A reportagem da Folha (24/06) sobre o show de João Gilberto, no último domingo, no Carnegie Hall, deu mostras de que o gênio continua em plena forma: inovando, criando, arrasando. Também deu para notar que João continua reclamando:
"Desculpe falar uma coisa, tem um ventinho aqui na minha cabeça, me faz um pouco afônico";
"Please, esse ventinho";
"Olha o meu ventinho outra vez, please" (cantalorando).
Quando leio algo sobre sua personalidade excêntrica e mal-humorada, tenciono desconfiar. Assisti a um show dele que, por si só, seria capaz de desmentir, por completo, essa fama antiga.
24 de maio de 1996. João Gilberto faria o segundo show no Centro de Convivência Cultural de Campinas. Eu havia comprado meu ingresso com antecedência. Ganhei até camiseta, com foto e tudo. A expectativa do show era enorme. O que João diria do Centro de Convivência? Reclamaria da acústica? Do som? Do microfone? Não importa. Valeria a pena estar ali, ouvindo-o tocar.
Teatro lotado. Pouco atraso. Imaginei que fosse entrar no palco depois de uma hora. Começou a tocar, a cara meio amarrada. Deu boa noite após a execução da primeira música. Aos poucos, ninguém entendeu, foi se soltando. Passou a fazer comentários entre uma música e outra. Chegou até a contar piada. Ninguém entendeu a razão daquele bom humor. Não se tratava de João Gilberto, aquele que reclama de tudo e vive emburrado? Sim, João Gilberto. Então, tudo aquilo que diziam a seu respeito era invenção da mídia brasileira? Não podia ser... João Gilberto, bem humorado, contando piada?
Bebel entrou no palco. Cantaram uma música juntos. Não me recordo qual era. Depois, João iniciou "Bahia com H". No meio da música estancou. Olhares inviesados. O que aconteceu? Era certo que viriam reclamações. Suspense... Ele parou para falar da letra da música, apenas isso! Dedilhou alguns acordes e recitou os versos da canção. Pediu para que a platéia prestasse atenção na descrição da Bahia.
- É uma graça! É mesmo um cartão postal, como diz a letra – falou animadíssimo enquanto ainda dedilhava alguns acordes.
Para surpresa de todos, João sorria. Bebel também. Tudo era festa. O violão soou novamente. Cantaram juntos. Bebel, àquela altura, já estava séria.
Seria possível? João Gilberto estava ali, interagindo plenamente com a platéia. Reclamações? Poucas, pouquíssimas. Vez por outra batia no microfone com o indicador, falava alguma coisa para um tal de Castor e continuava a tocar. E tocava maravilhosamente, afinadíssimo. Continuava perfeito. Aquele show merecia gravação, para impressão de CD e tudo o mais. Quem sabe um vídeo, justamente para registrar o bom humor do gênio?
Pois o show terminou. Saí rapidamente para fumar e, de esguelha, ouvi uma conversa entre dois rapazes. Não falavam sobre a felicidade do João e tampouco das reclamações feitas. Falavam da Camila, possivelmente uma amiga. Um deles estava inconformado porque a menina havia assistido ao show no dia anterior e dissera que o João cantava muito mal. O outro rapaz vociferou que a tal Camila era uma besta. Quando percebi, os dois olhavam em minha direção, eu a balançar negativamente a cabeça enquanto dava um longo trago no cigarro. De repente, sem nenhuma intimidade, não me contive e disparei:
- A Camila é mesmo uma besta!
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