segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Os mitos sobrevivem

Não é uma cena da literatura como alguns posts anteriores. Mesmo assim, acho que merece atenção. É uma cena de novela. De uma das novelas mais geniais da história da TV brasileira: "Roque Santeiro". Lembro-me que fora exibida em 1985, mas não sabia precisamente a data. Procurando informações no Wikipedia, descobri que teve 209 capítulos e veiculou entre 24/06/1985 e 22/02/1986.

Vamos à cena.

Padre Albano (Cláudio Cavalcanti) resolveu contar para toda a cidade quem era Roque Santeiro (José Wilker). Isso significava desmascarar o gigante mito que alimentava de todas as formas a pequena Asa Branca. Roque havia voltado do exterior e se encontrava na província. Seu pai, Beato Salu (Nelson Dantas), estava em coma, internado.

Padre Albano começou a tocar os sinos da igreja a fim de chamar a atenção da população para fazer a grande revelação. No mesmo instante, Beato Salu acordou. Enquanto Albano badalava os sinos, a população corria para ver o que estava acontecendo. O insano profeta, mais vivo do que nunca, entrava em cena, seguido pelo séquito das carolas católicas. Sua recuperação, diziam, era um milagre de Roque Santeiro. Os planos de Albano ruíram miseravelmente.

Segundo edição da Veja de 02/10/1985, no mesmo capítulo, Padre Hipólito (Paulo Gracindo) teria dito: "O mito é mais forte que a verdade".

E, tal como na realidade, o mito sobreviveu.

domingo, 16 de novembro de 2008

Tumitinha, atédezechega e circuncissfláutico

Mário Prata publicou no Estadão, em 23/01/1995, uma crônica chamada "O amor do Tumitinha era pouco e se acabou". Naturalmente, a frase versa sobre a interpretação muito pessoal que uma amiga dele fazia da famosa "Ciranda, cirandinha". Ela imaginava que Tumitinha era um japonês pequeno, cujo nome real era Tumita. Sempre que ouvia a música, ficava pesarosa, pois notava que o amor do Tumitinha havia se acabado.

Lembrei-me recentemente dessa crônica porque ouvi a expressão "até dizer chega" e me dei conta de que ela me era, na infância, uma só palavra: "atédezechega". "Atédezechega" constituía-se, para mim, de algo contrário à sua idéia primacial, ou seja, um limite. "Tomar coca-cola atédezechega", por exemplo, não era tomar coca até que não mais se agüentasse fazê-lo. Era tomá-la indefinidamente, para sempre, sem nenhum óbice. Fazer algo atédezechega era uma maravilhosa porque, tratando-se de algo prazeiroso, dava-me a legitimidade para extravagâncias de toda sorte. Somente mais tarde, atento à cadência da fala brasileira, dei-me conta de que o antigo atédezechega era pontual e preciso: "até dizer chega". Em suma, até não se agüentar mais.

"Sonso" foi outra palavra que me causou alguma confusão. Sempre a ouvia no feminino: "A fulana é uma sonsa mesmo!". Entendia que sonsa, naqueles casos, era a menina bocó, bobona, desatenta e um tanto burrinha. Alguém relativamente tranqüilo, sem a urgência característica da puberdade, poderia perfeitamente ser considerado sonso.

Havia, também, uma espécie de sinônimo de sonso que resultava na mesma confusão: "songamonga". Aí o exagero era patente! A songamonga era uma idiota completa! Muito tempo depois é que percebi o real sentido dessas palavras. O Aurélio me disse que sonso é "dissimulado, manhoso, astuto, velhaco, solerte, sonsinho". Então, tratava-se de idéia diametralmente oposta àquela que eu tinha? Isso mesmo! Songamonga, para minha surpresa, é a "pessoa sonsa, dissimulada". Dá no mesmo. Não foi curto o período em que empreguei esses termos de modo indevido.

Depois que comecei a me interessar pela obra do Mário de Andrade, e resolvi estudá-la, ficava intrigado com alguns termos que ele usava e cujo significado não encontrava em nenhum dicionário. Nesses casos, o melhor era deduzir o teor pelo sentido da frase, que é o que todos nós fazemos na ausência de dicionários ou outras fontes de pesquisa. Mário inventava nomes, verbos e palavras. Já falei aqui, por algumas vezes, que sua linguagem era um tanto peculiar. Há, entretanto, termos que, embora deduzíveis, revelam-se absolutamente feios. É o caso de "passadistização" e "circuncissfláutico". Esta última é invencível! "Fico meio circuncissfláutico com esses bairrismos, palavra", diria sobre os regionalismos de seu tempo.

Que o modernismo tivesse legitimidade para inventar, romper com padrões, é algo que não se discute. Foi justamente por isso que existiu e fez o que fez! Mas, daí a inventar o incompreensível, pode soar desagradável e, sobretudo, inútil. Se a palavra inventada não se converte em instrumento útil de comunicação, de entendimento, não tem valor. Mário, contudo, devia saber disso e, mesmo assim, inventava. E como inventava!

