Existem certas interpretações musicais que realmente não deram certo. Vamos a algumas delas.
Emílio Santiago. Não há uma música específica. Tudo – ou quase tudo – o que ele interpreta tem arranjo de baile de clube de interior. É algo cafona, com arranjos intragáveis. Exceção deve ser feita à "Teresa da Praia" que ele gravou junto com Luiz Melodia. Todavia, se, num domingo à noite, você estiver ouvindo FM no carro e tocar “Saigon”, é melhor se matar. Sua atitude será plenamente justificável.
Leila Pinheiro interpretando Renato Russo. Só ouvi uma música e, por mais imbecil que isso possa ser, não estou disposto a conferir o resto. Leila Pinheiro poderia dar um presente aos seus fãs: cantar apenas Bossa Nova. Ela nasceu para isso.
Ella Fitzgerald. É dificílimo falar d'Ella. Minha deusa musical não deu certo com “Love for Sale”, de Cole Porter. Não sei por que, mas não soou legal. Diga-se o mesmo de “Dream a Little Dream of Me”, cuja interpretação já comentei aqui no blog.
Caetano Veloso cantando “Igreja”, composição dos Titãs. A interpretação, aliás, foi feita juntamente com os Titãs, no final da década de 1980. Caetano, de jaqueta de couro, tencionava dar um ar rebelde que em nada combinava com sua legítima baianice genial.
Gal Costa cantando “Begin the Beguine”. Ninguém duvida da potência dos agudos da Gal. Que quisesse interpretar uma das mais belas músicas de Cole Porter é perfeitamente compreensível. Não precisava, contudo, terminar a interpretação tentando fazer o impossível: alcançar Ella. A música certamente foi para prensa sem que ela ouvisse como ficou a gravação. Do contrário, não teria deixado passar. Até hoje quando a ouve, se penitencia por tê-la gravado.
Bete Carvalho cantando “As rosas não falam”. Nada contra Bete Carvalho. Ela tem o grande mérito de ser mangueirense e ter descoberto o Zeca Pagodinho. Além disso, com todo o respeito, poderia se limitar a cantar os sambas-enredos da Estação Primeira. A obra-prima do Cartola, definitivamente, não lhe cai bem. Se alguém tiver interesse em ouvir um bela interpretação, a dica é Paulinho da Viola. Ele levou anos para conseguir coragem e gravar a música. E só o fez em 1999, quando do lançamento de “Bebadosamba”. Ficou belíssima.
Alguém conhece mais alguma furada? Aguardo respostas!
"Modelando o artista ao seu feitio/ O tempo, com seu lápis impreciso/ Põe-lhe rugas ao redor da boca/ Como contrapesos de um sorriso. "Tempo e artista" - Chico Buarque/1993
sábado, 29 de janeiro de 2011
sábado, 22 de janeiro de 2011
Tio Harlan
Tio Harlan - Roberto Barbato Jr
Não. Não acredito nessa história de loteria e mega sena. É tudo uma grande sacanagem. Coisa de picareta, como o tio Harlan, que todos dizem ter tino comercial apenas porque deixou de ser empregado e hoje tem uma empresa. O tio Harlan recende a picaretagem. Só virou empresário porque ganhou na loteria. Um dia quis me convencer que há homens eleitos pelo dinheiro. Eu perguntei um “como assim” meio envorgonhado e ele me garantiu que existiam os predestinados. Tio Harlan, seu filho da puta!
Não adianta. Você não vai encontrar uma fonte de renda remansosa. Esqueça o que te disserem. O negócio é o trabalho. Viver de renda, de aluguel, ser cafetão, agiota, onzenário, tudo isso é fria. Só o trabalho constrói. Somente o esforço agrega. Ou, então, você tem pai rico. Rico e comedido. Do contrário, as pompas ficarão nas memórias. Um pai rico perdulário é um castigo. Você fica aí pensando que o sujeito vai te deixar de boa, na sombra e na água fresca. Quando sai o inventário, você percebe que, quando muito, te restou uma aplicação de alto risco que, se não for resgatada logo, adeus. Se você tiver irmãos, fodeu. O adeus é de rigor.
Por entender que a vida é só trabalho, resolvi meter as caras. Como as teses do tio Harlan nunca me serviram de nada, achei melhor encarar o trabalho. Saí à cata de uma ocupação. Nem era emprego, era ocupação mesmo. Faria qualquer coisa. “Então tá bom”, disse o dono do hotel. “Você carrega mala de terça a domingo. Pode folgar na segunda-feira de manhã e pode usufruir da piscina, já que nunca tem ninguém nesse horário. Salário? Bom, isso a gente vê depois”. Foi o que ele me falou.
