domingo, 28 de novembro de 2010

Preconceito: blog é coisa de veado (e vagabundo)

- Blog é coisa de veado!

- Com certeza: coisa de veado.

- Veado e vagabundo!

- Claro: o cara, além de veado, é vagabundo.

- Veado, porque blog é como diário. E diário é coisa de menina adolescente. Se o cara escreve diário na Internet, não importa. Continua sendo diário. Portanto, quem escreve diário, sendo homem, não é homem, é veado.

- É isso aí. Veado e vagabundo.

- Vagabundo mesmo. Quem escreve em blog não tem mais o que fazer da vida. Imagine: o cara escreve todo dia. É sempre aquela conversa mole. Se ainda fosse jornalista, vá lá....

- É mesmo. Se o cara trabalhasse, não teria tempo para escrever em blog, em diário ou sei lá.

- Isso não é nada. Quem quer saber da vida dele? Saber da vida de um veado e vagabundo?

- Quem? Quem quer saber?

- Só se forem outros veados que também têm blogs. Vira uma veadagem só! Um monte de veados vagabundos. Porque ser veado, vá lá, tudo bem. Agora, ser veado e vagabundo é o fim da picada.

- É verdade. Uma legião de blogueiros vagabundos.

- Blogueiros vagabundos é pleonasmo.

- Verdade. Pleonasmo. Pleonasíssimo.

- E tem vagabundo que escreve em blog porque diz que faz literatura. Publica lá uns contos, umas crônicas. Se fossem bons, publicaria em livros. Teria um monte de editoras querendo publicar. Mas, não. Os caras gostam mesmo é de blog.

- Veados! Uns veados! Uns vagabundos!

- Acham que o blog tem mais penetração.

- Tá vendo: isso é papo de veado. Penetração....

- Atinge um público maior, eles dizem. Não ficam presos às teias editoriais, ao controle do mercado literário.

- Pois é. Essa história de liberdade literária só pode ser coisa de veado.

- Homem que é homem não briga por liberdade. Homem que é homem, é livre. E pronto. O cara escreve o que quer e a editora publica. E ai do editor se não publicar.

- Mas é aí que está o ponto.

- Que ponto?

- Vou explicar. Preste a atenção: o editor só não publica se perceber que o cara é veado ou vagabundo. Aí, recusa os originais e manda o veado-vagagundo escrever em blog. O veado fica triste porque o livro não vai sair, mas, logo depois, percebe que o melhor é escrever em blog mesmo (afinal, também é vagabundo). Acha que sua obra será melhor difundida. É a tal história da penetração que você falou....

- Eu? Penetração?

- É. Penetração!

- Tô achando que você é que é veado. Você tem blog?

sábado, 20 de novembro de 2010

Mané Fogueteiro e a minha angústia

Existem certas angústias e sentimentos que, aos olhos da maioria das pessoas, poderiam soar insossas, não houvesse razão bastante peculiar que as justificassem....

Em 1992, quando Caetano fez 50 anos, houve um especial de comemoração de seu aniversário. Se não me engano, era época do então LP (também vendido na versão CD) "Circuladô de Fulô". O vídeo foi veiculado não sei onde e, depois, virou VHS.

No especial, Caetano cantava sua primeira música, que é digna de nota e merecia ter sido gravada. Também falava dos compositores que lhe inspiraram, sem se esquecer, obviamente, daquele que credita ser o mais importante da música popular brasileira: João Gilberto.

Referindo-se à sua música "Genipapo Absoluto", do LP "Estrangeiro", disse que havia emprestado uma parte da música de Braguinha (João de Barro), chamada "Mané Fogueteiro". O último trecho da música de Caetano é o seguinte:

"'Aquele que considera' a saudade
Uma mera contraluz que vem
Do que deixou pra trás
Não, esse só desfaz o signo
E a 'rosa também'".

Mané Fogueteiro, por sua vez, tem o seguinte trecho:

"Mané Fogueteiro gostava da Rosa
Cabocla mais linda esse mundo não tem
Mas o pior é que o Zé Boticário
Gostava um bocado da Rosa também".

Fiquei com "Mané Fogueteiro" na cabeça durante anos, sem saber a letra inteira. Como em 1992 a internet muito longe estava da nossa realidade, não tinha onde procurar pela música. Perguntei ao meu avô e à minha avó. Por serem mais velhos, provavelmente, conheceriam a composição de Braguinha. Ninguém, entretanto, ouvira falar dela.

