sábado, 27 de outubro de 2007

Os mortos de Seabrook

Já comentei sobre a personalidade de Paulo Duarte, amigo íntimo de Mário de Andrade e intelectual combativo da era Vargas. Pois hoje lembrei-me de um trecho de suas memórias. Pouco antes de narrar a entrega de Olga aos nazistas, Paulo Duarte conta a história dos mortos de Seabrook. Vale a pena dar uma espiada. Ei-la:

''Eu havia lido poucos dias antes um livro de Seabrook, uma espécie de Blaise Cendrars de língua inglesa. Aí contava ele a estória de um velho feiticeiro que fazia trabalhar os mortos numa plantação de cana. Vultos maltrapilhos, passo incerto, ar aparvalhado, autômatos, olhar parado, vazio, mudos, sem uma queixa. Um dia, a um erro grave dera-lhes de comer bolos que continham sal. Aperceberam-se então que estavam mortos e fugiram espavoridos para as próprias sepulturas. Cada um, ao pé da sua, esgravatava a terra, a fim de reentrá-la, mas logo caíam como um morto cai, carcaça em decomposição.

Esta a estória de Seabrook.

Nós já vivêramos uma época em que um velho feiticeiro fazia também trabalharem os mortos, não para plantar cana, mas para ganhar eleições"

A citação, cuja ortografia mantive no original, foi retirada de DUARTE, Paulo. Memórias. Os mortos de Seabrook. Vol. IV. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 184.

Logo mais, volto para escrever novamente.

É só... Por ora é só...



sábado, 6 de outubro de 2007

Nelson Rodrigues: a vida como ela é...


Recentemente, vi nas vitrines de uma mega store O homem proibido, de Nelson Rodrigues. Não se trata de seu livro mais conhecido. Creio, aliás, que, em matéria de divulgação, apenas A vida como ela é e Engraçadinha tenham recebido a devida atenção. Isso, naturalmente, se deve aos esforços da Rede Globo que logrou produzir a versão "televisiva" dessas obras.

É provável que muitos conheçam as crônicas de A vida como ela é, adaptadas pela emissora nos anos 90. Além do bom elenco, a produção de época resultou fantástica, salvo alguns pequenos equívocos. A narração das crônicas fora feita por José Wilker, tendo seguido à risca trechos do texto original, publicado pela Companhia da Letras e organizado por Ruy Castro.

Com desenvolvimento e desfechos muito peculiares à obra rodriguiana, as histórias são puro deleite. É bem verdade que algumas podem soar insanas e talvez sejam até previsíveis: sogra que foge com o futuro genro; médico que tenta – mas não consegue! – trair a mulher; mulher infiel, afeita a toda sorte de sacanagem sexual; secretária-noiva que não sucumbe aos assédios do chefe...

Enfim, trata-se de personagens que hoje jamais causariam qualquer tipo de estupefação. Em 1950, contudo, pareciam raros e impassíveis de serem denunciados pela crônica vulgar. Nelson Rodrigues o fizera, entretanto. Por isso, a pujança de sua obra reside num questionamento moral até então jamais feito no Brasil.

Lidas hoje, à luz do contexto social brasileiro, não parecem capazes de suscitar grandes debates e tampouco de comover ou escandalizar alguém, exceto os mesmos personagens sociais que recalcitram em sua indelicada existência: velhas senhoras conservadoras, núcleos religiosos hipócritas e, sobretudo, falsos moralistas...

Assim, embora com laivos modernos, muitas dessas crônicas circunscrevem-se a um determinado tema e período, como se fossem, a rigor, datadas e monotemáticas. Aquelas que narram casos de adultério são paradigmáticas a esse respeito. Naquela época, causavam impacto; hoje, nada significariam, já que até mesmo a previsão legal para a conduta adúltera, insculpida no art. 240 do Código Penal, fora revogada! Tratando-se, portando, de atualização feita por legislação vetusta e arcaica, é de se compreender que não surte nenhum efeito essa história de marido ou mulher infiel em tempos hodiernos.

E já que falamos em infidelidade – tema por excelência dessas crônicas – não deixemos que a célebre frase do Nelson caia no esquecimento. Ei-la: "O homem fiel já nasceu morto".

Por fim, valeria um comentário sintético sobre o título das crônicas. "A vida como ela é" soa assaz pretensioso!

Sobre Engraçadinha, obra de maior fôlego e densidade social, falarei oportunamente.

É só... Por ora é só...