Vestido de um uniforme pesado, carreguei mala (com ou sem rodinha, pequena, grande e também nécessaire). Carregava, inclusive, hóspede bêbado. Levei cantada de madame, de camareira e de veado velho. Tinha certeza que não podia comer ninguém, o que poderia comprometer meu novo ofício.
Tinha de tudo no hotel: milionário de verdade, falso rico, alpinista social, puta de luxo e até michê disfarçado de garçom. As finanças começaram a andar mal. Quando suspeitei que iria pro olho da rua, me cocei. Primeiro, só de birra, entrava na piscina pra mijar. O esquema tinha um preparo interessante. Ficava quatro horas sem comer, tomava muita água, deixava a bexiga ficar bem cheia e ia nadar. Mijava o tempo inteiro, uma mijada em cada canto da piscina. Como a bomba estava quebrada, não havia reciclagem de água alguma. Em duas semanas aquilo ficaria fétido, cheio de bactérias. Alguém se estreparia por ali. Depois, pra dar um jeito momentâneo na vida, meti a mão na gaveta do seu João. Ele era o gerente do estacionamento e guardava a gorjeta da semana numa gaveta sem chave. Era uma paca. O dinheiro daria para um mês, sem muito luxo, é claro.
Acabou a grana. Encontrei um velho amigo da escola e ele perguntou se eu queria ganhar algum. “Você tem boa aparência. É o que precisamos lá na clínica. Um rapaz que atenda ligações e resolva problemas de última hora”. Era uma clínica clandestina de aborto. Perguntei pra ele se a clínica era mesmo clandestina. Ele não entendeu a piada. Recusei a proposta.
Corri até Câmara Municipal para procurar um vereador conhecido do Tio Harlan. O cara, diziam, tinha bom relacionamento com a turma da situação. Se pudesse me arrumar um cabide na administração atual, ficaria grato pro resto da vida. O seu Tenório conseguiu um lugar no setor de separação e entrega de missivas da própria Câmara Municipal. Eu não sabia o que era missiva, mas aceitei. Não devia ser coisa ruim. No primeiro dia de trabalho, percebi que meu negócio era separar e entregar cartas. Missiva é carta, foi o que o dicionário me disse. Separava correspondência pros gabinetes de vereadores, para a presidência da Câmara e até para dona Justina, que servia o cafezinho.
Foi ela que me avisou, depois de um ano de trabalho duro, que eu seria demitido logo mais. Com a história dessa tal terceirização resolveram terceirizar o serviço de correspondência e entregas. Eu ia tomar na cabeça. Mandaram me chamar. Como eu já sabia da demissão, fui à forra. Disse que ali só tinha bandido, político velhaco e puxa-saco. Uns chupins! E o salário era ridículo. Dei uma risada de louco, de gente desequilibrada. Toquei o terror! Comecei a gritar e simulei que ia morder alguém. Todo mundo subiu nas cadeiras, tinha gente até em cima da mesa. O seu Tenório ficou vermelho de raiva. Disse que minha postura não condizia com as referências que o tio Harlan lhe tinha dado.
A dona Justina, indignada com a situação, me indicou pra garçom de um boteco da família da cunhada da prima dela, lá na periferia. O negócio estava começando, mas dava ares de que iria pra frente. No almoço servia os PFs e à noite, lanche e cerveja. Eles me pagavam direitinho, inclusive o vale transporte pra ir e voltar. Na sexta-feira à noite, o expediente se estendia e eu podia dormir num quartinho do fundo do restaurante, porque, àquela altura dos acontecimentos, o boteco já tinha até nome de restaurante. Graças ao meu empenho, virei sócio. Propunha um evento hoje, uma música ao vivo amanhã, uma feijoada no domingo. Assim fui conquistando meu espaço. Ainda bem que não dei bola pras fantasias do tio Harlan. Em dois anos estava ficando abonado e pensei até em me casar com uma freguesa loirinha que me dava uns beijinhos sem nenhuma emoção.
Ao descobrir minha fibra empresarial, tio Harlan mandou me chamar. Propôs negócio, dizendo que talvez eu já fosse um eleito do dinheiro, tal como ele. Iríamos unir forças, ganhar muita grana. Resisti um pouco. Contudo, acabei cedendo. Vendi minha parte no restaurante da periferia, terminei com a loirinha insossa e virei sócio dele. O futuro prometia.
Prometia nada.... Ele passou a perna em mim. Quando percebi, estava trabalhando no almoxarifado da empresa, como um funcionário raso. Perdi minhas cotas da sociedade e a única coisa que me restou foram os convites para nadar na casa do Tio Harlan. Eu só precisava dar um jeito de quebrar a bomba da piscina.
