A relação que tenho com o ensino formal é, no mínimo, curiosa. Acho que passei tempo demais sentado em bancos escolares, fazendo cursos, provas, trabalhos e desempenhando todas as atividades acadêmicas exigidas no dia a dia da educação brasileira. Depois de fazer a graduação em Ciências Sociais, fiz mestrado em Sociologia. Até aqui, é possível somar 7 anos. Veio, então, o doutorado. Aduza-se mais 5 anos. Pela matemática elementar, somando tudo, temos 12 anos. Quando estava prestes a terminar o doutorado, fui convidado para lecionar Sociologia num curso de Direito. Direito? Pois é: Direito. Pouco tempo se passaria para que eu voltasse a estudar novamente, fazendo a graduação de Direito. Tome mais 4 anos de bancos escolares, provas, trabalhos e, no final, a prova da OAB!
Vamos lá... Como professor de Sociologia o que faria num curso de Direito? Minhas preocupações acadêmicas, até então, estavam circunscritas ao estudo da cultura brasileira, da relação entre a intelectualidade e a política brasileiras, entre a literatura e a administração pública. Enfim, tratava-se de temas que nenhuma – ou melhor, pouquíssima – relação tinha com o Direito. Como a bolsa de doutorado estava acabando e logo mais eu ficaria desempregado, não tive alternativa a não ser aceitar a proposta de emprego.
O detalhe: esse emprego, que foi o primeiro da minha vida, “caiu na minha cabeça”. É verdade. Pode ser difícil de acreditar, mas sou um daqueles casos raros em que o sujeito está em casa tranquilamente e alguém lhe telefona para oferecer um emprego. Já viu isso?
Uma vez acordado que assumiria as aulas, sobreveio outra preocupação. Embora houvesse um programa a ser seguido, eu teria que fazer o possível para que a atenção de alunos em formação jurídica pudesse estar voltada para a Sociologia. Tinha a convicção de que um curso de Sociologia Geral para estudantes de Direito deveria ser ministrado estabelecendo relações interessantes com o universo jurídico, em vez de ficar falando sobre teoria sociológica. Era isso que eu precisava fazer. Todavia, a título de apresentação do curso, a abordagem feita na primeira aula fugiu a essa preocupação.
No primeiro dia de aula, fiquei um pouco assustado com a quantidade de alunos que estavam na sala. Pela pequena abertura da porta, aquele retângulo revestido de vidro, notei que ali devia ter uns 60 alunos (depois, soube que eram 86).
Frio na barriga... Comecei a falar. A ideia básica daquela aula consistia em apresentar aos alunos o que era a Sociologia. Assim, falaria sobre os três autores clássicos (Marx, Weber e Durkheim) e, também, sobre os principais temas naquela época enfrentados pelos pensadores da Sociologia. Claro que tudo isso era tão somente um panorama do assunto. Não poderia, na primeira aula, ser muito cansativo. Nem mesmo teria tempo para fazer algo que não fosse um resumão das teorias sociológicas clássicas.
Uma vez terminada a exposição relativa a esse ponto, eu deveria abordar as investigações sociológicas feitas no Brasil. Para isso, deveria assinalar o período de gestação da Sociologia, falando inclusive sobre o ensaísmo de 1930 e seus representantes (Sergio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, etc). Num momento posterior, discorreria sobre a tradição uspiana (Fernando de Azevedo, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso). Pois bem: tudo isso foi feito a título de mera sinopse, apenas para situar os alunos sobre a Sociologia Brasileira.
Aconteceu, então, um fato curioso. Enquanto eu falava sobre o “início” da Sociologia no Brasil fui repentinamente interrompido por um aluno. Era um sujeito mais velho do que eu, com seus 50 anos. Ele me interpelou no momento em que eu explicava o fato de a Sociologia estar, no início do século XX, mais próxima de um “ponto de vista” do que de uma disciplina acadêmica. Referia-me à análise feita por Antonio Candido em um de seus célebres ensaios contidos em Literatura e Sociedade. Assim, mostrei que a geração antecessora da institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, entendia que era preciso investigar as raízes da nacionalidade e as razões do atraso brasileiro. Disse que tais escritores entendiam o Brasil como um país atrasado, marginalizado, periférico. Enfim, um país desgraçado. Pronto: veio, então, a interpelação do aluno.
