Já que no post passado falei sobre minhas impressões a respeito da “Guerra do tráfico”, seguem dois pequenos parágrafos sobre Tropa de Elite 2.
Se visto pelo prisma da ficção, trata-se de um bom filme. Embora as conexões políticas com a questão do narcotráfico e da segurança pública sejam bem urdidas, não se pode tomar a trama cinematográfica como elemento bastante para explicar a realidade da capital fluminense.
Sem dúvida, o filme é mais denso que o primeiro. É mais bem amarrado, tecido. Wagner Moura continua impagável e personagens do primeiro filme aparecem com mais destaque. A narrativa parece assumir um tom maduro, encontrando-se mais afiada com o roteiro e as situações (fictícias, é claro) expostas.
Nada além disso....
"Modelando o artista ao seu feitio/ O tempo, com seu lápis impreciso/ Põe-lhe rugas ao redor da boca/ Como contrapesos de um sorriso. "Tempo e artista" - Chico Buarque/1993
domingo, 24 de abril de 2011
sábado, 16 de abril de 2011
Impressões tardias sobre a guerra no Rio
Agora que o assunto não está mais no centro dos debates nacionais, que as discussões já serenaram e que a mídia não mais se preocupa tanto, gostaria de fazer sumárias - e tardias - observações sobre aquilo que se convencionou chamar de a “Guerra contra o tráfico”, ocorrida nos meses finais de 2010.
Em 2006, quando publiquei meu livro (Direito informal e criminalidade: os códigos do cárcere e do tráfico), trabalhei com uma premissa básica e já bastante divulgada por outros autores: a de que a população das comunidades faveladas permeadas pelo narcotráfico geralmente apóia a conduta de seus líderes e repudia as iniciativas da polícia e/ou do poder estatal. Esta postura só se explica pela absoluta ausência do Estado nessas comunidades. Ante as lacunas deixadas pelo poder oficial, é sintomático que irrompam formas alternativas de resolução dos conflitos sociais no morro. A partir de benfeitorias assistencialistas (construção de quadras poliesportivas, pagamento de material escolar a familiares que contribuem para o “movimento”, organização de bailes funks, saneamento, asfalto, etc), os líderes do tráfico logram obter uma legitimidade que seria motivo de inveja a vários políticos do cenário brasileiro.
Essa tese, factível e verificável até os dias atuais, suscitou, com o novo embate entre o Estado e o Tráfico, algumas reflexões. Primeiramente, são dignas de notas as manifestações positivas da população em relação às investidas da operação conjunta entre Polícia Militar, Exército e Polícia Federal. Segundo consta das notícias midiáticas, vários foram os moradores da Favela do Cruzeiro e também do Complexo do Alemão que mostraram deliberadamente sua expectativa de que a força do poder oficial pudesse solapar, de vez, os desmandos do narcotráfico em suas comunidades. É bem verdade que não se pode deixar de mencionar, também, que abusos por parte da polícia foram registrados por moradores. Mas isso, por si só, renderia nova discussão.
Outro aspecto dessa “guerra” que suscita debates é a eficácia das ações estatais para o combate ao tráfico. Sempre ouvi dizer, dos ingênuos desejosos de paz, que, a qualquer momento, a polícia poderia invadir os morros cariocas e acabar com tudo aquilo. Leia-se: acabar com o narcotráfico. Ou seja, acreditava-se que a polícia poderia arrostar o poder paralelo e minar suas bases. Para isso, diziam os incautos, bastaria que houvesse, por parte do Estado, vontade política.
Nessas discussões, sempre argumentei que a polícia não tinha sequer equipamento (armas de fogo) suficiente para uma investida eficaz nas favelas. Anotei também no meu livro – e isso é bastante sabido – que os armamentos mais sofisticados, muitos deles privativos de forças militares estrangeiras, constituem a base da beligerância do tráfico. Ora, se o fuzil mais sofisticado do mundo pertence aos líderes do narcotráfico carioca, não é com pistolas de calibre baixo que o aparato policial conseguirá êxito em um confronto armado.