Não. Não acredito nessa história de loteria e mega sena. É tudo uma grande sacanagem. Coisa de picareta, como o tio Harlan, que todos dizem ter tino comercial apenas porque deixou de ser empregado e hoje tem uma empresa. O tio Harlan recende a picaretagem. Só virou empresário porque ganhou na loteria. Um dia quis me convencer que há homens eleitos pelo dinheiro. Eu perguntei um “como assim” meio envorgonhado e ele me garantiu que existiam os predestinados. Tio Harlan, seu filho da puta!
Não adianta. Você não vai encontrar uma fonte de renda remansosa. Esqueça o que te disserem. O negócio é o trabalho. Viver de renda, de aluguel, ser cafetão, agiota, onzenário, tudo isso é fria. Só o trabalho constrói. Somente o esforço agrega. Ou, então, você tem pai rico. Rico e comedido. Do contrário, as pompas ficarão nas memórias. Um pai rico perdulário é um castigo. Você fica aí pensando que o sujeito vai te deixar de boa, na sombra e na água fresca. Quando sai o inventário, você percebe que, quando muito, te restou uma aplicação de alto risco que, se não for resgatada logo, adeus. Se você tiver irmãos, fodeu. O adeus é de rigor.
Por entender que a vida é só trabalho, resolvi meter as caras. Como as teses do tio Harlan nunca me serviram de nada, achei melhor encarar o trabalho. Saí à cata de uma ocupação. Nem era emprego, era ocupação mesmo. Faria qualquer coisa. “Então tá bom”, disse o dono do hotel. “Você carrega mala de terça a domingo. Pode folgar na segunda-feira de manhã e pode usufruir da piscina, já que nunca tem ninguém nesse horário. Salário? Bom, isso a gente vê depois”. Foi o que ele me falou.
Vestido de um uniforme pesado, carreguei mala (com ou sem rodinha, pequena, grande e também nécessaire). Carregava, inclusive, hóspede bêbado. Levei cantada de madame, de camareira e de veado velho. Tinha certeza que não podia comer ninguém, o que poderia comprometer meu novo ofício.
Tinha de tudo no hotel: milionário de verdade, falso rico, alpinista social, puta de luxo e até michê disfarçado de garçom. As finanças começaram a andar mal. Quando suspeitei que iria pro olho da rua, me cocei. Primeiro, só de birra, entrava na piscina pra mijar. O esquema tinha um preparo interessante. Ficava quatro horas sem comer, tomava muita água, deixava a bexiga ficar bem cheia e ia nadar. Mijava o tempo inteiro, uma mijada em cada canto da piscina. Como a bomba estava quebrada, não havia reciclagem de água alguma. Em duas semanas aquilo ficaria fétido, cheio de bactérias. Alguém se estreparia por ali. Depois, pra dar um jeito momentâneo na vida, meti a mão na gaveta do seu João. Ele era o gerente do estacionamento e guardava a gorjeta da semana numa gaveta sem chave. Era uma paca. O dinheiro daria para um mês, sem muito luxo, é claro.
Acabou a grana. Encontrei um velho amigo da escola e ele perguntou se eu queria ganhar algum. “Você tem boa aparência. É o que precisamos lá na clínica. Um rapaz que atenda ligações e resolva problemas de última hora”. Era uma clínica clandestina de aborto. Perguntei pra ele se a clínica era mesmo clandestina. Ele não entendeu a piada. Recusei a proposta.
Corri até Câmara Municipal para procurar um vereador conhecido do Tio Harlan. O cara, diziam, tinha bom relacionamento com a turma da situação. Se pudesse me arrumar um cabide na administração atual, ficaria grato pro resto da vida. O seu Tenório conseguiu um lugar no setor de separação e entrega de missivas da própria Câmara Municipal. Eu não sabia o que era missiva, mas aceitei. Não devia ser coisa ruim. No primeiro dia de trabalho, percebi que meu negócio era separar e entregar cartas. Missiva é carta, foi o que o dicionário me disse. Separava correspondência pros gabinetes de vereadores, para a presidência da Câmara e até para dona Justina, que servia o cafezinho.
Foi ela que me avisou, depois de um ano de trabalho duro, que eu seria demitido logo mais. Com a história dessa tal terceirização resolveram terceirizar o serviço de correspondência e entregas. Eu ia tomar na cabeça. Mandaram me chamar. Como eu já sabia da demissão, fui à forra. Disse que ali só tinha bandido, político velhaco e puxa-saco. Uns chupins! E o salário era ridículo. Dei uma risada de louco, de gente desequilibrada. Toquei o terror! Comecei a gritar e simulei que ia morder alguém. Todo mundo subiu nas cadeiras, tinha gente até em cima da mesa. O seu Tenório ficou vermelho de raiva. Disse que minha postura não condizia com as referências que o tio Harlan lhe tinha dado.
