sexta-feira, 23 de maio de 2014

Conversa 2

Conversa 2

O filme ainda está em negociação. Mesmo assim, resolvi puxar papo.
- Escuta. E os mistérios?
Ele imaginou que eu estivesse a falar dos mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos, luminosos... Ficou feliz. Sentiu que, pela primeira vez, poderia ter uma boa conversa comigo. Fui logo me explicando.
- Tô falando dos mistérios da vida. Aquelas coisas que eu nunca soube como aconteceram.
- O quê, por exemplo?
- Como foi o acidente que matou o Dr. Ulisses.
- Qual é a dúvida?
- O Senhor pergunta “qual é a dúvida”? O Brasil inteiro desconfiou que aquilo não foi acidente, que foi uma armação de um político muito....
- Veja lá o que você vai dizer – Ele me alertou.
- Pois, então. O Senhor sabe. Foi mesmo acidente? Ulisses e Severo Gomes. O Senhor entende, né?
- Entendo. Claro...
- E a renúncia do Collor?
- O que é que tem?
- Como “o que é que tem”?
- O que aconteceu na noite anterior à renúncia? Ninguém entendeu. Pegou todo mundo de surpresa.
- Ele não podia renunciar? – a ironia Dele me afligia.
- Podia, claro. Mas, o Senhor concorda que aquilo foi, no mínimo, inusual, né?
- Uhmmm.
- E aquele meu amigo?
- Qual?
- Aquele que morreu num acidente de carro. A gente era moleque ainda. O Senhor lembra?
- Tenho ótima memória.
- Então, o que aconteceu? Disseram que ele estava num bar e se levantou dizendo que alguém o havia chamado. Foi o Senhor?
- Eu?
- É. O Senhor!
- Ele recebeu alguma ligação no celular?
- Não, é óbvio que não. Naquela época nem tinha celular, o Senhor sabe. Uma pessoa que estava com ele afirmou que, de repente, a mesa ficou quieta. Antes de sair e sofrer o acidente, ele se levantou e disse: “Alguém está me chamando”. Era o Senhor?
- Você viu isso ou te contaram?
- Me contaram, já falei. Eu estava meio distante dele e naquela noite não havíamos saído juntos.
Percebi que Ele estava se esquivando da resposta. Ou, então, não queria assumir a responsabilidade.
Arrisquei mais uma:
- E o Rubens Paiva?
- O pai ou o filho?
- O pai. Onde é que estão os ossos dele? Onde enterraram?
- Você sempre foi muito curioso – Ele me disse.
- O Senhor pode estar enganado.
- Eu nunca me engano.
Olhei para frente e vi duas portas se abrindo. Isso mesmo: a sessão iria começar.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conversa

Conversa
(Narrativa do diálogo que se seguiu a qualquer uma das opções)

Pronto: morri. Não importa como.
Olhei para Ele e fui logo perguntando:
- E o meu filme?
 - Que filme?
- Aquele que todo mundo vê quando morre.
Ele não entendeu. Olhou para mim meio desconfiado.
- Filme?
- É, filme. O filme da minha vida, com cada momento, desde o meu nascimento até a morte.
Ele ficou impassível. Sabia que eu ficaria irritado.
- Vamos lá. Vou ser claro com o Senhor. Eu morri e tenho direito a rever minha vida. Quero ver como eu era quando criança. O senhor sabe: até os cinco anos, a gente não guarda nada na memória. Imaginei que ao morrer pudesse me ver com as fraldas sujas, mijado, cagado...
- Sei.
- E mesmo depois. Também quero relembrar o que já sei. Sentir de novo algumas sensações. A primeira paixão, o primeiro beijo, o desespero naquela tarde de dezembro.
- Você supõe que alguém tenha filmado tudo isso?
Inconformado, e numa clara demonstração de arrogância, alteei a voz com Ele:
- Mas é claro! Se da vida não restar ao menos um filme, não valeu nada.
Ele só meneava a cabeça.
- Eu tenho direito a uma diversão! Ou será que a vida era só aquilo?
- Aquilo?
- É. Aquilo. Aquilo mesmo que o Senhor sabe. Aliás, o Senhor sabe do que eu estou falando: trabalho, família, restrições, concessões, infortúnios. E alguma alegria, é bem verdade.
Àquela altura da conversa, meu tom não era amistoso. Pensei até que Ele pudesse lançar um “Você sabe com quem está falando?”. Mas, não. Ele jamais agiria assim.
Sempre ouvi dizer que a negociação é o melhor caminho. Meu professor de Ciência Política dizia que a gente deve negociar, mesmo que seja com um pau na mão. Evidentemente, com Ele não adiantaria nem a negociação, nem o pau.
Ele continuou quieto, me observando.
- E então? Vai rolar a sessão?
- O filme? Você quer dizer “o filme”?
- Isso. O filme. Tem projeção digital, som double, tela grande?
Ele é realmente generoso. Deu uma risada serena e disse que pensaria no assunto.

(continua)