Depois que meu avô morreu, ainda insisti com minha avó. Nenhuma lembrança, por mais vaga que fosse, ocupava a cabeça dela. Era o que dizia, embora eu tivesse a convicção de que, repentinamente, ainda fosse se recordar da melodia e, consequentemente, da letra. No ano passado, consegui uma bela versão da música. Baixei-a da internet e a remeti para minha irmã, que estava indo para Rio Preto visitar minha avó. Bastaria reproduzi-la no laptop para que sua memória fosse refrescada. Minha irmã de fato dormiu em seu apartamento, conversou com ela e riu de suas histórias. Por algum motivo que agora me escapa, esqueci-me de perguntar à minha irmã sobre a resposta dada por D. Líbia quando da suposta audição da música.

Recentemente, indagada a respeito dessa resposta, minha irmã chegou a sugerir, hesitante, que nem sequer executou a música para sanar minha dúvida. Indignado, cobrei-lhe uma posição precisa, mas de nada adiantou.

Minha avó se foi pouco depois e o Mané Fogueteiro agora está atrelado a uma angústia que talvez me consuma o resto da vida.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Heresia

Estava na Siciliano. Vi o livro, peguei um exemplar e sentei no chão. Comecei a ler. Era fantástico, como todas as demais obras daquele autor. Gargalhei aos montes e, além disso, o clima da narrativa me tomou por inteiro. Não conseguia parar de lê-la. Continuei mais um pouco. Quando a trama anunciou o que realmente viria pela frente, tive de encerrar a leitura. Já era hora de ir embora. Não comprei o livro naquele dia, mas fiquei com água na boca.

Logo depois, ganhei a obra, que chegou pelos Correios. Como não havia lido muitas páginas, reiniciei a leitura e, pouco a pouco, fui notando que a história se arrastava. Parei para pensar que algo devia estar equivocado.

Seria porque o autor é especialista em outro gênero? Seria porque não estava no clima daquele texto? Mas, como? Na Siciliano eu podia jurar que o livro era delicioso....

Insisti. Não se deixa de ler um livro sem um motivo realmente forte. Por certo, eu estava enganado. Talvez fosse questão de algumas páginas. Bastaria ler mais um pouco para encontrar a felicidade. De nada adiantou, contudo. Prosseguir já não era mais um caminho agradável. Era incompatível com o prazer da leitura. Resolvi abandoná-la. Ainda tenho a esperança de que, em uma oportunidade qualquer, possa retomá-la e me envolver com ela.

Hoje, olhando para aquela situação, imagino que pareça uma grande heresia o fato de eu não ter conseguido terminar a leitura do livro. Trata-se de Os espiões, do Luis Fernando Veríssimo. Paciência. Quem sabe um dia?

sábado, 6 de novembro de 2010

Era carnaval

Era carnaval – Roberto Barbato Jr

Era carnaval. O desfile das Escolas de Samba talvez fosse o único programa para aquela noite. Hesitara ligar a TV, temendo que todo seu passado viesse à tona, em quadros nítidos, detalhistas. Temia por isso e não raro evitava qualquer situação capaz de fazê-la regredir no tempo. Pensara que devesse dormir, mas a idéia lhe soara covarde. Aceitara o desafio, não sem antes preparar uma dose de malte importado que houvera guardado para ocasiões especiais.

Uísque em punho, TV ligada. Acompanhava o desfile observando cada minúcia das fantasias. Apreciava-as. A velhice não fora capaz de elidir o despudor que tivera nos anos de juventude. As mulheres desnudas, seios aparentes e as nádegas destacadas pelas câmeras não lhe causavam nenhuma espécie de repulsa. Não tinha, ademais, o falso moralismo característico das mulheres de sua geração. Não sabia, por questão de natureza, ser hipócrita. Agira assim desde sempre. Agora, tão-só e concentrada, via a pouca vergonha de que outrora fora cúmplice, sem ter de opinar e tampouco se defender. Se quisessem, poderiam se desnudar por inteiro, pensava sobre as meninas da tela. Tanto fazia. Era carnaval.

Lembrava-se com sabor dos anos em que figurava como a mais destacada vedete do Teatro de Revista. À época, tachada de sirigaita, fazia questão de afrontar as senhoras de família. Deixava as coxas à mostra, despertando a lascívia masculina. Não abria mão do alto salto, sempre a retesar a panturrilha, de modo a evidenciá-la em seus mais definidos contornos. Rebolava vulgarmente, içava a anca, dando giros sutis para que parecesse provocante. Mesmo os homens menos abnegados lhe enxergavam um excesso de leviandade.

