Tribunais do crime e o Estado - Roberto Barbato Jr
Artigo originalmente publicado no Correio Popular (20/01/2017) - Campinas (SP)
Em meio às
notícias dos massacres de Manaus e Roraima, o Correio Popular divulgou a ação do 1º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP)
que teria descoberto, em Campinas, a existência de um "Tribunal do Crime".
Na tarde daquela data, o BAEP flagrou o julgamento de um homem suspeito de estuprar
o próprio filho. O "colegiado", composto por nove indivíduos filiados
ao Primeiro Comando da Capital (PCC), já havia impingido ao "acusado"
algumas sevícias e, ao que tudo indica, prolatado sua sentença condenatória.
Embora
a muitos a notícia possa ser revestida de algum ineditismo, ela versa sobre instâncias
julgadoras que já se encontram no bojo da sociedade brasileira há décadas. Nos
anos 1980, a polícia do Rio de Janeiro foi capaz de verificar a existência dos
tribunais do Comando Vermelho, facção carioca que, em pouco tempo, ganharia
dimensões nacionais e arrostaria o poder do Estado. Tais tribunais eram compostos
por integrantes da facção carioca que julgavam moradores de comunidades
fluminenses sob seu comando. A exemplo do Estado, a organização carioca exercia
seu poder em território delimitado, determinando normas a partir das quais
todos deveriam se portar. Com esse procedimento, logrou ganhar, cada vez mais, oportunidades
e espaços que deveriam ser ocupados pelo próprio Estado. Com arrimo nessa
lógica de preenchimento de lacunas deixadas pelo poder oficial, outras facções
criminosas, tributárias do Comando Vermelho, puderam estabelecer, nas décadas
subsequentes, um amplo escopo de atuação em vários Estados da federação.
Com o
surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo, a sistemática
acima descrita seria imposta ao mundo carcerário. Julgamentos informais seriam
realizados em vários presídios paulistas, demonstrando que as normas de
convívio entre apenados eram aplicadas em detrimento das leis que regem a
execução penal. Dentro de cada unidade prisional paulista, havia, portanto,
tribunais autônomos, alheios ao Estado.
Pouco tempo se
passou para que a atuação do PCC transcendesse o mundo das grades. Indivíduos eram
cooptados fora do sistema prisional para fazer imperar, também no mundo livre,
a atuação da associação criminosa. Assim, a perspectiva antes restrita ao
cárcere foi ganhando espaços e afrontando a esfera estatal. O cume dessa tensão
entre a facção paulista e o Estado se deu, como todos sabem, em maio de 2006,
com os ataques a postos da Polícia Militar e Civil em várias cidades do Estado
de São Paulo. As imagens daquele cenário remanescem na memória bandeirante e não
raro são evocadas para relembrar o poderio do chamado "Partido".
Em 2008, a
imprensa nacional divulgou que o PCC havia criado seus tribunais. Neles
julgavam-se tanto condutas gravíssimas como aquelas de pouca lesividade social
ou apenas restritas ao âmbito familiar. Além de apreciar casos como os de homicídio
e estupro, a facção paulista criou os "tribunais de pequenas causas",
análogos ao Juizado Especial Criminal (JECRIM) cuja competência é o julgamento
de crimes de menor potencial ofensivo. Dívidas de pequena monta, relações
extraconjugais e brigas entre vizinhos permeavam as sessões deliberativas dos
tribunais do Primeiro Comando.
De lá para cá,
é provável que esses tribunais não se tenham alterado significativamente.
Embora seja razoável supor que uma ou outra conduta possa merecer tratamento
diverso na arena da organização criminosa, o substrato de seus julgamentos
permanece o mesmo. Ao seu arbítrio, impõe-se penas supostamente eficazes para –
pasme-se! – reprimir o crime.
A constatação
de que tais instâncias julgadoras permanecem exercendo suas atividades na
atualidade traduz a sensação de que ao menos uma parcela da população
brasileira concorda com sua forma de atuação e subtrai do Estado a legitimidade
conquistada por meio do famígero pacto social delineado pela teoria hobbesiana.
Cria-se um tecido social no qual elementos da esfera estatal são paulatinamente
substituídos: em vez do Estado, a informalidade; em vez da legalidade, a arbitrariedade;
em vez da racionalidade, a boçalidade e a beligerância. No mesmo passo em que
desdenha das estruturas judiciais do Estado, a criminalidade avança e impõe à
sociedade seu modus operandi. A
tensão é realmente grande e não parece encontrar solução em fórmulas compradas
a preços módicos, seja pela população, seja pelos nossos governantes.
Essa história,
que atravessou décadas, não pode ser preterida no momento em que se discute a
criação de um plano de segurança nacional e se delimita a atuação do Estado no
combate às facções criminosas.
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