Naqueles
tempos: a liberdade e o filme de Godard
- Je, o quê?
- Vous salue Marie!
- Vu salí? Marrí?
Je vous salue,
Marie era dificílimo de pronunciar, sobretudo para quem não tinha noção
mínima do francês. E o diretor? Godard também era esquisito, não se sabia nem
como grafá-lo...
Após acompanhar a votação do Colégio Eleitoral e a
morte de Tancredo, o menino ficou curioso para saber o que aconteceria. Com a
assunção de Sarney, ouviu pelos quatro cantos que todos os cidadãos que
acreditavam no Brasil deveriam se transformar em fiscais. O congelamento de
preços havia sido anunciado e, para garanti-lo, a coletividade precisava
mostrar seu empenho. “Tudo pelo social” virou um tema nacional e, também, uma
grande chacota.
A inflação vivia época áurea e até mesmo a meninada
despolitizada sabia o que era o overnight.
Uma incógnita pairava sobre a cabeça de todos. Seu nome era futuro.
Mais que curioso, o menino ficou confuso.
Disseram-lhe que o período de exceção havia, ao menos formalmente, chegado ao
final. A professora lhe garantiu que a historiografia estabeleceria um novo
marco. De 1985 para frente, o Brasil estaria na fase da Nova República. Era a
liberdade.
E eis que ouviu no banco do ônibus uma infeliz senhora
bradar que deveriam ficar todos presos. Divulgar aquela blasfêmia devia ser
pecado. Se a censura era demais, imagine saber que a polícia havia interceptado
uma sessão clandestina do filme? A curiosidade do menino aumentou. Para
assistir ao longa, teria de esperar mais algum tempo.
Em junho daquele ano, ouviu a voz de Herbert Vianna
cantar Selvagem, faixa título do LP recém-lançado.
A música trazia uma breve descrição da ordem social brasileira. Tocado a um som
reiterado, o riff da guitarra dava a
impressão de insistência. Da repetição se criava um ciclo inesgotável formado
pela polícia, pelo governo, pela cidade e pelos negros. Cada qual com sua
incumbência, apresentava um cenário de horror e imposições.
A história era tão dissimulada quanto seria a Nova
República nos anos seguintes. De liberdade, ali não havia nada. Por isso,
Herbert entoava: “a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard”.
Anos depois, diante do filme em VHS, o menino
compreendeu o comentário da infeliz senhora do ônibus a música do Herbert. O
menino era eu, é claro.