sábado, 24 de julho de 2010

Hotel Novo Mundo

LEITE, Ivana Arruda. Hotel Novo Mundo. São Paulo: Editora 34, 2009, 128p.

Logo que saiu Hotel Novo Mundo, de Ivana de Arruda Leite, resolvi não lê-lo. Como estava naquelas fases em que não se tem tempo para leitura tranquila, achei melhor saborear o texto em momento posterior. Fui adiando a leitura até que.... ganhei o livro de presente. Coloquei-o naquela fila de prioridades que nunca é cumprida, pois tendo, sempre, a subornar minhas vontades e a inverter a ordem estabelecida.

Também não quis ler nenhuma resenha, nenhuma crítica sobre a obra. É o que procuro fazer: não deixar me impregnar pelas impressões alheias, ainda que sejam confiáveis, antes de terminar a leitura de um livro qualquer. Assim, Hotel Novo Mundo permaneceu inédito até que comecei a lê-lo. Alameda Santos, segundo livro da autora, já veio a lume e ainda nem vi a cara dele....

É curioso experimentar a primeira aventura de um autor num determinado gênero quando já estamos acostumados com outra faceta de sua produção. Não é difícil imaginar um romance escrito por alguém especialista em contos. Todavia, pareceu-me bastante complicado pensar num romance escrito pela Ivana, pois seus contos, salvo melhor juízo, têm extensão reduzida. São contos curtos, enxutos e diretos. São capazes de mobilizar sentimentos e expressões densas em exígua narrativa.

O drama central de Hotel Novo Mundo, a contradição literária – se assim podemos chamá-la – está no conflito interno dos personagens, sobretudo da narradora-protagonista.

Renata é uma paulistana que, depois de longa experiência como prostituta, junta-se com o Dr. César, passando a residir com ele no Rio de Janeiro. Leva uma vida luxuosa, tranquila, com abonança material. Fútil, chega inclusive a cuidar dos filhos do parceiro. Mantém-se fiel a ele, embora seja constantemente cortejada por seus amigos. Num determinado dia, flagra-o na saída de um motel, com uma mulher. É esse o momento apto a determinar a trajetória de Renata ao longo do romance. É esse também o ponto de partida para a busca de algo que nem sequer se delineou. Num instante de raiva, Renata decide romper com a rotina que levava. Sem avisar o parceiro, sai do Rio de Janeiro, de sua casa, sem levar nada que possa garantir sua subsistência por longo tempo. Conta apenas com uma grana capaz de sustentá-la por curto período: exatamente uma semana. A estrutura do romance se circunscreve nesse prazo.

Rumo a São Paulo, no avião, conhece Divino. Como uma intrusa, Renata o acompanha rumo ao Hotel Novo Mundo, sem prever o quanto é conhecido por lá. Passa, então, a fazer parte – perdoem-me o pobre trocadilho - de um novo mundo. Tem início uma inédita socialização da personagem. Ali, na nova vida, Renata vai firmando convicção de que não voltará para o Rio, que não voltará para César, que está disposta romper de vez com a vida que vinha levando. A despeito disso, não sabe exatamente como resolver o impasse de recusar seu passado. Não toma providência alguma. É por isso que o leitor é acometido por um incômodo que persistirá até as páginas finais.

Numa consulta com Lauro - pai-de-santo residente no hotel – é aconselhada a conversar com César, explicitar o rompimento da relação que, para ela, é “cada vez mais quase definitivo”, mas que, para o leitor, ainda soa incógnito.

Essa conversa somente acontece em razão da iminência das privações materiais, ao final da semana, quando já estava envolvida com Divino (sentimentalmente, é claro) e com a maioria dos moradores do hotel. Como seu dinheiro está prestes a acabar, Renata reavalia sua postura e considera que deve ir ao Rio para manifestar sua vontade de separar-se e, contrariando intenção pretérita, amealhar o que os anos de convívio com César lhe facultou no campo dos "direitos". Sim, Renata volta para o Rio, pega jóias que lhe possibilitam comprar um carro e um apartamento (por aí imagina-se a disparidade existente entre a vida que levava e aquela que adotou na Paulicéia). De volta para o Novo Mundo, reencontra Divino, com quem, aliás, tudo leva a crer terá uma relação sem pretensões, destituída de compromisso, serena.

Expondo a narrativa nesses termos, poderia soar que a trama do livro é simples. É, contudo, a descrição do cotidiano que enreda os personagens do Hotel Novo Mundo que traduz a beleza da obra. Trata-se de um cotidiano recheado por histórias de vida muito peculiares: uma menina que carece de uma cirurgia cardíaca; a paixão insistente, quase eterna, de uma mulher por Divino; Zema, desenhista de vestidos de noivas soropositivo, namorado de Lauro, que foi expulso de casa justamente quando o pai descobriu sua homossexualidade; Leão, o pianista boêmio de uma casa de shows decadente, pai de uma médica também homossexual.

Ivana mescla a narrativa da trama com trechos que explicam as trajetórias de vida pessoais dos personagens. Intercala o desenvolvimento da história com entretrechos explicativos que, a rigor, estão descolados da própria trama. Não existissem, talvez não fizessem diferença para o contexto narrativo, mas sim para a densidade psicológica do romance. Um desses trechos é usado, inclusive, para resgatar a infância de Renata e revelar que a mãe - também prostituta - não hesitou em falar para a filha, em momento de adversidade, que, enquanto tivesse boceta, não passariam fome.

Seriam oportunos, aliás, alguns palpites sobre a ligação da trajetória da filha com o passado da mãe. No livro há elementos suficientes para arriscar esses palpites. Jamais arriscaria a fazê-lo, entretanto.

Por fim, vale uma última observação. Em vários momentos da obra, São Paulo é perfilado por seus pontos urbanos e pelas lembranças que Renata tem de sua juventude. No entanto, o retrato que se tem de São Paulo assume definição precisa quando a protagonista faz uma comparação fantástica entre a Paulicéia Desvairada e a Cidade Maravilhosa. No velho "embate" Rio X São Paulo, nunca vi contradições tão bem explicadas. Com as escusas de eventual exagero, acho que nunca alguém conseguiu expressar com tanta sensibilidade as idiossincrasias relativas às duas metrópoles. Veja-se:

"Andar no Rio de Janeiro pela manhã, com essa luz, com esse sol, vendo o mar e essa paisagem deslumbrante chega a me dar raiva. Esta cidade é uma aberração. Não há como fazer jus a este cenário. Ninguém aguenta a responsabilidade de viver num lugar tão lindo. Em São Paulo, você pode ser infeliz à vontade. A sua miséria se junta à miséria da cidade e vira tudo uma coisa só. Vive-se com mais naturalidade. São Paulo deixa você ser quem você é. O Rio é uma cidade para semideuses" (p. 108-109)

Fantástico!

Em tempo: Hotel Novo Mundo é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria novos autores. Não conheço os demais títulos, mas torço pela Ivana. No próximo dia 02 sairá o resultado.

Um comentário:

Ivana Arruda Leite disse...

Obrigada pela resenha e pela torcida. Um forte abraço.