Boa semana a todos!

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Gargalos

Não conheço família destituída de tiques, manias e neuroses. Há gosto para todo tipo.... Apenas a intensidade das neuras é que varia. Em família, é sabido, todo mundo se revela um pouco louco. Essa loucura parece ser absolutamente normal até que alguém perceba.

Em casa, acostumamo-nos a examinar o gargalo das antigas garrafas de refrigerante. Eram de vidro e muitas vezes quebravam ao abrir. Se caísse um caco no fundo da garrafa e alguém consumisse....

Ouvíamos histórias tenebrosas. Uma amiga da escola garantiu-me que um tio dela foi parar no hospital com um cacão de vidro no estômago. O coitado precisou submeter-se a uma cirurgia de emergência. Hemorragia para todo lado, quase morreu! A criançada ficava em volta para saber como aquilo aconteceu....

Nos idos anos 80, numa noite de verão, fazia muito calor. Na geladeira, uma única garrafa de coca-cola. Resolvemos abri-la. O gargalo estava quebrado. Justamente na borda interior! E agora?

Teríamos de comprar outra! Àquela hora, contudo, o supermercado já havia fechado. Cidade do interior, naquela época, ainda não tinha a facilidade das "24 horas", tudo fechava cedo. Uma alternativa interessante residia em procurar por um boteco e comprar o refrigerante. Cadê vontade? Ninguém se habilitou....

Ficamos num impasse horroroso... E o calor parecia aumentar com vontade da coca. Toma, não toma. Toma, não toma. Por via das dúvidas, minha mãe falou, é melhor não tomar. Resolveu-se que deveríamos coar a bendita coca-cola. Não me recordo como a tarefa foi empreendida, mas sei que meu pai armou uma engenhoca bacana.

Cada um tomou seu copo – já sem gás algum! (arghhhh) – e se deu por satisfeito. Ninguém viu caco no coador. O exagero da conduta era grande, mas, no fundo, ninguém desejava arriscar.

Anos depois, já casado, resolvi sair com ela para jantar. Pedimos coca-cola e o garçom abriu a garrafa na nossa frente. O gargalo estava quebrado, não havia dúvida. Solicitei a troca da garrafa. Logo depois, ele apareceu com outra. Repetiu o gesto: abriu o refrigerante na nossa presença e esperou para ver se estava tudo bem. Surpresa!!! A segunda garrafa também estava quebrada. Não tive dúvidas: pedi que trocasse novamente o refrigerante.

Após mais um tempinho, voltou. Pôs a garrafa na mesa e abriu. Quando olhei para o gargalo, tive aquela sensação inequívoca de déjà vu. O corte era exatamente o mesmo! O garçom, cara amarrada, olhou-me com reprovação. Tentou argumentar que o problema "era de fábrica". Silenciei e, com calma, pedi uma lata de coca-cola. Problema resolvido!

Veio a lata! Ele olhou para mim e, sarcástico, disse:

- Essa não tem como quebrar!

Sorri, aquiescendo. Estava satisfeito que as garrafas de coca-cola seriam inutilizadas pelo restaurante.

Antes de ir embora, vimos o garçom servindo uma mesa com duas garrafas de coca. Elas estavam a caminho da mesa já abertas.

Como a dúvida é cruel....

sábado, 1 de novembro de 2008

Jabuti 2008

Foi ontem a entrega dos prêmios da 50ª edição do Jabuti. A TV Cultura transmitiu a cerimônia da Sala São Paulo pela internet. A iniciativa merece os mais altos elogios. Quem sabe na próxima edição teremos a transmissão para a TV?

Como disse no post passado, lamentavelmente ando sem tempo para a literatura. Não li, portanto, nenhum dos livros finalistas. Acompanhei as indicações e bati os olhos em alguns trechos do Antônio, de Beatriz Bracher, terceira colocada na categoria Romance.

O primeiro lugar ficou com Filho Eterno, do Cristovão Tezza, livro, aliás, premiado no Portugal/Brasil Telecom e em outros tantos concursos. Parecia haver vozes uníssonas de que Tezza levaria também o prêmio de "Livro do ano de ficção" do Jabuti. Não levou!

Quando Cunha Jr anunciou que Loyola Brandão era o premiado com O menino que vendia palavras, a platéia manifestou largo contentamento. Loyola subiu ao palco para os agradecimentos.

Disse que levou um susto, porque supunha, a exemplo de todos, que o Filho Eterno ficaria com o prêmio. Iniciou, então, um pequeno discurso.

Falou que tem o prazer de, após seus setenta e poucos anos, conviver ainda com as duas professoras que o iniciaram na leitura. Elas estão vivas, lá em Araraquara. Contou que, recentemente, numa homenagem feita a ele, uma delas indagou à outra:

- Quantos livros o menino já escreveu?

- 31!

- Ihhhh.... Acho que não vou conseguir ler tudo. Minha vista já não está boa!

O prêmio foi dedicado a elas, é claro!