A dona Justina, indignada com a situação, me indicou pra garçom de um boteco da família da cunhada da prima dela, lá na periferia. O negócio estava começando, mas dava ares de que iria pra frente. No almoço servia os PFs e à noite, lanche e cerveja. Eles me pagavam direitinho, inclusive o vale transporte pra ir e voltar. Na sexta-feira à noite, o expediente se estendia e eu podia dormir num quartinho do fundo do restaurante, porque, àquela altura dos acontecimentos, o boteco já tinha até nome de restaurante. Graças ao meu empenho, virei sócio. Propunha um evento hoje, uma música ao vivo amanhã, uma feijoada no domingo. Assim fui conquistando meu espaço. Ainda bem que não dei bola pras fantasias do tio Harlan. Em dois anos estava ficando abonado e pensei até em me casar com uma freguesa loirinha que me dava uns beijinhos sem nenhuma emoção.
Ao descobrir minha fibra empresarial, tio Harlan mandou me chamar. Propôs negócio, dizendo que talvez eu já fosse um eleito do dinheiro, tal como ele. Iríamos unir forças, ganhar muita grana. Resisti um pouco. Contudo, acabei cedendo. Vendi minha parte no restaurante da periferia, terminei com a loirinha insossa e virei sócio dele. O futuro prometia.
Prometia nada.... Ele passou a perna em mim. Quando percebi, estava trabalhando no almoxarifado da empresa, como um funcionário raso. Perdi minhas cotas da sociedade e a única coisa que me restou foram os convites para nadar na casa do Tio Harlan. Eu só precisava dar um jeito de quebrar a bomba da piscina.
sábado, 15 de janeiro de 2011
Ah, Julinha!
Ah, Julinha! - Roberto Barbato Jr
Ah, Julinha! Putz, todo mundo queria a Julinha. Baixinha, branquinha, uma bunda razoável e os peitos.... Vivia olhando pro seu busto. Quando ia pra escola com decote, eu ficava naquela curiosidade, estendia o pescoço para alcancar alguma posição favorável. Também ficava apreensivo se aparecia usando camiseta Hering branca com gola V. Aí, sim, ficava louco de vontade dela. A Julinha era muito gostosa. Muito boa mesmo. O quadril rebolando, o andar macio. Parecia que pisava num carpete.
Só se falava nela e ela falava pra cacete. Como falava! Contava da fazenda do pai, da bicicleta nova, do clube, do primo carioca. Jogava bola, subia no trepa-trepa e nunca se recusou a participar daquela brincadeira do beijo, abraço e aperto de mão. Quando era pra beijar na boca, ela beijava com língua e tudo. O beijo da Julinha era um tesão, deixava todo mundo de pau duro. Também brincava do tal jogo da verdade. Contava umas vantagens. Diziam que isso acontecia porque era baixinha e tinha complexo. Imagine: a Julinha com complexo....
Ninguém acreditou quando eu disse que a pediria em namoro. Namorar a Julinha seria o máximo. Beijo de língua e os cambau. Queria surpreendê-la atrás do portão da quadra de vôlei no momento em que as meninas iriam pro vestiário. Pegaria na mão dela, puxaria-a pra mim e faria a proposta. Foram pelo menos umas dez vezes que jurei fazer isso. Nunca conseguia. Chegava perto dela e meu coração disparava, a perna bambeava e eu ficava vermelho, suando frio. Jurava pra mim que no dia seguinte conseguiria. Mas não conseguia.
Eu sonhava com a Julinha constantemente, sentia o perfume dela no sonho. Acordava com ela na cabeça e logo arquitetava algum plano pra sentar perto dela na classe. Mandava bilhetinhos anônimos cuja autoria, é óbvio, ela conhecia. Pensei em sequestrá-la, prendê-la em algum lugar ao qual só eu tivesse acesso. Trancaria a Julinha numa cabine do campo de futebol da escola, colocaria um cadeado com chave única. Levaria roupas e alimentos pra ela, até pizza. Ficaríamos juntos durante todo o dia, movidos a beijos. É claro que o plano não tinha nenhuma chance de êxito. Mas não custava sonhar. E eu sonhava.
