Manezão - Roberto Barbato Jr
Com o passar do tempo, adquiriu uma habilidade sui generis: o controle, sempre em uma das mãos, ficava exatamente na posição necessária para mudar o canal da TV. Os dedos eram alocados nos botões que permitiam a passagem para o noticiário. Mesmo que estivesse em momento fundamental da trama, jamais sucumbiria: não poderia ser visto assistindo a novelas. Teria de obstar a vontade quase alucinada de saber o destino do personagem predileto. Quantas vezes estivera na iminência de ser flagrado, ali diante da TV, os olhos inertes, sem piscar.... Foram inúmeras, mas jamais deixou transparecer a afoiteza que o acometia.
Quando, por razões alheias à sua vontade, era impedido de assistir ao capítulo inteiro, prostrava-se na cama, louco a imaginar o que teria acontecido, se houvera ou não o beijo da mocinha, se o protagonista havia logrado algum sucesso em desmascarar o antagonista, aquele crápula que, agora, lhe fazia perder o sono. Ficava irritado, irascível. Contava os minutos faltantes para o raiar do dia. Então, uma longa batalha teria início.
Escondido, ligava furtivamente o computador, com respiração arfante. Isilda, a empregada, bem que o via navegando na internet, mas, analfabeta, não tinha acesso às informações consultadas. Não sabia o que o patrão lia. Ele devorava o resumo do capítulo do dia anterior, justamente aquele que não poderia ter perdido.... Depois, ainda insatisfeito, fecharia a porta do escritório a pretexto de avençar algum negócio importante pelo telefone. Digitaria ansioso o endereço do youtube para ver se o capítulo desejado já estava disponível.
Quando a tarefa não alcançava êxito, corria para o banca do Alemão. Ali, matronas desocupadas comentavam - quase debatiam! – o que teria se passado na novela no dia anterior. Ele manuseava um jornal qualquer, postava os olhos por cima da folha e buscava apreender o relato das senhoras.
Vieram as férias escolares. A mulher, professora, não saía mais de casa à noite. Com ele jantava, assistia ao jornal e o convidava para uma leitura. Não tinha escapatória: simulava devorar a revista semanal, o jornal da cidade ou mesmo algum livro que lhe teriam indicado. O pensamento estava, naturalmente, na novela. Disfarçava, ligava a TV a pretexto de procurar por um filme. Mudava de canal, parava rapidamente na novela para ter uma noção, ainda que exígua, do desenrolar da trama.
Não lhe passava pela cabeça admitir a adoração pelo folhetim televisivo. Sabia que lhe seria saudável. Não geraria ansiedade, não o deixaria sem dormir, não lhe impingiria a frustração de expectativas. Assistiria sem culpa, sem medo e sem sobressaltos a novela das seis, das sete e, principalmente, a das nove. Não, não admitiria. Ao contrário, se o assunto viesse à baila, vociferaria:
- Novela? Vocês assistem novela? Que coisa patética!
Incautos poderiam jurar, apostariam se fosse necessário, que ele jamais passara perto de alguma novela. Por certo, nem sequer sabia os horários de transmissão. Devia ser um homem afeto a leituras, interessado em filmes, músicas e notícias. Um intelectual, enfim. Não perderia seu tempo.
- Não assistir a novelas é questão de higiene mental – asseverava com altivez.
Um dia, aconteceu:
- Ahhhhhhhãããããã, hein!
Puta que o pariu! Me pegaram, pensou desesperado, já enrubescido. A casa caiu!
- Assistindo novela!
Filha da puta! Um descuido e me fodi!, penitenciou-se em pensamento.
- Justo você, hein, pai! Que vergonha....
Arriscou:
- Eu? Imagine.... Estava só trocando de canal e....
A filha gargalhava. Percebia o desconcerto do pai. Aproveitou para tirar onda.
- Imagine só se amanhã o prédio todo ficar sabendo! O Jorginho vai te tirar o pêlo.
O Jorginho, aquele asno, pensou. Tô fodido. Se o Jorginho souber, eu tô fodido. O Jorginho vai rir o ano inteiro. Ele e o condomínio. Até o porteiro vai cascar o bico.
- Mãe! Ô manhêêêê! Corre aqui, mãe!
- Que foi minha filha?
As duas juntas, não vou aguentar, se martirizava.
- O papai, vendo novela! Peguei ele no flagra!
A mãe olhou sem nenhuma cara de excepcionalidade. A filha não entendeu. Afinal, não teria descoberto algo precioso e inédito?
- Você não sabia? – perguntou a mãe. – Seu pai é um mané!
- Manezão! – gritou a filha, a voz com ar de refrega. – Manezão!
Pronto. Talvez agora pudesse ser feliz. Embora envergonhado, estava leve, tranquilo, liberto. O Jorginho que se lascasse! E o condomínio também....
3 comentários:
Muito engraçado, retrata bem o que acontece na realidade, ri muito!!!
Quantos homens não se identificaram!? Tem que se libertar agora!! rs
Putz! É antigo, mas só li hoje! E quer saber, quantos homens não se identificaram agora hein? rs
Postar um comentário