Pois é.... a experiência recente de ocupação dos morros mostrou que, em conformidade com o que muita gente pensava, bastou haver a tão propalada vontade política, organização e ação para que algo realmente significativo fosse feito. Em outros termos, aqueles que defendiam o grande poderio do tráfico ficaram perplexos com a facilidade policial para promover o êxodo de alguns traficantes de seus redutos. Hoje, certamente, aqueles que acima qualifiquei de incautos, devem estar vociferando, dizendo que tudo é muito simples. Num momento de desvario, cheguei mesmo a perguntar se eles – os tais incautos – não teriam razão.
Por fim, um último comentário. Atualmente, há uma ilusão de que as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) conseguirão manter os traficantes longes do morro. Até segundo aviso, não pretendo acreditar rigorosamente nisso. Caso não haja ação constante e presença do Estado para preencher as lacunas que geraram o assistencialismo dos narcotraficantes, a antiga estrutura irromperá novamente. Estaremos, portanto, diante de um círculo vicioso
O problema é, enfim, estrutural e não episódico.
Em 2006, quando publiquei meu livro (Direito informal e criminalidade: os códigos do cárcere e do tráfico), trabalhei com uma premissa básica e já bastante divulgada por outros autores: a de que a população das comunidades faveladas permeadas pelo narcotráfico geralmente apóia a conduta de seus líderes e repudia as iniciativas da polícia e/ou do poder estatal. Esta postura só se explica pela absoluta ausência do Estado nessas comunidades. Ante as lacunas deixadas pelo poder oficial, é sintomático que irrompam formas alternativas de resolução dos conflitos sociais no morro. A partir de benfeitorias assistencialistas (construção de quadras poliesportivas, pagamento de material escolar a familiares que contribuem para o “movimento”, organização de bailes funks, saneamento, asfalto, etc), os líderes do tráfico logram obter uma legitimidade que seria motivo de inveja a vários políticos do cenário brasileiro.
Essa tese, factível e verificável até os dias atuais, suscitou, com o novo embate entre o Estado e o Tráfico, algumas reflexões. Primeiramente, são dignas de notas as manifestações positivas da população em relação às investidas da operação conjunta entre Polícia Militar, Exército e Polícia Federal. Segundo consta das notícias midiáticas, vários foram os moradores da Favela do Cruzeiro e também do Complexo do Alemão que mostraram deliberadamente sua expectativa de que a força do poder oficial pudesse solapar, de vez, os desmandos do narcotráfico em suas comunidades. É bem verdade que não se pode deixar de mencionar, também, que abusos por parte da polícia foram registrados por moradores. Mas isso, por si só, renderia nova discussão.
Outro aspecto dessa “guerra” que suscita debates é a eficácia das ações estatais para o combate ao tráfico. Sempre ouvi dizer, dos ingênuos desejosos de paz, que, a qualquer momento, a polícia poderia invadir os morros cariocas e acabar com tudo aquilo. Leia-se: acabar com o narcotráfico. Ou seja, acreditava-se que a polícia poderia arrostar o poder paralelo e minar suas bases. Para isso, diziam os incautos, bastaria que houvesse, por parte do Estado, vontade política.
Nessas discussões, sempre argumentei que a polícia não tinha sequer equipamento (armas de fogo) suficiente para uma investida eficaz nas favelas. Anotei também no meu livro – e isso é bastante sabido – que os armamentos mais sofisticados, muitos deles privativos de forças militares estrangeiras, constituem a base da beligerância do tráfico. Ora, se o fuzil mais sofisticado do mundo pertence aos líderes do narcotráfico carioca, não é com pistolas de calibre baixo que o aparato policial conseguirá êxito em um confronto armado.
Pois é.... a experiência recente de ocupação dos morros mostrou que, em conformidade com o que muita gente pensava, bastou haver a tão propalada vontade política, organização e ação para que algo realmente significativo fosse feito. Em outros termos, aqueles que defendiam o grande poderio do tráfico ficaram perplexos com a facilidade policial para promover o êxodo de alguns traficantes de seus redutos. Hoje, certamente, aqueles que acima qualifiquei de incautos, devem estar vociferando, dizendo que tudo é muito simples. Num momento de desvario, cheguei mesmo a perguntar se eles – os tais incautos – não teriam razão.
