sexta-feira, 29 de junho de 2018

As "injustiças" e os privilégios

Artigo publicado no Correio Popular (29/06/2018)

            Recentemente, a imprensa brasileira iniciou a divulgação do Festival Lula Livre, a se realizar nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, em 28 de julho. A convocatória para o evento foi assinada por Chico Buarque, Leonardo Boff, Martinho da Vila, José Celso Martinez Corrêa, Eric Nepomuceno e Fernando Morais, entre outros artistas e intelectuais.
O evento não seria motivo de atenção se não fosse endossado por um texto permeado por disparates e contradições. Salvo melhor juízo, seu conteúdo denota as posições que alguns dos asseclas da legenda petista e seus simpatizantes vêm assumindo diante da condenação e da segregação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De sorte a tentar esquadrinhar as aludidas posições, avancemos com algumas hipóteses e interpretações.
O panfleto – se assim podemos qualificá-lo – inicia demonstrando o objetivo do festival: "pedir a imediata libertação" de Lula. Não se sabe a quem o pleito será formulado. Isso, contudo, pouco importa diante do fato de que ele representa um "gesto de exigência para que se respeite a Justiça, pilar básico de qualquer sistema minimamente democrático". A única interpretação possível dessa assertiva é a de que a prisão de Luiz Inácio é uma injustiça e o sistema judicial brasileiro não se revela democrático.
            Avançando a leitura, encontra-se uma frase de grande altivez: "O caso de Luís Inácio Lula da Silva tem um simbolismo único na história recente do nosso país". Por se tratar de um ex-presidente – o mais popular da história republicana – a justiça deve ser interpretada de maneira peculiar, aferindo a ele uma justiça também sui generis: aquela diferente da dos demais cidadãos, ou seja, a que somente teria viabilidade de aplicação para Luiz Inácio. 
Pois é, então, que se verifica a contradição das ideias contidas na convocatória: a justiça não respeitada naquele sistema não democrático deveria levar em consideração o "simbolismo único" de Lula na história nacional. Daí porque, para os signatários do texto, a justiça deva servir de modo diferenciado a um ex-presidente da República. Não há como se furtar a concluir que, para os combativos intelectuais e artistas, o ex-presidente em apreço seja merecedor de privilégios consoantes a um sistema democrático. Como um sistema concebido nesses termos jamais abarcaria tais privilégios, ter-se-ia uma peculiar forma de justiça.
Também chama a atenção que o julgamento de Lula seja visto como "um erro jurídico sem limites", já que não havia "uma única e mísera prova dos crimes dos quais ele foi acusado". O elevado conhecimento jurídico dos autores do panfleto e o acesso que tiveram aos autos é que lhes permitiu fazer essa afirmativa. Para legitimá-la, recorreu-se a um argumento de autoridade: "não se trata de opinião, mas de constatação". Não arrisque o leitor a discutir. A constatação é o bastante para que não se emita nenhuma opinião. É talvez desse modo que se vai construindo uma "nova" forma de diálogo para os defensores de Lula, aquela que prima pela constatação em detrimento da pluralidade de opiniões.
Não se pense que a referida "constatação" esteja ancorada apenas em virtude do conhecido embate entre o Juiz Sérgio Fernando Moro e os interesses defensivos do ex-presidente. O pretenso "erro jurídico" de sua condenação foi corroborado pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região numa trama que contou com a "complacência de todas as demais instâncias". Segundo esse raciocínio, todo o sistema processual penal brasileiro estaria contaminado por julgamentos destituídos de isenção e não acordes com a apreciação das provas. Dentre os acusados da Operação Lava-Jato, Lula seria um perseguido, o mais emblemático deles, aquele de "simbolismo único". Aqui residiria a "injustiça" que o vitimizou: sendo um ex-presidente, Luiz Inácio teria direito a uma justiça "diferente", o que lhe foi negado por "manobras jurídicas".
Esse argumento, sistematicamente utilizado pela militância petista, parece resistir ao bom senso e à capacidade crítica de qualquer observador da realidade brasileira dos últimos anos. Situar a condenação de Lula no campo político é argumento de rasa inteligência, proveniente de uma quimérica mania persecutória apta a justificar suas condutas não republicanas.
É então que, partindo para o epílogo, o texto reclama a participação de Lula nas eleições presidenciais. Eis o motivo essencial para se romper com a injusta segregação do ex-presidente. Sendo ele o único capaz de retomar o "rumo da normalidade" do país, não se poderia manter o "flagrante desrespeito às regras mais elementares da Justiça". Leia-se: não se poderia mantê-lo segregado. Nova contradição irrompe: a mesma política – e não o devido processo legal – que sacrificou a liberdade de Lula precisa preponderar sobre o julgamento judicial. Se a condenação é injusta, deve-se resolvê-la por intermédio da política. Com efeito, nada mais apropriado que atribuir à população brasileira a opção por elegê-lo. A tensão insolúvel entre a esfera política e a jurídica se resolveria com o processo eleitoral e, uma vez mais, a lei – no caso, a da Ficha Limpa – teria de ser utilizada também de forma diferenciada para Luiz Inácio. 
Esperemos para verificar, nos próximos meses, a extensão do famigerado "desrespeito às regras mais elementares de Justiça". Até que ele acabe, as "injustiças" e os privilégios permanecerão no cenário brasileiro.