dedicação que devotávamos à locadora, tudo se resolvia.

Com a falsa justificativa de que mirava o futuro, Alcir começou a investir em computadores. Comprava um atrás do outro. Primeiro, eram máquinas robustas, lentas. Depois, vieram as mais sofisticadas. Aquela tecnologia evoluía exponencialmente. Um dia, durante o almoço, falou que já tinha gente que se comunicava por meio de terminais computadorizados. Era a tal da internet. À medida que crescia seu interesse pela informática, reduzia drasticamente sua atenção à locadora. Tendo ciência da minha responsabilidade, acabei assumindo o negócio sozinha: fazia o atendimento, comprava fitas, negociava estoque antigo e fazia a contabilidade. Gabriela e Elpídio, embora estivessem mocinhos, não trabalhavam. Eu queria que tivessem uma adolescência saudável, longe do trabalho e próxima dos estudos.

Com o surgimento dos DVDs, tudo mudou. Tive que repensar a estratégia comercial da locadora. Qualquer pessoa que quisesse sobreviver naquele ramo, teria que investir na substituição do acervo de VHS pela nova mídia. Acabei fazendo negócios com o Oscar. Comprei títulos importados que ainda não haviam chegado ao Brasil e vendi à clientela mais sofisticada. Eu sabia quem queria o quê, e tinha boas relações com os cinéfilos de plantão. Aos poucos, consegui trocar todo o estoque das fitas VHS. Nossa locadora foi a primeira na cidade a ter um acervo cem por cento digital.

Os DVDs foram capazes de manter a locadora com movimentação extraordinária. Eram fantásticos e não nos causavam os problemas típicos das antigas fitas. Cheguei a duvidar que o homem fosse capaz de inventar uma tecnologia ainda mais interessante e barata que eles. Nem me preocupei com isso.

Cada vez mais eu ganhava intimidade com o sucesso empresarial. Por outro lado, meu casamento estava uma merda. Alcir não fazia sexo comigo e, pior que tudo, pouco conversava com a família. Ia dormir com o dia claro e acordava no final da tarde, sempre em desacordo com o fuso horário de gente normal. Em pouco tempo, percebi que a causa dessa mudança de hábitos se devia à internet. Descobri, então, as salas de bate papo e, com elas, a existência da Soraia.

A Soraia, segundo me disse sorrateiramente o Oscar, devia ser muito gostosa. Todavia, não era nada mais do que uma paixão virtual e eu não precisaria me preocupar. Melhor ser traída por uma mulher virtual do que por uma puta qualquer, ele me disse. A Soraia era inofensiva, quase inexistente. Enquanto Alcir ficava de bate papo com ela madrugada afora, eu ralava como uma doida.

Um dia, no meio da tarde, acometeu-me uma enxaqueca. Deixei a Késia tomando conta da locadora e fui pra casa. Quando cheguei perto do meu quarto, pela fresta da porta flagrei os dois – ele e a Soraia, é claro – transando na cama. Pois é, a Soraia, que até então era virtual, estava ali, diante dos meus olhos, dando para o meu marido. O que mais me doeu não foi a traição, mas o fato de o Alcir nunca ter me fodido daquele jeito, com aquela volúpia toda.

Corri até a despensa e peguei o três oitão que guardávamos para alguma eventualidade. Próxima do quarto, empurrei em silêncio a porta e mirei bem a cabeça dele. Não tive coragem de atirar. Abaixei a arma e mandei os dois embora de casa. Sabe aquela cena patética de novela pastelão? Pois é, o Alcir saiu pulando da cama de pau duro, enquanto a Soraia tentava cobrir os peitos com o lençol da minha cama. Não achei graça alguma naquilo. Enquanto a cena acontecia, eu chorava feito criança.

O pastelão acabou com a entrada do Elpídio em casa. Foi tudo muito constrangedor. Ele teve a sensibilidade de esperar a situação acalmar para me dar uma notícia: nos Estados Unidos o mercado de DVDs estava ameaçado pelo repentino crescimento da comercialização do Blu-ray. Eu sabia o que me esperava: teria de renovar o acervo da locadora novamente. Daquela vez, contudo, não tive nenhum êxito. Antes mesmo do Blu-ray emplacar, começou a moda de baixar filmes da internet. A maldita internet – ela, de novo – faria outro estrago na minha vida. A clientela foi rareando rapidamente e a locadora nunca mais foi a mesma. Meu faturamento desmoronou, até que percebi a inviabilidade da empresa.

Em menos de um ano, dei baixa na junta comercial, com o caixa zerado e, felizmente, sem nenhuma dívida. A única coisa que fiz questão de guardar foi a velha fita do VHS “O homem que queria ser rei”. Quando tenho saudades daquela época, assisto um pouco do filme num vídeo cassete que resiste bravamente ao tempo, e quase morro sufocada de tanta nostalgia.