Crescemos. A Julinha não quis saber mais de ninguém da turma. Já tinha sido sondada por um menino do segundo colegial, o Marcão. O cara era parrudo, musculoso, jogava bola, corria e nadava. Tinha, também, o cérebro meio atrofiado: não conjugava verbo, não sabia onde era o Japão e um dia jurou que me pegaria na saída da escola. Só porque a Julinha desceu a escada da entrada conversando comigo. Deu um sorriso e me disse que "amanhã a gente se fala". Pronto, o Marcão ficou uma pistola. Ombro a ombro, cara de malvado, me olhou feio. Bateu a mão fechada no peito que nem um King Kong. Foi aí que a Julinha ficou ainda mais gostosa. Agora, quase proibida e prometida pro Marcão, havia se tornado meu sonho de consumo. Era uma questão de honra, eu tinha que conquistá-la.
Grudei nela: no corredor das salas de aula, na classe, na escada da cantina, na porta do banheiro, no intervalo e na saída. A Julinha ficava comigo o tempo inteiro, era uma delícia. Estava pirando de tanta paixão. Enquanto isso, o Marcão continuava jurando que ia me arrebentar. Quanto mais me via com ela, com mais raiva ficava. A surra seria grande. Coitado de mim.
Um dia, chovia pra dedéu, a Julinha chegou na escola ensopada. Olhou pra mim com cara de choro, os olhos molhados, e me disse que iria embora. Ia mudar de escola, de cidade. Iria pra bem longe, mas me mandaria um cartão de Natal. Porra, Julinha, isso é coisa que se diga? Eu preferia apanhar do Marcão. Pois é. A Julinha foi embora. Ah, Julinha....
Ah, Julinha! Putz, todo mundo queria a Julinha. Baixinha, branquinha, uma bunda razoável e os peitos.... Vivia olhando pro seu busto. Quando ia pra escola com decote, eu ficava naquela curiosidade, estendia o pescoço para alcancar alguma posição favorável. Também ficava apreensivo se aparecia usando camiseta Hering branca com gola V. Aí, sim, ficava louco de vontade dela. A Julinha era muito gostosa. Muito boa mesmo. O quadril rebolando, o andar macio. Parecia que pisava num carpete.
Só se falava nela e ela falava pra cacete. Como falava! Contava da fazenda do pai, da bicicleta nova, do clube, do primo carioca. Jogava bola, subia no trepa-trepa e nunca se recusou a participar daquela brincadeira do beijo, abraço e aperto de mão. Quando era pra beijar na boca, ela beijava com língua e tudo. O beijo da Julinha era um tesão, deixava todo mundo de pau duro. Também brincava do tal jogo da verdade. Contava umas vantagens. Diziam que isso acontecia porque era baixinha e tinha complexo. Imagine: a Julinha com complexo....
Ninguém acreditou quando eu disse que a pediria em namoro. Namorar a Julinha seria o máximo. Beijo de língua e os cambau. Queria surpreendê-la atrás do portão da quadra de vôlei no momento em que as meninas iriam pro vestiário. Pegaria na mão dela, puxaria-a pra mim e faria a proposta. Foram pelo menos umas dez vezes que jurei fazer isso. Nunca conseguia. Chegava perto dela e meu coração disparava, a perna bambeava e eu ficava vermelho, suando frio. Jurava pra mim que no dia seguinte conseguiria. Mas não conseguia.
Eu sonhava com a Julinha constantemente, sentia o perfume dela no sonho. Acordava com ela na cabeça e logo arquitetava algum plano pra sentar perto dela na classe. Mandava bilhetinhos anônimos cuja autoria, é óbvio, ela conhecia. Pensei em sequestrá-la, prendê-la em algum lugar ao qual só eu tivesse acesso. Trancaria a Julinha numa cabine do campo de futebol da escola, colocaria um cadeado com chave única. Levaria roupas e alimentos pra ela, até pizza. Ficaríamos juntos durante todo o dia, movidos a beijos. É claro que o plano não tinha nenhuma chance de êxito. Mas não custava sonhar. E eu sonhava.
Crescemos. A Julinha não quis saber mais de ninguém da turma. Já tinha sido sondada por um menino do segundo colegial, o Marcão. O cara era parrudo, musculoso, jogava bola, corria e nadava. Tinha, também, o cérebro meio atrofiado: não conjugava verbo, não sabia onde era o Japão e um dia jurou que me pegaria na saída da escola. Só porque a Julinha desceu a escada da entrada conversando comigo. Deu um sorriso e me disse que "amanhã a gente se fala". Pronto, o Marcão ficou uma pistola. Ombro a ombro, cara de malvado, me olhou feio. Bateu a mão fechada no peito que nem um King Kong. Foi aí que a Julinha ficou ainda mais gostosa. Agora, quase proibida e prometida pro Marcão, havia se tornado meu sonho de consumo. Era uma questão de honra, eu tinha que conquistá-la.
