Quem leu Benjamim deve se lembrar de Aliandro Sgaratti, "o companheiro xifópago do cidadão". Chico descreve sua origem e condição social nos seguintes termos:
" Aliandro anda com os bolsos apinhados de contas, búzios, figas e seu tato custou a discernir as chaves do carro. Sai dirigindo em ziguezague, acompanhando o furgão de seus assessores pelo retrovisor, e um rosário de ossos balança na alça do espelho. Mas nenhum objeto lhe é mais caro do que a pequena opala oval, no centro do medalhão de ouro que leva aconchegado ao peito. Herança da mãe, que se fez incrustar a pedra no umbigo durante a gestação de Aliandro, tendo fé em que daria à luz um filho branco. O pai de Aliandro, preto igual à mãe porém agnóstico, já não gostou de ver o bebê dormindo no berçário, a pele leitosa. E quando os olhos do garoto firmaram sua cor azul-celeste, sumiu no mundo. Burlando as leis da genética desde o nascedouro, Aliandro habilitou-se a desafiar o que mais o destino lhe reservasse. Ele convenceu-se de que, se acatasse as estatísticas, moraria até hoje nas palafitas, estaria tuberculoso, seria semi-analfabeto, ou quem sabe trabalharia na construção civil, freqüentaria o culto, pagaria o dízimo, ou quem sabe lavaria cloacas, teria sete filhos de mãe alcoólatra, e em todo caso jamais conheceria a carne rosada da lagosta, sua consistência de mulher jovem. Se valesse a justiça dos homens, ele sabe que não estaria hoje ao volante de um carro hidramático, que pode pilotar manipulando amuletos. (...) Se Aliandro fosse homem de aguardar a sua vez, nunca se faria lembrar por uma secretária de voz grave que, depois de despachar um infeliz pelo telefone, levanta-se para cumprimentá-lo com os braços cheios de pulseiras, e o introduz nos estúdios de G. Gâmbolo".
(BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 34-35).
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