domingo, 4 de abril de 2010

Romances policiais

"Para mim, a história de nosso tempo não se exprime nem na guerra nem na bomba atômica, mas no casamento de uma idealista com um gângster e na maneira como sua vida familiar e suas crianças evoluem". Com tais palavras, Raymond Chandler traçava com exímia acuidade o retrato de seu tempo. Discípulo fiel de Dashiell Hammett, considerado o maior escritor de romances policiais, Chandler escrevia também roteiros para cinema. É dele, por exemplo, o roteiro de Pacto de Sangue, obra-prima dirigida por Billy Wilder (meu diretor preferido) e baseada no clássico Double indemnity (Dupla indenização), de James Cain. Hammett e Chandler criaram dois detetives que se tornaram célebres: Sam Spade e Philip Marlowe.

Durante muito tempo recusei-me, por puro preconceito, a ler romances policiais. A exemplo de tantos incautos, reputava-os literatura de baixa qualidade. Não perderia meu tempo!

Em 1998, topei com dois livros que, casualmente, me fariam "rever meus conceitos", como diz uma propaganda já quase antiga. O silêncio da chuva, de Luiz Alfredo Garcia-Roza (merecidamente premiado com o Jabuti e o Prêmio Nestlé de Literatura) e Bellini e o demônio, de Tony Bellotto.

O silêncio da chuva, já de pronto, me fez acreditar que é possível conciliar a literatura policial com uma narrativa sensível, aprimorada e bem escrita. Garcia-Roza havia conseguido me mostrar que meu preconceito antigo não era, em verdade, preconceito, mas sim burrice. Lembro-me de uma entrevista que ele deu, no final dos anos 90 no Multishow, em que confessava sempre ler paralelamente a literatura clássica (assim considerada) e a literatura policial. Alguém com um mínimo de bom senso perceberia, pelas suas palavras, a inequívoca possibilidade de apreciar a literatura como um todo, sem desmerecer méritos.

Seus livros seguintes (Achados e perdidos; Uma janela em Copacabana, Vento sudoeste, Berenice procura e Perseguido), foram adquirindo uma agilidade "mais compatível", por assim dizer, com a narrativa policial. Tornaram-se mais rápidos, mas nem por isso perderam o requinte que o autor soube dar à sua primeira obra. Há tempos, mandei a ele uma carta na qual dizia isso. Na gentil resposta que me enviou, chegou a concordar comigo ou, pelo menos, não divergiu frontalmente das minhas observações. Garcia-Roza é o escritor de romances policiais que, mais do que ninguém, alia a pena fina e elegante a tramas bem urdidas, protagonizadas ou não pelo espetacular Delegado Espinosa.

Bellotto, com narrativa também ágil e seca, despertou-me interesse por Dashiell Hammett. Hammett era, até então, apenas o autor de um livro (O falcão maltês) que ficou durante anos na estante da minha casa, juntamente com um volume de Raymond Chandler. É claro que eu já havia ouvido falar no filme homônimo, mas não me atrevi a ler o livro. Pois foi a narrativa do segundo livro de Bellotto que me fez procurar pela produção de Dashiell Hammett.

Depois de ler sua obra-prima, li os contos de Ferradura dourada, traduzido inicialmente no Brasil pela Editora Círculo do Livro e, após muitos anos, publicado pela Companhia das Letras com o título de Continental Op, com belíssima nota introdutória de Ruy Castro. Tiros na noite, por muito tempo inédito no Brasil, fora publicado em primorosa edição pela Record.

Voltando ao Bellotto.... Seus livros com o personagem Remo Bellini – cheio de contradições, fã de blues e morador de uma São Paulo quase noir – conseguiram uma façanha que eu ainda não conhecia: o segundo e terceiro títulos (Bellini e o demônio e Bellini e os espíritos) são muito superiores ao primeiro (Bellini e a esfinge). São apenas esses os três romances nos quais Bellini aparece. Recentemente, Bellotto confessou, em entrevista a Edney Silvestre, que escrevera outros livros sem Bellini para não ficar marcado como autor de um único personagem. Bobagem dele....

Também descobri duas Patrícias, a Melo (brasileira) e a Cornwell (norte-americana).

A nossa Patrícia, a Melo, se diz herdeira da literatura de Rubem Fonseca, de quem somente conheço alguns contos. É dela o fantástico Elogio da Mentira, que se construiu em meio a referências literárias enxertadas numa trama que visa a consecução do crime perfeito. Patrícia Mello tem uma escrita divertidíssima, embora o contexto de suas obras sejam densos, pesados.

Já a Cornwell tem um estilo diferente. É dela a personagem Dra. Kay Scarpetta, médica legista capaz de descobrir indícios dos homicidas por meio das necropsias que realiza. Devorei alguns de seus livros e notei que eles têm uma espécie de cronologia dos personagens. É óbvio que cada obra tem lá sua autonomia. Contudo, os personagens modificam-se conforme o tempo. A Dra. Kay Scarpetta, por exemplo, é uma fumante inveterada nos primeiros livros. Creio que a partir do quarto título, deixa de fumar e passa a criticar com muita frequência um colega fumante insuportável: Marino. Enfim, seus personagens envelhecem, obedecendo a uma linha temporal, dificilmente verificável em qualquer outro personagem. Basta pensar nos heróis em quadrinhos ou outros ícones de histórias de ficção: eles sempre têm a mesma idade e todas as histórias das quais participam são vividas como se o tempo não fosse implacável. Demonstram sempre a mesma destreza, a mesma inteligência e a mesma capacidade de solucionar os problemas que enfrentam.

O Xangô de Baker Street, do Jô Soares, merece também destaque nessa pequena lista. Não sei como o classificaria senão como a perfeita realização de um clima ficcional misturado com personagens da vida real. Jô foi fiel a esse estilo em seus dois últimos livros (O homem que matou Getúlio Vargas e Assassinatos na Academia Brasileira de Letras).

Agatha Christie? Dela li apenas dois livros: Encontro com a morte (um tanto enfadonho) e O assassinato de Roger Ackroyd (sensacional!).

Apenas para não ser injusto, cabe aqui uma menção àquele que conseguiu, ao menos para a minha geração, fazer com que a molecada adorasse leitura: Marcos Rey. Seus livros com temática infanto-juvenis eram essencialmente policiais. Quem não leu Um cadáver ouve rádio? O mistério dos cinco estrelas? Doze horas de terror? Enigma na TV? Pois é, além da lavra infanto-juvenil, Marcos Rey era um grande romancista, infelizmente pouquíssimo valorizado. Mas isso é outra história....

Devo ter me esquecido de algum autor ou obra que mereceria inclusão nesse post. Vou aproveitar a Páscoa e comer um pouco de chocolate. Quem sabe minha memória me surpreende com alguma surpresa....

A propósito, Feliz Páscoa a todos!

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo post, meu querido; livre de preconceitos. Não sou leitor de romance policial hoje, mas não descrimino o gênero, há literatura boa e ruim em todos os gêneros. Quanto a Marcos Rey, esse fez parte da minha infância.

Um abraço!