Grudei nela: no corredor das salas de aula, na classe, na escada da cantina, na porta do banheiro, no intervalo e na saída. A Julinha ficava comigo o tempo inteiro, era uma delícia. Estava pirando de tanta paixão. Enquanto isso, o Marcão continuava jurando que ia me arrebentar. Quanto mais me via com ela, com mais raiva ficava. A surra seria grande. Coitado de mim.
Um dia, chovia pra dedéu, a Julinha chegou na escola ensopada. Olhou pra mim com cara de choro, os olhos molhados, e me disse que iria embora. Ia mudar de escola, de cidade. Iria pra bem longe, mas me mandaria um cartão de Natal. Porra, Julinha, isso é coisa que se diga? Eu preferia apanhar do Marcão. Pois é. A Julinha foi embora. Ah, Julinha....
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Luiz Inácio e o carisma
Ao discutir a transição do governo Luiz Inácio para a nova presidenta, Eliane Cantanhede (“Voto de Confiança”, Folha de S. Paulo, 02/01/2011), me levou a pensar na clássica questão da sucessão do líder carismático, tal como formulada por Weber.
Como se sabe, o gênio alemão havia tipificado os três tipos de dominação legítima: a dominação racional-legal, a dominação tradicional e a dominação carismática.
Luiz Inácio é o exemplo mais que pertinente para se ilustrar a dominação carismática. Comentários a esse respeito seriam mais do que desnecessários aqui, bastando realçar sua indiscutível habilidade de persuação e sua capacidade para aglutinação de discípulos e partidários em torno de si.
Em seu sintético (mas afiado) texto, Eliane afirma que “Difícil será preencher o vazio de um presidente carismático”. Sua observação está diretamente ligada à sucessão acima aludida. Como o líder carismático – no caso, o sr. Luiz Inácio – é dotado de características que não podem ser simplesmente “transmitidas”, haveria de se indagar como seria possível encontrar alguém para substituí-lo.
Referindo-se à obra weberiana, Julien Freund, assim discorre sobre o assunto:
“A grande questão do domínio carismático é, pois, a da sucessão. Com efeito, como perpetuar o sistema após a morte do chefe, uma vez que o carisma não se aprende nem se deixa inculcar mas desperta e é sentido, e que os partidários do chefe, como o seu estado-maior, têm um interesse material e ideal de fazer durar esse domínio? A dificuldade reside no fato de ser a obediência dos partidários pura dedicação à pessoa do chefe e de carecer da continuidade que constitui a força da tradição e da legalidade. Weber examina exaustivamente as diversas soluções possíveis. Ou se tenta descobrir um outro portador de carisma, que possua características análogas às do desaparecido (caso do Dalai Lama); a conseqüência desta prática é fundar uma tradição. Ou confia-se na revelação, nos oráculos, na sorte, no julgamento de Deus ou em outro critério irracional; nestes casos, caminha-se mais ou menos rapidamente para uma legitimidade legalista. Ou então o chefe em exercício designa ele próprio o seu sucessor com ou sem a aprovação de seus partidários. Ou ainda a designação é feita pelo estado-maior carismático; este processo exclui a eleição fundamentada no princípio majoritário, pois o problema é encontrar o homem adequado, se se quiser ficar fiel à fórmula carismática. Enfim, o carisma pode-se tornar hereditário, quando se admite a lei do sangue”. (FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987).
No contexto atual, a sucessão de Luiz Inácio não nos remete a reflexão tão apurada e desgastante. A presidenta Dilma, eleita pelo povo brasileiro (e não sugerida por oráculos ou julgada por Deus) muito longe está de qualquer traço carismático. Como bem assevera Cantanhede, a nova chefe (ou também será chefa?) “só não deve arriscar tudo para tentar ser o que não será: um mito”. É de se esperar que saiba, portanto, qual é o papel que lhe cabe nos próximos quatro anos. Aspiremos, mais que esperemos.
Em tempo: já que se fala em carisma e este supõe, de alguma maneira, um traço de inteligência, devemos também recorrer ao comentário de FHC que, há algumas semanas, comentando sobre Dilma, revelou: “Tenho dificuldade mesmo. Você sabe que eu sou curto de inteligência, às vezes eu não consigo. Ela não termina o raciocínio, e eu não tenho imaginação suficiente para saber o que ela ia dizer”. O comentário foi feito no “Manhattan Connection”, de 26/12/2010 (Fonte: Folha de S. Paulo. 28/12/2010).
Como se sabe, o gênio alemão havia tipificado os três tipos de dominação legítima: a dominação racional-legal, a dominação tradicional e a dominação carismática.
Luiz Inácio é o exemplo mais que pertinente para se ilustrar a dominação carismática. Comentários a esse respeito seriam mais do que desnecessários aqui, bastando realçar sua indiscutível habilidade de persuação e sua capacidade para aglutinação de discípulos e partidários em torno de si.
