segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Leite derramado

Depois que li Leite Derramado (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), quarto romance do Chico, senti-me tentado a escrever alguma coisa sobre ele aqui no blog. Furtei-me a realizar a tarefa porque tinha a convicção de que não conseguiria fazê-lo sem isenção. Além do mais, faltava tempo para refletir e produzir algo que fosse minimamente decente.

Agora, já no final do ano, quando muitos dos detalhes do livro se perderam na minha cabeça, apareceu o William Lial (vejam o blog dele aí do lado), para me fazer um convite: escrever sobre o melhor livro lido ao longo do ano para participar de uma "blogagem coletiva". Trata-se do "Meu melhor livro do ano".

Aceitar o convite, seria, necessariamente, o mesmo que ceder à antiga tentação de escrever sobre Leite Derramado. Depois de muito hesitar, resolvi não escrever nada. Mas, como isso soaria covarde, aceitei parcialmente o convite. Digo parcialmente porque o máximo que conseguirei fazer é amontoar alguns comentários sumários sobre um dos múltiplos aspectos do livro: a questão do preconceito racial.

Vamos lá. Meu tempo é curto!

A história do romance versa sobre o decadente aristocrata Eulálio Montenegro d’Assumpção, nascido em 16/06/1907. Eulálio passa seus últimos dias num leito hospitalar a recordar seu passado e mostrar a genealogia de sua família. Assume um tom nitidamente cômico, sem abrir mão de manifestar o aristocratismo que alimentou sua vida.

A estirpe de Assumpção lhe facultaria, ainda moço, subjugar sexualmente o escravo Balbino, residente em sua fazenda. Quando adolescente, Eulálio pôs na cabeça que deveria enrabar Balbino. Este, certamente, cederia às suas ordens, mas nem mesmo elas seriam necessárias. O trecho de Chico é lapidar:

"Durante um período, para você ter uma ideia, escasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. Então lhe pedia que fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela manga específica, lá no alto, que nem madura estava. Balbino pronto me obedecia, e suas passadas largas de galho em galho começaram de fato a me atiçar. Acontecia de ele alcançar a tal manga e eu lhe gritar uma contra-ordem, não é essa, é aquela mais na ponta. Fui tomando gosto por aquilo, não havia dia em que não mandava o Balbino trepar nas mangueiras uma porção de vezes. E eu já desconfiava que ele se movia ali no alto com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos para recolher as mangas que eu largava no chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda. Só me faltava ousadia para a abordagem decisiva, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias , ponderações tão acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas" (p. 19-20)

Eulálio só desistira de seu intento porque conheceu aquela que seria sua companheira misteriosa, Matilde. A convivência com o escravo Balbino lhe forneceria um traço de personalidade diferente de seus ancestrais. Diz o narrador: "garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor" (p. 20).

Era justamente aí que Assumpção se diferenciava de seus ancestrais: o pai "que só apreciava as loiras e as ruivas" e a mãe que chegara a perguntar se Matilde, "de pele quase castanha", "não tinha cheiro de corpo". Diferentemente do perfil desenhado pelo pensamento social nacional, Eulálio não seria o herdeiro de uma das piores mazelas brasileiras: o preconceito racial. Seu avô também comportava-se de maneira semelhante. Era, conforme o narrador, um "bem feitor da raça negra". Veja-se:

“Do meu último passeio, só me lembro por causa de uma desavença com um chofer de praça. Ele não queria me esperar meia horinha em frente ao Cemitério São João Batista, e como se dirigisse a mim de forma rude, perdi a cabeça e alcei a voz, escute aqui, senhor, eu sou bisneto do barão dos Arcos. Aí ele me mandou tomar no cu mais o barão, desaforo que nem lhe posso censurar. Fazia muito calor no carro, ele era um mulato suarento, e eu a dar ares de fidalgo. Agi como um esnobe, que como vocês devem saber significa indivíduo sem nobreza. Muitos de vocês, se não todos aqui, têm ascendentes escravos, por isso afirmo com orguho que meu avô foi um grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês” (p. 50-51).

A temática racial perpassa todo o romance, mas tem seu cume, segundo entendo, na exposição do seguinte trecho:

“O Balbino nem era mais escravo, mas dizem que todo dia tirava a roupa e se abraçava num tronco de figueira, por necessidade de apanhar no lombo. E vovô batia de chapa, sem malícia na mão, batia mais pelo estalo que pelo suplício” (p. 102)

Com exímia destreza, Chico evidencia que, embora já terminado o estatuto legal da escravidão, a herança escravocrata haveria de perdurar na raça negra mesmo depois de conquistada a liberdade almejada. A necessidade de se abraçar ao tronco de figueira não seria, naturalmente, nenhum sadismo, mas apenas o termômetro da extensão da escravidão na alma negra.

Além do preconceito racial, o patrimonialismo – tema tão caro à obra do pai de Chico – também é exposto com o brilhantismo de quem conhece os meandros da história brasileira e bem sabe – para dialogar novamente com Sérgio Buarque – quais são as "raízes" do Brasil.

É claro que para além das temáticas políticas (dirigidas, a bem dizer), o livro é recheado de trechos cômicos, sempre evocativo de alguma figura familiar de Eulálio. Seu tataraneto, por exemplo, é um garotão que paga suas despesas hospitalares e cujos rendimentos não tem a menor idéia de onde provêm. Diz o narrador: “Sou muito grato ao garotão, mas para ganhar milhões sem instrução alguma, deve ser artista de cinema ou coisa pior” (p. 78). E a origem espúria de seus proventos é sugerida quando Kim, sua namorada que vive com um "brinco no umbigo", oferece a Eulálio cocaína de rara qualidade. Não é aquele “pó de gesso” que otário cheira por aí” (p. 173).

Enfim, a exemplo dos demais livros do Chico, Leite derramado contém sugestões sutis de talhe político e ideológico. É uma obra-prima que revisita o passado brasileiro tal como fizeram os autores da década de 1930. A despeito de toda sua pujança, suscitou um sem-número de comentários descabidos dos críticos de plantão que jamais tiveram a sensibilidade necessária para entendê-lo.

Ainda bem que Chico sabe que não temos boa crítica. Ainda bem que existe Roberto Schwarz para colocar os pontos nos is e mostrar a fecundidade de Leite Derramado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado por participar da blogagem. Seu texto ficou ótimo. Você conseguiu dar um grande panorama do que é o livro, além de instigar o leitor a conhecer o texto do Chico.

Um grande abraço!

William