Inconformado com minha exposição, disparou a falar que o Brasil era um país fantástico, que tinha tais e quais características, que jamais poderia ser visto como uma nação desgraçada. Aduziu que o Afeganistão (ou algum outro país cujo nome não me recordo) é que poderia assim ser considerado. Lá, afinal, existe miséria, analfabetismo, falta de infraestrutura para isso, ausência de condições para aquilo. Enfim, de modo inflamado e ardoroso, defendeu o Brasil. Terminou sua explanação com a seguinte frase: “eu sou um nacionalista e acho que o senhor deveria ler mais”.
No começo da fala dele eu já havia identificado a confusão na qual incorrera: atribuiu a mim a avaliação que autores do início do século passado fizeram sobre a realidade brasileira. Ou seja, na cabeça dele, quem havia chamado o país de periférico, atrasado e desgraçado não eram aqueles autores, mas sim aquele menino de vinte e poucos anos que estava na frente dele a falar impropérios, quiçá ofendendo a pátria brasileira. Pois aquele menino deveria ler um pouco mais antes de falar tão mal do país dele.
Nem preciso dizer que, ao final daquela frase, os alunos (eram 86, né?) ficaram em silêncio absoluto, aguardando pela minha resposta. Caramba! Um professor ser desmoralizado logo no primeiro dia de aula? O que eu deveria fazer?
Com aquela serenidade típica de quem sabe – na verdade, “pensa saber” – o que está falando, iniciei meu discurso. Mostrei ao aluno, sem nenhum tom de revide, que ele estava fazendo uma grande confusão. Expliquei-lhe que, como ele, eu também tinha imenso apreço pelo nosso país. Cheguei a dizer que também era um nacionalista. Todavia, o que estava em causa ali, não era, em absoluto, a minha opinião. Deixei claro que estava apenas expondo o pensamento de uma época, de um período no qual a imagem que se tinha do Brasil era a de um país desgraçado.
Quando terminei de falar, o aluno me pediu desculpas. Aceitou que tivesse, de fato, feito a confusão por mim mencionada. Ficou arrependido e demonstrou que talvez fosse melhor ter ficado quieto.
Continuei a aula que, àquela altura dos acontecimentos, já estava animada. Os alunos prestaram atenção à exposição feita e terminamos a primeira “conversa” do semestre.
Na semana seguinte, antes que eu entrasse em sala de aula, meu interlocutor veio me procurar. Bateu nas minhas costas. Quando o encarei (o momento foi tenso, acreditem), ele me saiu com essa:
- Mestre, passei a semana inteira pedindo mentalmente desculpas a você.
Minha estreia docente seria assunto de várias conversas entre nós. Tempos depois, ainda a justificar a intempestiva interrupção, disse-me que foi seduzido pela maneira com a qual eu descrevia o assunto e que, envolvido pela narrativa, ele se “deixou levar” e resolveu “comprar a briga".
Aquele sujeito cinquentão, à época bastante obeso e bonachão, me ganhou. Tive vontade de dar um abraço nele. Mas não precisaria. Dali para frente nos tornamos amigos, embora hoje tenhamos pouco contato.
4 comentários:
Kkkkkk! Muito bom! Lembro-me como se fosse hoje! Gostei da lembrança!
Muito bom, adorei a narração. Parabén professor.
Adorei a narração, parabéns professor.
Muito bom, Roberto. Um pouco de calma ajuda muito nessa hora. Fosse outro, poderia ter acabado a carreira docente ali mesmo.
Um abraço!
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