Em tempos sombrios qualquer atitude, por mais boba que seja, pode significar algo suspeito. É com base nessa suspeição quase paranóica que a ditadura militar brasileira, nos idos dos anos 1960-1970, incorreu numa série de lamentáveis equívocos. É sabido que muitos funcionários do aparato repressivo do Estado não eram bem preparados para executar as incumbências dadas por seus chefes. Eram meros autômatos, destituídos de inteligência própria. Lembro-me de uma reportagem da Folha de S. Paulo que versava sobre a incapacidade técnica (leia-se: burrice) desses funcionários.
Um dos capítulos da série Anos Rebeldes, veiculada pela Rede Globo em 1992, "revelou" (não se sabe se o fato aconteceu) que um estúpido meganha do governo foi capaz de apreender um exemplar do livro A capital, de Eça de Queiroz. Por certo, o imbecil acreditava tratar-se de leitura subversiva. É óbvio que confundira o livro do escritor lusitano com O capital, de Karl Marx.
Um equívoco curioso também aconteceu numa faculdade pública de engenharia.
Em 1970, quando chegara para aplicar a prova de sua disciplina, o professor se deparou com uma discussão. Seus alunos estavam divididos entre fazer ou não fazer a avaliação. Alguns queriam prazo maior para estudar. Outros, se pudessem, fariam a prova naquele mesmo dia. O debate foi longe e os ânimos se acirraram. Enfim, decidiu-se que a avaliação seria adiada.
Sem imaginar que, em poucos minutos, aquele fato seria noticiado por todo o campus, o professor voltou para seu departamento. Lá chegando foi informado de que o diretor da faculdade, à época um militar, queria lhe falar. Surpreso, compareceu à sala do sujeito.
Iniciou-se, então, um discurso sobre os benefícios do regime de exceção militar. O insano diretor elencou ao professor os "avanços" da ditadura, tentou mostrar-lhe que a criminalidade diminuíra, que a taxa de desemprego caíra substancialmente. Vociferou contra os estudantes, por ele considerados vagabundos que só faziam política universitária. Deixou claro que ocupara o posto no qual estava para fazer ruir qualquer tentativa de subversão estudantil.
O professor não conseguiu compreender a motivação daquela estúpida campanha ideológica encetada de forma tão particular e tão limitada. Teria questionado o poder vigente em alguma reunião da universidade? Fizera alguma observação afrontosa ao governo? Colocara em xeque alguma diretriz do autoritarismo brasileiro? Não, nada disso. Embora avesso ao Estado ditatorial, o professor preferia acompanhar a política de longe, com o cuidado necessário para não conspurcar sua atividade profissional, que lhe era tão cara.
Ao fim do discurso, o diretor revelou que ficara sabendo da "insurreição" dos estudantes da turma do professor. Imaginou que ali estivesse o início de uma contra-revolução, algo capaz de abalar a estrutura da política nacional. Chegara a seus ouvidos que aquela turma estava disposta a lutar pelo fim da ditadura e que iria depor o ilustre diretor.
O professor, com a lucidez que lhe sempre fora peculiar, tentou mostrar ao seu interlocutor que o debate de seus alunos era tão-somente para resolver a data de uma prova e não tinha nenhuma intenção política. Depois de sua explanação, ainda ouviu o brado da inteligência militar brasileira:
- Nós temos maneiras eficazes de acabar com aqueles que lutam contra a ordem.
Quanta burrice!
Um comentário:
Mais um belo texto, Roberto. Prova que também, além de ficcionista, és um bom articulista. Um abraço e feliz ano novo.
Postar um comentário