Por fim, um último comentário. Atualmente, há uma ilusão de que as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) conseguirão manter os traficantes longes do morro. Até segundo aviso, não pretendo acreditar rigorosamente nisso. Caso não haja ação constante e presença do Estado para preencher as lacunas que geraram o assistencialismo dos narcotraficantes, a antiga estrutura irromperá novamente. Estaremos, portanto, diante de um círculo vicioso
O problema é, enfim, estrutural e não episódico.
sábado, 9 de abril de 2011
Tio Harlan 3: o ponto fraco
Tio Harlan 3: o ponto fraco - Roberto Barbato Jr
Antes de contar por que o tio Harlan foi parar na cadeia, vou falar sobre seu ponto fraco. É claro que um sujeito como ele há de ter um ponto fraco. Todo mundo tem, não é?
Pois o ponto fraco do tio Harlan chama-se Aline. Ela é morena, olhos pretos, busto na medida – nem grande, nem pequeno – e as coxas mais lindas das quais já tive notícia. Quando fala, Aline não alteia a voz, mantém o mesmo timbre, o mesmo volume e a mesma cadência. Tem uma voz rouca que parece um sussurro direcionado ao tubo auditivo. Ela não anda, flutua. É de deixar qualquer homem louco. Na frente do tio Harlan, então, ela causa verdadeiro estrago.
Quando a conheceu, fez de um tudo para conquistá-la. Procurou o seu endereço na lista telefônica (ainda não existia internet) e mandou rosas pra casa dela, de duas em duas horas. Cada buquê com um cartão diferente. A família da moça espirrou a noite inteira: todo mundo lá era alérgico a flores, mas o idiota não sabia disso, nem poderia prever. Ficaram todos curiosos e, de alguma forma, disseram que se vingariam do remetente, fosse quem fosse.
Como a menina ainda não sabia quem era o tio Harlan, a besta resolveu ligar pra casa dela para ouvir sua voz. A paixão já havia assumido proporções grandiosas. Ligava e não falava nada, ficava com o telefone na orelha ouvindo “alô, alô, alô”, como se aquilo lhe pudesse dar algum prazer. Naquela época também não tinha bina e, por isso, o tio Harlan abusava das ligações. A família da Aline já não sabia mais o que fazer quando atendia um telefone mudo. Apelidaram o interlocutor silente de mudinho. Mal sabia o retardado do meu tio que ele já tinha até apelido para a família da moça.
Quando foi apresentado para a menina, quase teve uma caganeira. Tremeu, ficou vermelho e gaguejou. A moça, um pouco surpresa, perguntou se ele passava bem. Por um milagre, em duas semanas começaram o namoro. O tio Harlan estava nas nuvens. Conheceu o futuro sogro, a sogra e as duas cunhadas (que também eram lindas mas não chegavam aos pés da irmã). Passou a frequentar a casa dela, almoçava, jantava e assistia ao Jornal Nacional na sala com todos. Àquela altura dos acontecimentos, o sogro, que não era bobo, nem nada, já tinha sacado que o mudinho e o remetente das flores eram a mesma pessoa, ou seja, a besta do tio Harlan. Afinal, os telefonemas mudos não já existiam mais.
Namoro no sofá, intimidade com as cunhadas, beijinho atrás da porta, mãozinha aqui, mãozinha ali.... e tio Harlan se achando o sujeito mais gostoso do mundo. Do dia pra noite, tomou o fora. Foi uma hecatombe. Aline confessou que estava apaixonada pelo Tarcísio e que já tinha iniciado com ele um relacionamento intenso. Muito intenso, ela fez questão de frisar.
O problema é que o Tarcísio era o melhor amigo do meu tio, amizade antiga, de infância mesmo. Ele não conseguia entender como aquilo foi acontecer: o Tarcísio era desengonçado, mal arrumado, tinha crateras de espinhas no rosto e, pior, mau hálito. Parecia que tinha engolido um urubu. Perder a Aline para ele era um pesadelo, dos piores.
