sábado, 24 de agosto de 2013

Referências, homenagens e plágios

Referências, homenagens e plágios - Roberto Barbato Jr

É de se lamentar os inúmeros mal-entendidos a que estão sujeitos os artistas que ousam lograr alguma homenagem àqueles que os inspiraram. Muitas vezes são acusados de se apropriar da obra alheia, como se fossem larápios. É raro que alguma criação seja integralmente inédita, iniciada a partir do nada. Nem mesmo os gênios seriam capazes disso. Há, sempre, um ponto de partida, uma referência. Um viés distorcido, contudo, poderá conceber a homenagem como plágio ou a referência como cópia.

Tom Jobim foi amiúde acusado de plágio. Sua biografia, escrita pela irmã Helena, relata circunstâncias específicas sob esse aspecto. Tom sempre fez homenagens sui generis aos seus mestres. Várias frases musicais de Villa-Lobos foram incluídas em suas composições. “Prelúdio 5” (em Ré Maior), por exemplo, está em “Gabriela”  (“chega mais perto, moço bonito”). Não é, também, à toa que ao final de “Imagina”, composição em parceira com Chico Buarque, tenha colocado um enfático piano de Ravel. Sobre essas questões, Chico revelou como o parceiro encarava o problema: “Só se rouba a quem se ama”. Com essa justificativa sarcástica e bem humorada, o maestro demonstrava a “apropriação” de certas melodias e ideias como simples homenagem.

Em entrevista concedida após o lançamento de Carioca (disponível no site da Biscoito Fino), Chico enfrenta o assunto das referências e plágios com sua habitual serenidade: “Não há citação da melodia, nem plágio, nem cópia, que eu acho que pode até acontecer inconscientemente”.  E, a seguir, cita as referências que constituem seu recente trabalho à época.

A belíssima “Porque era ela, porque era eu” nasceu da obra de Montaigne cujo verso inspirador, “qualquer estudante de Liceu na França conhece”. Aqui, Montaigne é lido, quando muito, em cursos de filosofia na graduação ou, eventualmente, por algum leitor diletante.

Em “Dura na queda”, o verso de “a flor também é ferida aberta” refere-se a Francis Ponge. Chico fala textualmente “isso é roubado do Ponge”. Depois, a demonstrar a total falta de dolo na “apropriação”, explica que ninguém faria a associação entre seu verso e o autor francês. Por isso, se quisesse, poderia silenciar, não revelando a fonte. Mas, o poeta é generoso e não carece surrupiar ninguém. “Eu dou o crédito”, assevera.

Outras referências são encontradas em “Ode aos Ratos”, num “quase Baudelaire” (“ó, meu semelhante, filho de Deus, meu irmão”). O velho Gershiwn também merece homenagem nos arranjos de “Dura na queda” e “As atrizes”.

Se na música o tema rende, nas telas televisivas não é diferente. Quantas foram as novelas em que seus autores utilizaram de referências da sétima arte para enriquecer sua obra?

Já falei aqui (vide link abaixo) que em “Celebridade”, novela de 2003, Gilberto Braga reproduziu a clássica situação de “A montanha dos sete abutres”. Remeteu o telespectador a uma obra prima da lavra do gênio Billy Wilder. Na novela, Zeca, filho de Cristiano (Alexandre Borges), fica preso em um buraco, uma espécie de poço urbano. Tomando ciência do ocorrido, Renato Mendes (Fábio Assunção) manifesta sua vontade de tirar proveito da desgraça alheia. Menciona como irá produzir o artigo que descreverá o trágico acidente com o menino. O foco, naturalmente, está na potencial vendagem da edição da revista da qual é editor. Fábio Assunção desempenharia o monstruoso papel de Kirk Douglas na trama original.

Silvio de Abreu é também cinéfilo e costuma abusar de homenagens. Em “A Rainha da Sucata”, por exemplo, escreveu parte da trama apoiando-se em “À meia luz”, filme que talvez mais tenha explorado a beleza noir de Ingrid Bergman. Nele, a protagonista é levada a crer, por meio de ações sub-reptícias de seu marido, que está com a memória desorientada, cometendo, por isso, equívocos de toda grandeza. Transplantada para a narrativa global, é esta a estratégia utilizada por Renato Maia (Daniel Filho) com sua esposa Mariana (Renata Sorrah). No caso de Sílvio de Abreu, o estratagema de Renato Maia consiste em se apropriar de nada menos do que 300 milhões de dólares.

Recentemente, em “Amor à vida”, de Walcyr Carrasco, o diretor Mauro Mendonça Filho criou, já no primeiro capítulo, uma cópia fidedigna de “O expresso da meia-noite”, obra magistral de Alan Parker. O personagem de Juliano Cazarré (Ninho) é preso num aeroporto por tráfico de drogas. A cena é primorosa e mantém a sequência do filme com riqueza de detalhes. A maioria dos telespectadores, contudo, não deve ter assistido ao clássico cinematográfico para saber da referência ou homenagem feita por Mendonça Filho. Todavia, já no dia seguinte à estreia da novela, os comentários pululavam na rede e o diretor teve de se pronunciar sobre o assunto.

Na literatura, há um caso que muito me interessa. Numa de suas belas crônicas publicada na Folha de S. Paulo, talvez nos anos noventa, Cony afirma que chegara a ficar corado quando percebeu a semelhança do final de um de seus romances com A idade da razão, de Sartre. Se alguém souber qual é o nome da obra em apreço, por favor, mande notícias.

Enfim, quando realmente desprovidas de intenção espúria, homenagens como as aqui citadas deveriam ser saudadas. Enriquecem nossas referências e nossa cultura.  



Um comentário:

Antonio Ozaí da Silva disse...

Parabéns!
Ótimo texto, reflexão pertinente e instigante!

Muito obrigado.
Abraços e tudo de bom