Em seu sintético (mas afiado) texto, Eliane afirma que “Difícil será preencher o vazio de um presidente carismático”. Sua observação está diretamente ligada à sucessão acima aludida. Como o líder carismático – no caso, o sr. Luiz Inácio – é dotado de características que não podem ser simplesmente “transmitidas”, haveria de se indagar como seria possível encontrar alguém para substituí-lo.
Referindo-se à obra weberiana, Julien Freund, assim discorre sobre o assunto:
“A grande questão do domínio carismático é, pois, a da sucessão. Com efeito, como perpetuar o sistema após a morte do chefe, uma vez que o carisma não se aprende nem se deixa inculcar mas desperta e é sentido, e que os partidários do chefe, como o seu estado-maior, têm um interesse material e ideal de fazer durar esse domínio? A dificuldade reside no fato de ser a obediência dos partidários pura dedicação à pessoa do chefe e de carecer da continuidade que constitui a força da tradição e da legalidade. Weber examina exaustivamente as diversas soluções possíveis. Ou se tenta descobrir um outro portador de carisma, que possua características análogas às do desaparecido (caso do Dalai Lama); a conseqüência desta prática é fundar uma tradição. Ou confia-se na revelação, nos oráculos, na sorte, no julgamento de Deus ou em outro critério irracional; nestes casos, caminha-se mais ou menos rapidamente para uma legitimidade legalista. Ou então o chefe em exercício designa ele próprio o seu sucessor com ou sem a aprovação de seus partidários. Ou ainda a designação é feita pelo estado-maior carismático; este processo exclui a eleição fundamentada no princípio majoritário, pois o problema é encontrar o homem adequado, se se quiser ficar fiel à fórmula carismática. Enfim, o carisma pode-se tornar hereditário, quando se admite a lei do sangue”. (FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987).
No contexto atual, a sucessão de Luiz Inácio não nos remete a reflexão tão apurada e desgastante. A presidenta Dilma, eleita pelo povo brasileiro (e não sugerida por oráculos ou julgada por Deus) muito longe está de qualquer traço carismático. Como bem assevera Cantanhede, a nova chefe (ou também será chefa?) “só não deve arriscar tudo para tentar ser o que não será: um mito”. É de se esperar que saiba, portanto, qual é o papel que lhe cabe nos próximos quatro anos. Aspiremos, mais que esperemos.
Em tempo: já que se fala em carisma e este supõe, de alguma maneira, um traço de inteligência, devemos também recorrer ao comentário de FHC que, há algumas semanas, comentando sobre Dilma, revelou: “Tenho dificuldade mesmo. Você sabe que eu sou curto de inteligência, às vezes eu não consigo. Ela não termina o raciocínio, e eu não tenho imaginação suficiente para saber o que ela ia dizer”. O comentário foi feito no “Manhattan Connection”, de 26/12/2010 (Fonte: Folha de S. Paulo. 28/12/2010).
sábado, 8 de janeiro de 2011
Luiz Inácio, privilégios e regalias
Houve uma época em que cheguei a acreditar que o sr. Luiz Inácio primava pela absoluta exclusão de privilégios pessoais e interesses particulares no Brasil. Segundo entendia, ele e seu partido lutavam contra toda forma de benefício de uns em detrimento de outros. Toda e qualquer prerrogativa individual não poderia ser aceita, sob pena de macular o processo de construção de um país ético e democrático. Regalias, portanto, nem pensar.
Era isso mesmo ou estou enganado?
Não era o ex-presidente sem anel de Doutor quem lutava pelo fim das políticas clientelistas e do fisiologismo? Não era ele que entendia ser necessária a igualdade de oportunidades para todos os brasileiros? Não era ele que criticava a postura das nossas elites atrasadas, marcadas por laços de caudilho?
Recentemente, ao ler a Folha de S. Paulo fui surpreendido pela notícia de que, dois dias antes de terminar seu mandato, pediu a renovação dos passaportes diplomáticos de seus filhos. Essa renovação é válida por mais 4 anos. Ou seja, enquanto a Sra. Dilma governar o país, os filhos de Lula, sem que tenham qualquer ligação com o governo e com a esfera da administração pública, poderão gozar das benesses que o tal passaporte lhes dá, entre elas a de não precisarem de visto para ir para China e para a Índia.
Mas não é só! Os garotos não precisarão enfrentar filas na alfândega! E isso, provavelmente, no entender do guru sem o anel de Doutor, não é nenhuma regalia.