Tio Harlan chorou noventa noites seguidas. Foi nessa época que começou a beber pra esquecer a Aline. Nunca esqueceu. Quando ouve algum comentário sobre ela ou a encontra casualmente, fica pálido, sem ação. Chega mesmo a tremer. Depois, arruma um jeito de se isolar num banheiro qualquer e chora a falta da amada.
Coitado. Nem o tio Harlan - que é um filho da puta - merecia isso.
Antes de contar por que o tio Harlan foi parar na cadeia, vou falar sobre seu ponto fraco. É claro que um sujeito como ele há de ter um ponto fraco. Todo mundo tem, não é?
Pois o ponto fraco do tio Harlan chama-se Aline. Ela é morena, olhos pretos, busto na medida – nem grande, nem pequeno – e as coxas mais lindas das quais já tive notícia. Quando fala, Aline não alteia a voz, mantém o mesmo timbre, o mesmo volume e a mesma cadência. Tem uma voz rouca que parece um sussurro direcionado ao tubo auditivo. Ela não anda, flutua. É de deixar qualquer homem louco. Na frente do tio Harlan, então, ela causa verdadeiro estrago.
Quando a conheceu, fez de um tudo para conquistá-la. Procurou o seu endereço na lista telefônica (ainda não existia internet) e mandou rosas pra casa dela, de duas em duas horas. Cada buquê com um cartão diferente. A família da moça espirrou a noite inteira: todo mundo lá era alérgico a flores, mas o idiota não sabia disso, nem poderia prever. Ficaram todos curiosos e, de alguma forma, disseram que se vingariam do remetente, fosse quem fosse.
Como a menina ainda não sabia quem era o tio Harlan, a besta resolveu ligar pra casa dela para ouvir sua voz. A paixão já havia assumido proporções grandiosas. Ligava e não falava nada, ficava com o telefone na orelha ouvindo “alô, alô, alô”, como se aquilo lhe pudesse dar algum prazer. Naquela época também não tinha bina e, por isso, o tio Harlan abusava das ligações. A família da Aline já não sabia mais o que fazer quando atendia um telefone mudo. Apelidaram o interlocutor silente de mudinho. Mal sabia o retardado do meu tio que ele já tinha até apelido para a família da moça.
Quando foi apresentado para a menina, quase teve uma caganeira. Tremeu, ficou vermelho e gaguejou. A moça, um pouco surpresa, perguntou se ele passava bem. Por um milagre, em duas semanas começaram o namoro. O tio Harlan estava nas nuvens. Conheceu o futuro sogro, a sogra e as duas cunhadas (que também eram lindas mas não chegavam aos pés da irmã). Passou a frequentar a casa dela, almoçava, jantava e assistia ao Jornal Nacional na sala com todos. Àquela altura dos acontecimentos, o sogro, que não era bobo, nem nada, já tinha sacado que o mudinho e o remetente das flores eram a mesma pessoa, ou seja, a besta do tio Harlan. Afinal, os telefonemas mudos não já existiam mais.
Namoro no sofá, intimidade com as cunhadas, beijinho atrás da porta, mãozinha aqui, mãozinha ali.... e tio Harlan se achando o sujeito mais gostoso do mundo. Do dia pra noite, tomou o fora. Foi uma hecatombe. Aline confessou que estava apaixonada pelo Tarcísio e que já tinha iniciado com ele um relacionamento intenso. Muito intenso, ela fez questão de frisar.
O problema é que o Tarcísio era o melhor amigo do meu tio, amizade antiga, de infância mesmo. Ele não conseguia entender como aquilo foi acontecer: o Tarcísio era desengonçado, mal arrumado, tinha crateras de espinhas no rosto e, pior, mau hálito. Parecia que tinha engolido um urubu. Perder a Aline para ele era um pesadelo, dos piores.
Tio Harlan chorou noventa noites seguidas. Foi nessa época que começou a beber pra esquecer a Aline. Nunca esqueceu. Quando ouve algum comentário sobre ela ou a encontra casualmente, fica pálido, sem ação. Chega mesmo a tremer. Depois, arruma um jeito de se isolar num banheiro qualquer e chora a falta da amada.
