Nós, elas e eles
Para Fernanda Grota D’Agostino
Nossas cabeças fervilhavam. Vestibular à vista, amores sufocados,
inquietações sobre sentimentos e, com frequência, conversas sobre as
indefinições do futuro. Geralmente era na sala da casa dela que ficávamos,
sentados em duas poltronas mediadas pelo aparelho de som. A música era baixa e
a conversa também, como se estivéssemos fazendo confidências. Até eram
segredos, mas ninguém teria interesse em ouvi-los.
Quando chegava o inverno, quase tudo era motivo de conversa.
Vem prá cá, eu faço um cappuccino. Agora? Claro. Cê tá ocupado? Não, tava
tocando guitarra. Podia ser a qualquer hora. Morávamos perto e naquela época
não tinha essa história de cuidados com a segurança noturna. O problema era
enfrentar o frio. Contudo, eu tinha uma fiel jaqueta e umas camisas de flanela que
só Deus sabe o quanto eram queridas.
Em época de provas, corríamos à casa de alguém, a pretexto
de estudar. Vez por outra, rolava um som, uma TV Pirata ou mesmo um filme que
tivesse disponível nas velhas VHS. Voltávamos a pé, abraçados ou de mãos dadas.
No caminho, a discussão não era, em si, a prova do dia seguinte e tampouco o
interesse que a matéria poderia despertar. O que estava em pauta eram nossos dilemas
sentimentais. Revezávamos o tempo para falarmos dela e dele. E, se porventura,
um de nós se excedia, não havia incompreensão. Ao final, desculpávamo-nos e
garantíamos que ele ou ela seria o assunto do dia seguinte. Eu a deixava em
casa e ia embora.
É verdade. Ela e ele, ou elas e eles, sempre suspeitaram que
entre nós houvesse alguma coisa. Não se justificava tanto tempo juntos, tanta
conversa e cumplicidade que transcendessem a amizade. Abraçados ou de mãos
dadas, convenhamos, soava inequívoco sermos um casal apaixonado. É provável que
tenhamos constituído até motivos de apostas alheias.
Seguimos juntos até que chegasse o temido vestibular. Então,
aos poucos, cada um tomou um rumo e alguns daqueles dilemas antigos perderam
importância. Cada qual se encontrou e o nosso afastamento se tornou uma
realidade. Se tivesse de apostar em alguma razão para isso ter acontecido, jogaria tudo na minha incapacidade de desprendimento, no meu estúpido egoísmo e
naquela acomodação que o tempo vai tornando cada vez mais forte e triste.
Ainda nos falamos. Eventualmente e com muita saudade.
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