Entre consagrados e normais - Roberto Barbato Jr
Depois de alcançar décadas em vigência, a Lei Rouanet continua a propiciar toda sorte de discussões entre artistas, produtores e intelectuais. Recentemente, em entrevista ao jornal Valor Econômico, Francisco Bosco, presidente da Funarte, disse que seu pai, o músico João Bosco, “tem a dignidade moral de nunca ter se inscrito na Rouanet”. A publicação da entrevista ensejou comentários contundentes da articulista Fernanda Torres, (Folha de S. Paulo, “Os indignos”, 01/05) que se opôs frontalmente à sua manifestação acerca dos critérios utilizados para conceder os benefícios da consignada lei.
Depois de alcançar décadas em vigência, a Lei Rouanet continua a propiciar toda sorte de discussões entre artistas, produtores e intelectuais. Recentemente, em entrevista ao jornal Valor Econômico, Francisco Bosco, presidente da Funarte, disse que seu pai, o músico João Bosco, “tem a dignidade moral de nunca ter se inscrito na Rouanet”. A publicação da entrevista ensejou comentários contundentes da articulista Fernanda Torres, (Folha de S. Paulo, “Os indignos”, 01/05) que se opôs frontalmente à sua manifestação acerca dos critérios utilizados para conceder os benefícios da consignada lei.
Em réplica, (Folha de S. Paulo, “Os normais”, 04/05), Bosco afirmou “que o Estado, de modo geral, não deve usar dinheiro público para viabilizar projetos que o mercado já viabiliza”. Dessume-se de suas ponderações que artistas capazes de obter recursos por meio do mercado não deveriam se inscrever na Lei Rouanet. Levado ao limite, seu raciocínio soa exagerado. Não deixa, contudo, de suscitar uma questão visceral da vida brasileira: a quem cabe promover a produção e difusão das manifestações culturais?
Quando das primeiras experiências formais de administração cultural, máxime por ocasião da criação do Departamento de Cultura, dirigido por Mário de Andrade no decênio de 1930, a ideia a nortear a gestão cultural consistia em suprimir o caráter ornamental das manifestações artísticas, em sua maioria havidas como elitistas, e aproximá-las do povo. Tratava-se de elidir o fosso abissal entre a cultura erudita e a cultura popular. Os concertos populares realizados no Teatro Municipal de São Paulo são um exemplo de como era possível franquear o acesso do povo à música erudita. Integrantes de classes subalternadas eram convidados a se imiscuir em um universo cujas portas estavam, até então, inequivocamente fechadas. À época, como inexistissem mecanismos de mercado para promover a cultura, creditava-se tão somente ao Estado essa tarefa. Talvez a primeira empreitada a contar com a iniciativa privada tenha sido a Biblioteca Ambulante. Com o fornecimento da carroceria do carro-biblioteca pela Ford Motor Company Exports Inc a política cultural brasileira passou a visar investimentos privados.
Longo período se passou desde que Mário de Andrade revolucionou a cultura na Pauliceia Desvairada. Com a irrupção da ingerência da iniciativa privada na gestão cultural, o debate sobre o papel do Estado nessa seara assumiu maior relevo. Questiona-se se é legítimo pensar que à esfera estatal incumbe tutelar apenas produções artísticas e culturais que sejam hipossuficientes. Indaga-se se o Estado deve, também, acolher pretensões de artistas que poderiam encontrar respaldo nas teias do mercado brasileiro?
Em um contexto cultural como o nosso, conviria responder a essas questões levando-se em consideração que ainda não se concretizou uma política cultural apta a abarcar as manifestações artísticas de exígua circulação no Brasil. Há, ainda, um vasto potencial de criação que não deixou o estágio do planejamento. Por não contar com apoio do Estado e do mercado, esse potencial distante está de se transformar em cultura propriamente dita. Fala-se muito em criação e difusão da arte por meio de estratégicas midiáticas e pela internet. O que não se evidencia é que existe uma enorme carência de recursos para externar as produções de um Brasil ainda subdesenvolvido, mas absolutamente rico em suas expressões culturais. É difícil atender a essa demanda sem que se recorra ao patrocínio estatal e quase impossível que o mercado se interesse por ela.
De outro lado, é evidente que artistas já renomados – consagrados, indignos ou normais – encontrem maior facilidade de patrocínio para seus projetos. O caminho de quem já obteve o reconhecimento público é mais curto e sujeito a menores riscos financeiros. Nem por isso seria sensato que o Estado recusasse incentivo fiscal àqueles que, pela trajetória construída ao longo de décadas, são “consagrados”. A nenhum título se justificaria, por exemplo, a negativa em patrocinar, por meio da Lei Rouanet, um espetáculo protagonizado por Fernanda Montenegro ou Nathalia Thimberg. Se é certo que ambas têm grande potencial de atração para incremento de seus projetos na iniciativa privada, não é menos correto admitir que vetar suas possibilidades de concretização concorreria para disseminar uma postura antidemocrática, contrária ao que Mário de Andrade intentou lograr.
Entre consagrados e normais, Estado e mercado, há que se buscar o meio termo. E isso nada tem a ver com dignidade moral. É mera questão de sensatez.
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