A primeira cena da série foi descrita em um único parágrafo. Trata-se do episódio em que Mathieu Delarue, protagonista de A Idade da Razão, de Sartre, quebra um vaso de 3.000 anos. Isso mesmo: um vaso de três mil anos (agora por extenso). Não vou comentá-la agora. Apenas confesso que, pelas razões de Mathieu, é provável que todos nós um dia tenhamos desejado quebrar um vaso desses...
"Tinha sete anos. Estava em Pithiviers, na casa de tio Jules, o dentista, sozinho na sala de espera, e brincava de não se deixar existir. Era preciso não tentar não se engolir, como quando a gente conserva sobre a língua um líquido demasiado frio, evitando o pequeno movimento da deglutição que o faria escorrer para a garganta. Conseguira esvaziar completamente a cabeça. Mas esse vazio ainda tinha um gosto. Era um dia de tolices. Vegetava num calor provinciano que cheirava a mosca e eis que tinha pegado uma e lhe arrancara as asas. Verificara que a cabeça se assemelhava a uma cabeça de fósforo, fora buscar a caixa na cozinha e esfregara nela a mosca para ver se acendia. Tudo isso com grande displicência: era uma pífia comédia de vagabundo e ele não conseguia interessar-se por si próprio, sabia muito bem que a mosca não acenderia. Sobre a mesa havia revistas rasgadas e um belo vaso chinês, verde e cinza, com alças como garras de papagaio. O tio lhe dissera que o vaso tinha três mil anos. Mathieu aproximara-se do vaso com as mãos para trás e contemplara-o com inquietude. Era apavorante ser uma bolinha de miolo de pão neste velho mundo ressequido, diante de um vaso impassível de três mil anos. Voltara-lhe as costas e pusera-se a brincar de vesgo e a fungar na frente do espelho sem chegar a distrair-se. E, de repente, ele retornara à mesa, erguera o vaso, que era pesadíssimo, e o jogara no chão. Isso lhe acontecera sem mais aquela e logo depois ele se sentia leve, diáfano. Olhava os cacos de porcelana, maravilhado. Algo acabara de ocorrer com aquele vaso de três mil anos entre os quinquagenários, na luminosidade do verão, algo totalmente irreverente, que se assemelhava a uma manhã. Pensara: 'Eu fiz isso', e se sentiu orgulhoso, livre, sem peias; sem família, sem origem, um pequeno broto obstinado que rompera a crosta terrestre".
(SARTRE, Jean-Paul. A idade da razão: os caminhos da liberdade 1. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 58-59).
Em tempo: para quem não leu, sugiro a leitura do post "Vidas secas, Fabiano e o soldado amarelo", datado de 13.11.2007.
É só... Por ora é só...
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