sábado, 28 de setembro de 2013

O Direito Penal em Amor à Vida

O Direito Penal em Amor à Vida

Em algum momento da nossa história, os autores da teledramaturgia devem ter feito um pacto: mostrar, em suas tramas, situações jurídicas que nenhuma relação têm com a realidade. Em suas novelas colocariam determinadas cenas incompatíveis com o mundo empírico. Quem assistisse às suas narrativas, ficaria com uma visão distorcida do direito brasileiro. Sem correr o risco do exagero, seria uma espécie de desserviço ofertado aos telespectadores. Tudo isso teria sido confabulado em uma furtiva reunião da qual participariam os mais famosos escritores globais.

Naturalmente, a cena acima descrita é fictícia. Por certo, nenhum autor faria, conscientemente, das relações jurídicas e processuais um palco de escárnio ou de outra forma de entretenimento. Se as situações da trama televisiva não são compatíveis com a realidade do direito pátrio, isso em nada desmerece o produto novelesco. Até onde se saiba, não há, por parte de seus autores, nenhuma obrigação de expor institutos jurídicos num veículo tão prosaico de diversão. Não seria razoável deles exigir algum tipo de pedagogia ou didatismo jurídico. Novela, afinal, não se presta a isso. 

Abusar da criatividade e desdenhar da realidade jurídica para escrever capítulos que vão ao ar diariamente tem sido uma rotina dos autores globais. Salvo equívoco, poucos deles, em raríssimas novelas, preocuparam-se em afiná-las com as regras do ordenamento jurídico brasileiro. O que se vê, à saciedade, é justamente o contrário.

Para que não se alongue excessivamente sobre o assunto – material não faltaria para ilustrar o que se alega –, siga-se com apenas um exemplo.

“Amor à vida”, novela das nove atualmente no ar, tem trazido a lume, ao menos na seara penal, uma grande “inventividade”. Quando verificou que Atílio (Luis Melo), já casado com Vega, havia assinado um acordo de união estável com Márcia (Elizabeth Savalla), a advogada de sua esposa, Sílvia (Carol Castro), disse que iria “entrar com uma denúncia pelo crime de bigamia”. Contudo, a titularidade da ação penal do crime de bigamia é do Ministério Público, pois se trata de ação penal pública incondicionada. Com efeito, a nobre advogada não poderia, jamais, “entrar com uma denúncia pelo crime de bigamia”.

Depois de alguns capítulos, a situação mudou. Se, até então, a ilustre causídica pensava em denúncia, com o tempo passou a cogitar da possibilidade de ajuizar uma Queixa-Crime. Isso mesmo! Antes a nobre advogada entendia que poderia cumprir o papel do Ministério Público ao ofertar denúncia; posteriormente, ela mesma poderia ajuizar uma ação penal privada por um crime que é de ação penal pública incondicionada.

Tem mais. Márcia também se interessou por ver Atílio processado. Contratou um advogado – à época recentemente aprovado no exame da OAB – para representá-la. Ele, tal como sua colega, não hesitou em tomar uma providência: “entrar com uma Queixa-Crime”. Ao se consultar com seu patrono, Márcia decidiu: “Entra, meu filho, entra com o que você quiser”.

Não sei como (realmente não me lembro dos meandros dos capítulos), sobreveio a acusação pelo crime de falsidade ideológica. Atílio deveria responder criminalmente por ter falsificado os documentos que lhe permitiram casar-se com Márcia, utilizando o nome de Alfredo Gentil.

O processo culminou numa pândega audiência na qual compareceram diante da Juíza as duas “vítimas” (mulheres de Atílio) e seus advogados, o suposto criminoso (Atílio, é claro) e o representante do Ministério Público. Ao término da inverossímil instrução criminal, o réu foi condenado – pasmem! – a 5 anos de reclusão, a serem cumpridos em regime fechado. Criminalistas e juristas de todo o país devem ter se divertido à exaustão (ou se revoltado): nunca viram pena e regime tão pesados por dois crimes pouco gravosos: bigamia e falsidade ideológica.

A trama avançou no tempo, bebês nasceram, a rotina dos personagens se alterou, casamentos se desfizeram... Onde estava Atílio? Permaneceu segregado, preso como um criminoso de alta periculosidade. 

Enfim, na divertida novela de Carrasco, o Direito Penal brasileiro é revirado. A ele se somam tantas outras discussões que permeiam o Direito de Família, Direito das Sucessões... A ficção se constrói sem nenhum arrimo legal, sem nenhum preceito constitutivo do repertório jurídico.

Diante disso, caberia a indagação: as novelas devem socorrer-se da realidade para tornar-se críveis, passíveis de alguma plausibilidade no contexto da narrativa? Adotar um ponto de vista positivo a esse respeito certamente significaria despir o folhetim televisivo de sua essência ficcional. Novela é entretenimento. Diverte-se quem quer.


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