Sempre achei curiosa a idéia de que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Conheci uma dessas mulheres.
Na década de vinte, ainda moça, foi vizinha de Heitor Villa-Lobos. Conversava com ele amiúde. Acompanhou, não sei em que medida, o conturbado relacionamento do primeiro casamento do maestro. Afirmou-me, por várias vezes, que ele não transpunha para a partitura suas composições, cabendo à sua esposa essa árdua tarefa. Disse-me, também, que conheceu a velha guarda do samba e do choro cariocas. Benedito Lacerda e outros compositores ficavam nas ruas da pacata capital brasileira a executar músicas que entrariam para a história. Talvez tenha sido nessa época que se lhe despertou alguma aptidão para a música. Estudou piano e, ainda sem precisar trabalhar, se prestava, juntamente com amigas, a virar as partituras dos pianistas que faziam o som dos cinemas naquele período.
Nunca falou-me sobre seu pai. Soube depois que o sujeito era um alfaiate de mão cheia, servidor de gente graúda, mas que, por ter se envolvido com negócios escusos, teve de aportar à socapa em terras argentinas. Sua mãe e ela, por necessidade, passaram a fazer doces para a famosa Confeitaria Colombo.
Por volta da ditadura varguista, mais precisamente nos anos do Estado Novo, conheceu um jovem egresso do interior paulista. Ele fora estudar Medicina na capital e certamente se encantou com seus enormes olhos azuis. Casaram-se quando o regime de exceção de Vargas havia recrudescido. Depois que ele terminou a faculdade, mudaram-se para São José do Rio Preto, interior paulista, já com um filho a ser criado. Depois, viria outro.
Sempre a ouvi dizer que estava longe de sua terra. Havia nesse comentário algo que se assemelhava aos sentimentos dos escravos quando se queixavam da distância da mãe pátria. Acompanhava pelos jornais e pela TV o que acontecia no Rio de Janeiro. Não conseguiu, durante extenso tempo, acreditar que o paraíso no qual fora criada se transformara em uma cidade hostil, sujeita a disputas de territórios pelos narcotraficantes. Queixava-se disso, embora não demonstrasse muita tristeza.
O marido, já médico estabelecido e bastante conhecido, resolveu atirar-se na política. Obteve êxito, elegendo-se vereador por quatro vezes consecutivas. Ele casou-se também com a cidade, transitando por vários segmentos, costurando tramas políticas, estratégias sociais e tudo aquilo que era capaz de fazer pelo bem dos riopretenses. Cobiçou a prefeitura que, diziam, seria conquistada sem muitos esforços. Dela desistiu quando algo mais importante lhe aconteceu: foi nomeado diretor do Instituto Adolfo Lutz. Conduziu-o com severidade e rigor extremos. Entre tantas conquistas, em 1958, logrou a erradicação da Poliomielite dos arrabaldes da região.
Enquanto ele se mostrava um sujeito de educação rígida e muito austero – o que o afastava de muita gente, admita-se! – ela a todos encantava. Era uma gozadora. Não havia quase nada que escapasse à sua ironia despretensiosa, muito sutil. Gargalhava, debochava de coisa séria e não se deixava abater quando o marido lhe impingia alguma espécie de reprimenda injusta. Tinha a serenidade necessária para suportar a personalidade frenética dele. Mais que isso, tinha a fibra incansável para apoiá-lo em suas missões. Sem ela, ele não teria empreendido tanto.
Essa grande mulher morreu na semana passada, aos noventa anos, talvez com a mesma placidez com que sempre viveu. Era minha avó.
2 comentários:
Meu caro, que belíssimo texto. Do início ao último parágrafo, pensei que fosse ficção histórica romanceada. Escreve muito bem. Parabéns! Um abraço, e feliz Natal.
Ah primo, que texto mais lindo, fiquei emocionada e vou mandar por e-mail pr alguns amigos também... parabéns mais uma vez! Bjos pr familia.
Postar um comentário