sábado, 21 de janeiro de 2012

Entre a rotina e o ócio

A editora Cosac & Naify lançou recentemente, em edição primorosa, uma obra de prosa do poeta Drummond: Passeios na ilha. Nela, há uma interessantíssima crônica sobre o ofício de escrever ou, melhor ainda, sobre o vício de escrever. Em “A rotina e a quimera”, o poeta nos fala da compulsão dos escritores que não deixam de criar nem mesmo enquanto estão em plena atividade profissional. Ele se refere aos funcionários públicos ou burocratas que, diante de suas incontáveis atribuições, não se furtam a escrever, nem que seja apenas em pensamento. O trecho é belíssimo e vale citá-lo, ainda que seja com base na edição velha, velhíssima (1952). Vejamos:

"Sempre se falou mal de funcionários públicos, inclusive dos que passam a hora do expediente escrevinhando literatura. Não se esse tipo de burocrata-escritor existe ainda. A racionalização do serviço público, ou o esforço por essa reacionalização trouxe modificações sensíveis ao ambiente de nossas repartições, e é de crer que as vocações literárias manifestadas à sombra de processos se hajam ressentido desses novos métodos de trabalho. Sem embargo, não se terão estiolado de todo, tão forte é, no escritor a necessidade de exprimir-se dentro ou fora da rotina que lhe é imposta. Se não escrever no espaço de tempo destinado à produção de ofícios, escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel – no interior do próprio cérebro, como os poetas prisioneiros da última guerra, que voltaram ao soneto como a uma forma que por si mesma se grava na memória.

E por que se maldizia tanto o literato-funcionário? Porque desperdiçava os minutos do seu dia, reservado aos interesses da nação, no trato de quimeras pessoais. A nação pagava-lhe para estudar papéis obscuros e emaranhados, ordenar casos difíceis, promover medidas úteis, ouvir com benignidade ‘as partes’. Em vez disso, nosso poeta afinava a lira, nosso romancista convocava suas personagens, e toca a povoar o papel da repartição com palavras, figuras e abstrações que em nada adiantavam à sorte do público. (....)

Retire-se tal rotina ao temperamento literário a que me reporto, e cessará sua veia criadora. Instalado confortavelmente num escritório de capitão de indústria, já não se produzirá essa inconformidade entre o real e o individual, que tantas vezes gera a obra de arte.

(....)

Observe-se que quase toda literatura brasileira, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários públicos” (Conferir ANDRADE, Carlos Drummond de. “A rotina e a quimera”. In: Passeios na ilha: divagações sobre a vida literária e outras matérias. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1952, p. 111-113)

As reflexões de Drummond são extremamente profícuas para lidar com a relação entre os intelectuais e o projeto de construção nacional tão em voga no início do século XX e, de forma ainda mais ampla, para criar liames entre a literatura e a política.

Para além dessas reflexões, é interessante notar que o poeta aponta para o imperativo de existir uma “rotina” para produzir literatura. Ideia curiosa. Afinal, não sonham os escritores com o ócio para poderem produzir sua literatura de maneira remansosa? Não é a tranquilidade que tanto almejam para os esforços literários? Não é óbvia a tensão constante entre o fardo do trabalho e o prazer da escrita? Sabe-se que muitos escritores – homens de letras, de maneira geral – se ressentem da necessidade de prover sua subsistência material muitas vezes em detrimento de sua produção individual.

Se Drummond reputava essencial a existência da rotina para se manter a “veia criadora”, Mário de Andrade partia de premissa diametralmente oposta. Para ele, as possibilidades de criação artística estavam associadas ao “ócio criativo” (vejam bem: estou falando de Mário de Andrade e não de Domenico de Masi).

Em um artigo de 1918, intitulado “A divina preguiça” Mário teria dito que “a arte nasceu porventura dum bocejo sublime, assim como o sentimento do belo deve ter surgido duma contemplação da natureza”. Ou seja, a rotina das instituições públicas (que Mário conheceu tão bem quanto Drummond) não lhe seria combustível para criação alguma.... A esse respeito, aliás, é sabido que, durante o tempo em que estivera à frente da Diretoria do Departamento de Cultura de São Paulo (1935-1938), Mário se queixava frequentemente da burocracia e a responsabilizava pela quase impossibilidade de criação literária e pelo abandono de seus projetos pessoais.

Ao final das contas, não sei o que pensar das posições dos dois Andrades. Quais seriam as condições ideais de criação: a rotina ou o ócio? Seja como for, tenho a convicção de que escrever sempre é prazeiroso, mesmo em se tratando de trabalho. Quando a escrita é descompromissada e atrevida, tal como faço aqui, é melhor ainda. Um verdadeiro gozo.

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