Nunca mais vi ou falei com Alcir. Gabriela casou-se e hoje reside na Suíça, com um gerente de banco transnacional. É ele que deposita algum dinheiro na minha conta todo mês. Elpídio juntou-se com a Késia (eles viviam se pegando no quartinho do estoque antigo da locadora) e se mudaram para Porto Alegre em busca de sonhos. Pois é... Meus filhos imploram para que eu mantenha contato com eles (veja se pode!) pela internet. Quando vêm com essa ideia, nem sei o que dizer.

O que sei é que, no sábado passado, encontrei um sujeito na padaria. Enquanto ele tomava seu café da manhã, puxei assunto e contei toda minha vida, sem nenhuma vergonha. Ele me disse que tem um blog e que não se incomodaria de publicar uma história tão infame. Pra mim, tanto faz. O blog também fica na internet...


quarta-feira, 1 de maio de 2013

O LP


“Toma! Aquela música que você gosta taí”, foi o que ela disse ao me entregar o LP, na festa dos meus dez anos. Segurei o disco e olhei para o papel do embrulho. Quando levantei a cabeça para agradecer, ela já tido ido pro lado das meninas.

Aquela música que eu gosto? Que música? Fui pra dentro de casa, tirar o embrulho do LP. Era uma coletânea internacional dos anos oitenta. Ali não tinha nada que eu gostasse. Até Elton John fazia parte daquilo. Justo eu que odiava o Elton John. Guardei o disco e voltei pra festa.

A noite seguiu. Enquanto não se instalasse a pista de dança, elas lá, nós cá. Olhava pra ela e perguntava mentalmente a que raios de música havia se referido.

Antes de ir embora, deu uma piscadinha e veio falar comigo.

- É aquela música mesmo, né?

Titubiei. Fiquei na minha.

- Eu sabia que você ia gostar. O Elton John é demais.

Por ela, até o Elton John poderia ser demais. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O pai da Lucinha

O pai da Lucinha - Roberto Barbato Jr

O pai da Lucinha era um pentelho. Dos grandes. Sujeito chato mesmo. Adorava infernizar a vida alheia. Um dia, meteu na cabeça que iria atazanar a professora da filha, a tia Joviane. Com esse nome, pensava, a mulher não era boa coisa. Além de barriguda, devia ter bigode e mau hálito. Nem se deu ao trabalho de vê-la ou pedir informações à filha acerca de sua beleza. Estava convencido: a tia Joviane era um tribufu.

Instruiu a menina para colocar a professora em saia justa diante de toda a classe. A Lucinha, coitada, com seus sete anos, não tinha ciência da sacanagem que estava prestes a fazer.

Numa tarde, enquanto ouvia explicação sobre os quatros elementos da natureza, a Lucinha interrompeu a aula e se saiu com essa:

- Tia, você sabe quem foi Leibniz?

A tia Joviane corou. Com sua parca experiência no magistério e uma formação intelectual lacunosa, não soube o que responder. A classe toda riu e surgiu uma desconfiança da parvalhice da professora. Um espírito de porco, o pai da Lucinha! Conseguiu o que queria.

Ao tomar conhecimento da proeza da filha, o imbecil vibrou. Nem bem esperou virar a semana e apresentou outro nome esdrúxulo para a menina. Ela mandou ver. Daquela vez, a Tia Joviane, sempre tão meiga, explanava sobre as quatro estações do ano.

- Tia, você já leu Kierkegaard?

A criançada veio abaixo na sala de aula: uma guerra de papeizinhos, um zum-zum-zum de assobios e o barulho das carteiras se arrastando...

O pai da Lucinha já não se continha na sua sanha exitosa. Apresentou à filha ninguém menos que Heidegger. E complementou:

- Se a tia Joviane disser que conhece Heidegger, pergunte se ela sabe quem foi a aluna por quem ele se apaixonou.

A menina adorou saber que a namorada do sujeito era uma tal de Hannah Arendt, também filósofa. Incrementou a provocação do pai.

- Tia Joviane, a senhora sabe quem foi professor de Hannah Arendt?

Uasuashauhs! A molecada não se conteve! A tia Joviane já estava em descrédito com o corpo – corpinho – discente. A criançada não perdoava.

No final do mês, o pai da Lucinha foi implacável. Deu à filha uma aula sobre a Lei de Hooke e fez um pedido para a menina:

- Se a mula da tia Joviane não souber, explique você para a turma toda.

Dito e feito. A Lucinha fez a indagação. A exemplo das outras vezes, a tia Joviane não soube responder. A menina dissertou sobre o tema como se defendesse uma tese de livre-docência. Arrasou.

Diante do ocorrido, a professora foi objeto de longa discussão da diretoria da escola. Reunião de pais e mestres foi marcada e o pai da Lucinha, o primeiro a comparecer. Queria ver a baranga da professora. Quando ela entrou na sala, o biltre ficou boquiaberto, totalmente descrente daquela realidade cruel. Um metro e sessenta de pura delícia, um corpo escultural. Um paradoxal mulherão! Quem diria, a tia Joviane, hein? Burrinha, é verdade. Mas, que mulher! Se arrependimento matasse, pensou. E matou. Em segundos foi fulminado pela beleza da moça.



