sábado, 21 de junho de 2008

Aliandro e a carne rosada da lagosta

Cenas da Literatura II: Aliandro e a carne rosada da lagosta

Mais uma da série "Cenas da literatura". Pois é... Desta vez, vamos de Chico. Não se trata, entretanto, de uma cena, mas da descrição de um personagem. O parágrafo é belíssimo. E ainda tem mané que acha que o Chico devia apenas fazer música! Quanta ignorância! Arre!!!

Quem leu Benjamim deve se lembrar de Aliandro Sgaratti, "o companheiro xifópago do cidadão". Chico descreve sua origem e condição social nos seguintes termos:

" Aliandro anda com os bolsos apinhados de contas, búzios, figas e seu tato custou a discernir as chaves do carro. Sai dirigindo em ziguezague, acompanhando o furgão de seus assessores pelo retrovisor, e um rosário de ossos balança na alça do espelho. Mas nenhum objeto lhe é mais caro do que a pequena opala oval, no centro do medalhão de ouro que leva aconchegado ao peito. Herança da mãe, que se fez incrustar a pedra no umbigo durante a gestação de Aliandro, tendo fé em que daria à luz um filho branco. O pai de Aliandro, preto igual à mãe porém agnóstico, já não gostou de ver o bebê dormindo no berçário, a pele leitosa. E quando os olhos do garoto firmaram sua cor azul-celeste, sumiu no mundo. Burlando as leis da genética desde o nascedouro, Aliandro habilitou-se a desafiar o que mais o destino lhe reservasse. Ele convenceu-se de que, se acatasse as estatísticas, moraria até hoje nas palafitas, estaria tuberculoso, seria semi-analfabeto, ou quem sabe trabalharia na construção civil, freqüentaria o culto, pagaria o dízimo, ou quem sabe lavaria cloacas, teria sete filhos de mãe alcoólatra, e em todo caso jamais conheceria a carne rosada da lagosta, sua consistência de mulher jovem. Se valesse a justiça dos homens, ele sabe que não estaria hoje ao volante de um carro hidramático, que pode pilotar manipulando amuletos. (...) Se Aliandro fosse homem de aguardar a sua vez, nunca se faria lembrar por uma secretária de voz grave que, depois de despachar um infeliz pelo telefone, levanta-se para cumprimentá-lo com os braços cheios de pulseiras, e o introduz nos estúdios de G. Gâmbolo".

(BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 34-35).




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