O ônus de sua irreverência, contudo, fora pesado: apaixonara-se e casara-se com Heitor Fontana. Político ambicioso, Heitor logo se encarregara de enfrear a mulher. Dela exigia que o acompanhasse, resignadamente, em jantares os mais enfadonhos, típicos da classe política de então. Dela também exigia que se vestisse assaz contida. Por ele, teria que abandonar os hábitos da vida pregressa, os dizeres, as indumentárias. Não foi sem relutância que fizera tudo isso. Depois, dera um, dois, três filhos ao marido.

Os meninos cresceram ouvindo, sempre à socapa, comentários sobre o passado da mãe. Acometia-os um sentimento de injustiça, como duvidassem do teor daquelas narrativas. Trancavam-se na biblioteca com o pai, a fim de confirmar a veracidade dos boatos.

Eram filhos da puta!

Do dia para a noite, os comentários cessaram: Heitor ocupara pasta no Ministério. Já não eram filhos da puta, os meninos. Eram filhos-do-Ministro. Ela passou a ser a mulher-do-Ministro, a senhora Fontana. Tivera de se conter ainda mais. Haveria de reprimir-se demasiado, senão pela vontade, pela força. Passara a freqüentar, com relativa assiduidade, eventos ligados a ações beneméritas. Chás com primeiras damas e salões de beleza, embora não lhe interessassem, eram-lhe menos inconvenientes. A proximidade com o poder, o requinte e a abundância financeira não lhe causavam prazer, entretanto. Pudesse optar, continuaria na vida de tempos pretéritos, participando de espetáculos de casas de show, exibindo os belos dotes físicos que Deus felizmente lhe dera.

Rebelara-se um dia. Deixara de ser a mulher de Heitor, mãe de seus filhos, mulher de ministro, enfim. Tivera um repente e voltara para vida noturna. Assinara contrato com uma casa de prestígio. Lá fatalmente compareceriam os amigos do marido e - quem sabe? – até os filhos.... Sentira orgulho da decisão. Irromperia contra qualquer adversidade, manteria seu firme propósito. A idade, já um pouco avançada para quem possui tamanhas pretensões, não lhe dedicara peso nenhum. Era com leveza que reacendia as chamas do antigo ofício, com paz de espírito e, sobretudo, com serenidade.

Inconformado, Heitor fizera várias diligências: fechara a casa, procurara abafar o pretenso escândalo, comprara a imprensa. Tudo quanto pudesse ser resumido às cifras de sua posse seria devidamente utilizado. Lançara mão de todos os expedientes para que sua reputação não fosse conspurcada. Não escondera a verdade dos meninos, já crescidos. Desde então Julieta jamais fora vista em festas e coquetéis. Passara extenso tempo reclusa em casa. Dizia-se que sofria dos nervos, tendo se submetido, inclusive, a incansáveis tratamentos de choque e terapia.

Mudara o governo. A carreira promissora de Heitor não resistira ao segundo ato. Sobreviera-lhe um infortúnio quando, imprudente, deixara-se levar pelos sedutores louros da corrupção. Não fora capaz de se aprumar tal como seus pares faziam com tanta facilidade. Restara-lhe apenas o ofício de causídico e, mesmo este, diante de circunstâncias tão vexaminosas, não lhe pudera garantir o padrão de vida com o qual havia se acostumado. As causas que assumia eram raras e pouco rentáveis. Os filhos, destituídos de habilidades profissionais, tiveram de procurar emprego! Findaram-se as polpudas mesadas que serviam a extravagâncias de variado gênero.

Emprego!, diziam de si para si mesmos, a boca desdenhosa, torta.

Julieta a tudo assistia calada. Testemunhava a decadência material da família sem um mínimo de compaixão pelos seus. Achava mesmo que os filhos deveriam tomar tento, mostrando-se úteis de alguma maneira. Chamava-os para conversar.

Vagabundos! Eram vagabundos! Uns indolentes.

Desentendera-se com todos, não falava mais palavra com nenhum. Heitor expulsara-a de casa. Que fosse aos infernos! À merda! Pagara-lhe o aluguel de uma edícula fétida, no subúrbio da cidade. Deixara-a apenas com a memória sadia, apta a lhe dar alguma satisfação. Vivia só, embriagada de recordações.

Naquela noite, por longas horas, entre cores, sons, alegorias e nomes, pôde rever toda sua vida. Esboçando um riso furtivo e sarcástico, pensou em Heitor. Pensou no ministro. Pensou nos vagabundos. Pensou nos filhos da puta. Pensou também que nada mais importava: era carnaval.