Recentemente,
a imprensa brasileira iniciou a divulgação do Festival Lula Livre, a se
realizar nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, em 28 de julho. A convocatória
para o evento foi assinada por Chico Buarque, Leonardo Boff, Martinho da Vila,
José Celso Martinez Corrêa, Eric Nepomuceno e Fernando Morais, entre outros
artistas e intelectuais.
O evento não seria motivo de atenção se não fosse
endossado por um texto permeado por disparates e contradições. Salvo melhor
juízo, seu conteúdo denota as posições que alguns dos asseclas da legenda
petista e seus simpatizantes vêm assumindo diante da condenação e da segregação
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De sorte a tentar esquadrinhar as
aludidas posições, avancemos com algumas hipóteses e interpretações.
O panfleto – se assim podemos qualificá-lo – inicia
demonstrando o objetivo do festival: "pedir a imediata libertação" de
Lula. Não se sabe a quem o pleito será formulado. Isso, contudo, pouco importa
diante do fato de que ele representa um "gesto de exigência para que
se respeite a Justiça, pilar básico de qualquer sistema minimamente
democrático". A única
interpretação possível dessa assertiva é a de que a prisão de Luiz Inácio é uma
injustiça e o sistema judicial brasileiro não se revela democrático.
Avançando a leitura, encontra-se uma frase de grande
altivez: "O caso de Luís Inácio Lula da Silva tem um simbolismo único na história
recente do nosso país". Por se tratar de um ex-presidente – o mais popular
da história republicana – a justiça deve ser interpretada de maneira peculiar,
aferindo a ele uma justiça também sui
generis: aquela diferente da dos demais cidadãos, ou seja, a que somente
teria viabilidade de aplicação para Luiz Inácio.
Pois é, então, que se verifica a contradição das
ideias contidas na convocatória: a justiça não respeitada naquele sistema não
democrático deveria levar em consideração o "simbolismo único" de
Lula na história nacional. Daí porque, para os signatários do texto, a justiça
deva servir de modo diferenciado a um ex-presidente da República. Não há como
se furtar a concluir que, para os combativos intelectuais e artistas, o
ex-presidente em apreço seja merecedor de privilégios consoantes a um sistema
democrático. Como um sistema concebido nesses termos jamais abarcaria tais
privilégios, ter-se-ia uma peculiar forma de justiça.
Também chama a atenção que o julgamento de Lula
seja visto como "um erro jurídico sem limites", já que não havia
"uma única e mísera prova dos crimes dos quais ele foi acusado". O
elevado conhecimento jurídico dos autores do panfleto e o acesso que tiveram
aos autos é que lhes permitiu fazer essa afirmativa. Para legitimá-la,
recorreu-se a um argumento de autoridade: "não se trata de opinião, mas de
constatação". Não arrisque o leitor a discutir. A constatação é o bastante
para que não se emita nenhuma opinião. É talvez desse modo que se vai
construindo uma "nova" forma de diálogo para os defensores de Lula,
aquela que prima pela constatação em detrimento da pluralidade de opiniões.
Não se pense que a referida "constatação"
esteja ancorada apenas em virtude do conhecido embate entre o Juiz Sérgio
Fernando Moro e os interesses defensivos do ex-presidente. O pretenso
"erro jurídico" de sua condenação foi corroborado pelos
desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região numa trama que contou
com a "complacência
de todas as demais instâncias". Segundo esse raciocínio, todo o sistema
processual penal brasileiro estaria contaminado por julgamentos destituídos de
isenção e não acordes com a apreciação das provas. Dentre os acusados da
Operação Lava-Jato, Lula seria um perseguido, o mais emblemático deles, aquele
de "simbolismo único". Aqui residiria a "injustiça" que o
vitimizou: sendo um ex-presidente, Luiz Inácio teria direito a uma justiça
"diferente", o que lhe foi negado por "manobras jurídicas".
Esse argumento, sistematicamente utilizado pela
militância petista, parece resistir ao bom senso e à capacidade crítica de
qualquer observador da realidade brasileira dos últimos anos. Situar a
condenação de Lula no campo político é argumento de rasa inteligência,
proveniente de uma quimérica mania persecutória apta a justificar suas condutas
não republicanas.
É então
que, partindo para o epílogo, o texto reclama a participação de Lula nas
eleições presidenciais. Eis o motivo essencial para se romper com a injusta
segregação do ex-presidente. Sendo ele o único capaz de retomar o "rumo da
normalidade" do país, não se poderia manter o "flagrante desrespeito às
regras mais elementares da Justiça". Leia-se: não se poderia mantê-lo
segregado. Nova contradição irrompe: a mesma política – e não o devido processo
legal – que sacrificou a liberdade de Lula precisa preponderar sobre o
julgamento judicial. Se a condenação é injusta, deve-se resolvê-la por
intermédio da política. Com efeito, nada mais apropriado que atribuir à
população brasileira a opção por elegê-lo. A tensão insolúvel entre a esfera
política e a jurídica se resolveria com o processo eleitoral e, uma vez mais, a
lei – no caso, a da Ficha Limpa – teria de ser utilizada também de forma
diferenciada para Luiz Inácio.
Esperemos para verificar, nos próximos meses, a extensão do famigerado "desrespeito às regras mais elementares de Justiça". Até que ele acabe, as "injustiças" e os privilégios permanecerão no cenário brasileiro.
Esperemos para verificar, nos próximos meses, a extensão do famigerado "desrespeito às regras mais elementares de Justiça". Até que ele acabe, as "injustiças" e os privilégios permanecerão no cenário brasileiro.