sábado, 25 de agosto de 2007

Glauber Rocha e Mário de Andrade: a (in)existência da arte brasileira


Conforme disse no post anterior, já estava preparando algo sobre Nelson Rodrigues quando caiu em minhas mãos uma belíssima entrevista de Glaubler Rocha concedida a Antônio Torres em 1964, em São Paulo. Ela agora veio a lume na edição de Agosto da Revista Entrelivros (www.revistaentrelivros.com.br).

Em um dos trechos do depoimento, Glauber fala sobre a arte brasileira asseverando que, naquele período, ela ainda não existia. A citação é um pouco extensa, mas vale a pena conferir. Vejamos:

"Não existe ainda a verdade arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na música, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolfo) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros – todo mundo procurando, cavando a terra e a angústia, cavando a alma e o sistema social, cavando a estética e a linguagem. Todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas – como no sertão. Acho que a arte brasileira está nascendo desde o teatro de Anchieta – é um processo que vai levar mais de 600 anos. A raça, a terra, a natureza – o nacionalismo vem desde aquele horroroso Basílio da Gama. José de Alencar, Lima Barreto, os poetas românticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompéia, Nepomuceno, Mário de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicius, Nelson Pereira dos Santos e Zé Keti – estão todos na jogada. É preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista é um revolucionário. Arte e liberdade é um corpo só, cangaceiro de duas cabeças, como dizia o capitão Cristino, vulgo Corisco". (Entrelivros, Agosto/2007, p. 62-63).

Quem se arriscaria a tecer comentários sobre cada ponto observado pelo Glauber? São muitos os dilemas ali colocados. Salvo equívoco, vão desde a inexistência da arte brasileira até a dicotomia arte-liberdade, passando, necessariamente, pela noção de nacionalismo.

Pois é... depois de ler a entrevista, lembrei-me das fantásticas ponderações de Mário de Andrade (que também "está na jogada", conforme diz o próprio Glauber) sobre arte e cultura brasileiras. Quase fui tragado pela idéia de tentar produzir algum artigo que pudesse estabelecer a relação dos diagnósticos marioandradinos e a avaliação glauberiana.

Dei-me conta, então, que escrevo num blog e que não caberiam estudos e ensaios... Além disso, lembrei que a razão desse blog é escrever sem compromisso. Então, vamos lá...

Mesmo desprezando o rigor acadêmico, não posso me furtar a colocar para o eventual leitor um trecho de autoria do Mário de Andrade, datado de 1928 e publicado em sua preciosa Ensaio sobre a música brasileira. Observe-se, desde já, que Macunaíma foi também publicado nesse ano. Trata-se, portanto, de um período de intensa atividade intelectual do líder do Modernismo brasileiro. Eis o trecho:

"Uma arte nacional não se faz com êscolha discricionaria e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artista só tem que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada". (ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: I.N.L., 1972, p. 15-16 – Grafia mantida no original)

Curioso notar que, ao contrário de Glauber, Mário admite a existência da arte nacional. Entretanto, tal existência está circunscrita à insconsciência do povo. Parece haver aqui uma contradição entre o pensamento dos dois? Não creio!

Quando Glauber afirma que "Estamos procurando" ou "todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas" ou, ainda, "todo mundo cavando", nada mais faz do que corroborar a idéia de Mário. Ora, embora pareça estranho, não há aí contradição nenhuma. A idéia é simples: a arte brasileira (verdadeira ou não!) existe. Precisa, contudo, tornar-se consciente, visível, palpável. Daí a idéia de que "Estamos procurando"... A noção de que há algo a ser descoberto ou formulado é forte na obra marioandradina, aliás. Suas percucientes ponderações sobre o nacionalismo estético bem o afirmam (mas isso é, talvez, assunto para outro post).

Quase quatro décadas separam as afirmações de Mário das de Glauber. Isso talvez não dissesse muito não fosse a semelhança de diagnósticos que ambos traçaram sobre os mesmos problemas.

Acho que já escrevi demais, embora o assunto reclame mais linhas...

É só... Por ora é só...



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