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nunca chorei o maltrato da vida

Nunca chorei o maltrato da vida - Roberto Barbato Jr

Nunca chorei o maltrato da vida. Não tinha dinheiro pra comprar coca-cola, cortar cabelo e nem comprar tênis. Sorvete e cinema, nem pensar. A escola era pública e o material, emprestado. Recebia os livros todos riscados, amassados. Não dava pra reclamar. Era a única maneira de aprender alguma coisa. O uniforme, minha mãe comprava sabe lá Deus com que sacrifício. Eu não gostava de estudar, mas também não tinha outra opção. Meu pai só existiu na minha imaginação. Ele é um daqueles pais famosos que grande parte dos brasileiros tem. Sim, é aquele sujeito que saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou. Felizmente, minha mãe sabia que o cigarro era uma desculpa e jamais alimentou a ilusão de que o safado voltaria. Não voltou.

Além da precariedade material, sempre fui feio. Quando digo feio, quero dizer feio mesmo. Coisa séria. Feio a ponto de as meninas fazerem cara de enjoo quando me viam. Feio e pobre, não teria chance nenhuma com ninguém. Enquanto a meninada se vestia para o cinema, eu ficava em casa, imaginando um jeito de vazar a roleta, sem pagar nada. Depois que passasse pela porta, a escuridão da sala me daria guarida. Ninguém me acharia. E, convenhamos, nem seria interessante o lanterninha correr atrás de um menino como eu. Se me achasse no escuro, certamente tomaria um susto.

Durante algum tempo tive prática em surrupiar a broinha de milho da padaria. Era bem fácil. Bastava entrar calmamente, ir até o balcão e pedir dois pães franceses. Quando a moça se virava para pegá-los, já era: estava na rua dando a primeira mordida. Não era bonito fazer isso. Eu não contava para ninguém, pois não queria que me achassem um cara esperto. Furtar a broinha não era questão de esperteza, mas de sobrevivência. E disso eu sempre entendi muito bem.

Percebi que o mundo não me daria nada de graça. Teria que brigar pra conseguir uma vida mais ou menos digna. É claro que eu nunca acreditei naquela conversa de que o trabalho dignifica o homem. Se tivesse um pouco de habilidade para o crime, tentaria o sucesso fácil, alheio ao trabalho empenhado. Pouco se me daria a tal da dignidade. Prefiro o dinheiro. A merda é que até nisso eu fui cagado. Pobre e feio, deveria ao menos ter vocação para o afano, a tungada perfeita, tal como conseguia com a broinha. Mas, qual o quê! Virei um bundão. Ao sinal do menor temor, já me via gaguejando, tremendo, titubeando nas ações.  

Preferi a submissão, é claro. Pra um sujeito como eu, é mais fácil a subserviência. Bastaria algum estudo e um pouquinho, só um pouquinho, de sorte. Arranjando um empreguinho medíocre, bem me satisfaria. Ficaria quieto, recebendo ao final do mês o suficiente pra parar em pé, de estômago cheio. Mas nem tudo foi tão fácil.

Quando a Mel me conheceu, anunciou o estrago que faria na minha vida. Teríamos filhos, muitos filhos. Ela me seduziu, engravidou na primeira transa e foi taxativa ao dizer que seria uma mãe muito zelosa. Por zelosa, eu entendi dedicação integral aos nossos filhos. Isso me encheu de orgulho. Acontece que eu sou pobre e feio, mas não sou burro. Logo saquei que teria de trabalhar pra garantir tanto zelo da parte dela. Então, vieram a Amália, a Amélia e a Emília (antes que alguém pergunte, foi ela quem escolheu os nomes das meninas). Paramos por aí.

Com essa prole toda, tive que mudar de emprego pra ganhar mais. Meu projeto de só parar em pé, bastando ter o estômago cheio, caiu por terra. O dinheiro precisava render e eu, também. Com sacrifício, criamos as meninas. Eu trabalhando, e a Mel cuidando delas.

O tempo se passou. Continuei feio e pobre. As meninas se casaram e a Mel arrumou um amante. No dia que descobri a traição, matei os dois. Como não tinha dinheiro para contratar um bom advogado, peguei um rábula que nem sabia direito o que era homicídio privilegiado. Hoje estou aqui cumprindo pena com mais oito na minha cela. Amália, Amélia e Emília nunca vieram me ver e, provavelmente, jamais virão. Dizem que a progressão de regime tardará a chegar. Não faço a menor ideia do que farei quando sair daqui, mas, honestamente, espero morrer antes disso. Agora, tenho que receber uma visita. Um sujeito quer me ver. Diz que é meu pai.