Sabem a história daqueles que não enfrentam fila? Daqueles que sempre dizem o “sabe com quem está falando”? Sim, aqueles que têm e/ou tiveram os privilégios sempre combatidos por Lula e seu partido? Naturalmente, eles nenhuma relação terão com os filhos do nosso emotivo ex-presidente.
Não bastasse a bizarrice dessa concessão, chamou-me a atenção a forma como se pretendeu justificá-la. Embora já tenham excedido a idade necessária para obtenção do especialíssimo documento (24 anos), aos filhos de Luiz Inácio a renovação se deu sob o pretexto de que existe o “interesse do país”. Esse foi o argumento utilizado pelo Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Como o “interesse do país” é critério eivado de grande subjetividade, não há que se questionar como poderão os filhos da família Silva agir em prol do nosso país.
Ontem, o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, meteu o bedelho na discussão e disse que o assunto é de uma “irrelevância absoluta”. Vejam só! Aquilo que era relevantíssimo no passado, uma das pedras angulares do discurso petista, passa atualmente, num passe de mágica, a ser considerado irrelevante. Como não há maneira de justificar o injustificável, Marco Aurélio atribui as críticas feitas à concessão aos “3 ou 4% que consideram o governo Lula péssimo” (Cf. Filhos de Lula renovam passaporte diplomático e causam polêmica. O globo. 07/01/2011). O argumento, por absoluta falta de criatividade do autor, é, no mínimo, patético. Basta notar que, mesmo entre os adoradores do nosso líder barbudo e de seu governo, há aqueles que repudiam regalias como a que aqui se discute.
Ah sim.... já ia me esquecendo: também deu na Folha de S. Paulo que o neto de Lula, de 14 anos, igualmente contrariando norma interna do Itamaraty, ganhou o passaporte dois dias antes do término do mandato do avô. Menino importante, hein?!!!!
Era isso mesmo ou estou enganado?
Não era o ex-presidente sem anel de Doutor quem lutava pelo fim das políticas clientelistas e do fisiologismo? Não era ele que entendia ser necessária a igualdade de oportunidades para todos os brasileiros? Não era ele que criticava a postura das nossas elites atrasadas, marcadas por laços de caudilho?
Recentemente, ao ler a Folha de S. Paulo fui surpreendido pela notícia de que, dois dias antes de terminar seu mandato, pediu a renovação dos passaportes diplomáticos de seus filhos. Essa renovação é válida por mais 4 anos. Ou seja, enquanto a Sra. Dilma governar o país, os filhos de Lula, sem que tenham qualquer ligação com o governo e com a esfera da administração pública, poderão gozar das benesses que o tal passaporte lhes dá, entre elas a de não precisarem de visto para ir para China e para a Índia.
Mas não é só! Os garotos não precisarão enfrentar filas na alfândega! E isso, provavelmente, no entender do guru sem o anel de Doutor, não é nenhuma regalia.
Sabem a história daqueles que não enfrentam fila? Daqueles que sempre dizem o “sabe com quem está falando”? Sim, aqueles que têm e/ou tiveram os privilégios sempre combatidos por Lula e seu partido? Naturalmente, eles nenhuma relação terão com os filhos do nosso emotivo ex-presidente.
Não bastasse a bizarrice dessa concessão, chamou-me a atenção a forma como se pretendeu justificá-la. Embora já tenham excedido a idade necessária para obtenção do especialíssimo documento (24 anos), aos filhos de Luiz Inácio a renovação se deu sob o pretexto de que existe o “interesse do país”. Esse foi o argumento utilizado pelo Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Como o “interesse do país” é critério eivado de grande subjetividade, não há que se questionar como poderão os filhos da família Silva agir em prol do nosso país.
Ontem, o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, meteu o bedelho na discussão e disse que o assunto é de uma “irrelevância absoluta”. Vejam só! Aquilo que era relevantíssimo no passado, uma das pedras angulares do discurso petista, passa atualmente, num passe de mágica, a ser considerado irrelevante. Como não há maneira de justificar o injustificável, Marco Aurélio atribui as críticas feitas à concessão aos “3 ou 4% que consideram o governo Lula péssimo” (Cf. Filhos de Lula renovam passaporte diplomático e causam polêmica. O globo. 07/01/2011). O argumento, por absoluta falta de criatividade do autor, é, no mínimo, patético. Basta notar que, mesmo entre os adoradores do nosso líder barbudo e de seu governo, há aqueles que repudiam regalias como a que aqui se discute.
Ah sim.... já ia me esquecendo: também deu na Folha de S. Paulo que o neto de Lula, de 14 anos, igualmente contrariando norma interna do Itamaraty, ganhou o passaporte dois dias antes do término do mandato do avô. Menino importante, hein?!!!!
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