Coitado. Nem o tio Harlan - que é um filho da puta - merecia isso.
sábado, 2 de abril de 2011
Tio Harlan 2: o campeão
Tio Harlan 2: o campeão - Roberto Barbato Jr
Pois é. O tio Harlan nem sempre foi um filho da puta. Quando eu era pequeno achava que ele era um sujeito bacana. Vivia me contando suas experiências exitosas. Eu morria de admiração por ele.
Uma vez me relatou que um de seus grandes méritos foi ter vencido os 100 metros livres numa olimpíada. Falou que, naquele dia, se sentiu o máximo, como se fosse um motor da Ferrari. A potência em pessoa, a velocidade encarnada num corpo humano. Chegou à frente dos outros competidores com uma diferença de 7 segundos, o que, segundo ele, era uma eternidade. “Carl Lewis? Nunca ouvi falar”, dizia desdenhoso.
Nas olimpíadas seguintes, a dar provas de sua versatilidade, resolveu mudar o esporte. Tornou-se nadador. Venceu tudo a que tinha direito: crawl, costas, borboleta e, principalmente, o nado de peito. Era medalha atrás de medalha. Com o sucesso, chamaram-no pra ser treinador de uma equipe norte-americana. O problema era que seu passaporte estava vencido e ele tinha preguiça de renová-lo. Então, acabou recusando a proposta. “Isso é pra quem pode”, respondeu quando perguntei se o motivo da recusa era aquele mesmo. Acreditei, é claro.
Sua última incursão no mundo esportivo teria sido como tenista. A carreira só não foi longe porque ele enjoou do barulho da bola e dos gemidos dos jogadores. Odiava quando alguém batia na bola e soltava um ãããh. Dizia que aquilo era coisa de maricas. Mesmo admitindo que não teve lá muito sucesso, sempre contou aos quatro ventos que derrotou o Borg, no auge da sua forma física. Encontraram-se num clube paulistano para uma partida as dez horas da noite. Pouca gente presenciou o espetáculo, a pedido do próprio Borg, que pressentia a derrota para o grande tenista Harlan.
Pô, o tio Harlan era o máximo. Era o cara.
Fiquei sem graça quando a tia Cecília, ex-mulher dele, me confessou que o filho da puta nunca passou perto de uma piscina ou de uma quadra. Na juventude, o que ele mais sabia fazer era encher a cara. Bebia como um doido. Dava baixaria, caía, berrava. Xingava meia cidade e acabava sendo levado pra casa por alguma boa alma que o encontrava em estado lastimável na rua. “Seu avô morria de vergonha”, disse a tia Cecília. O tio Harlan, quem diria, era o maior alcoólatra da paróquia. Pois é: além de filho da puta, era também alcoólatra. E papudo.
Se hoje ele ainda bebe? Não, claro que não. Ele parou com isso. Na cadeia.
Pois é. O tio Harlan nem sempre foi um filho da puta. Quando eu era pequeno achava que ele era um sujeito bacana. Vivia me contando suas experiências exitosas. Eu morria de admiração por ele.
Uma vez me relatou que um de seus grandes méritos foi ter vencido os 100 metros livres numa olimpíada. Falou que, naquele dia, se sentiu o máximo, como se fosse um motor da Ferrari. A potência em pessoa, a velocidade encarnada num corpo humano. Chegou à frente dos outros competidores com uma diferença de 7 segundos, o que, segundo ele, era uma eternidade. “Carl Lewis? Nunca ouvi falar”, dizia desdenhoso.
Nas olimpíadas seguintes, a dar provas de sua versatilidade, resolveu mudar o esporte. Tornou-se nadador. Venceu tudo a que tinha direito: crawl, costas, borboleta e, principalmente, o nado de peito. Era medalha atrás de medalha. Com o sucesso, chamaram-no pra ser treinador de uma equipe norte-americana. O problema era que seu passaporte estava vencido e ele tinha preguiça de renová-lo. Então, acabou recusando a proposta. “Isso é pra quem pode”, respondeu quando perguntei se o motivo da recusa era aquele mesmo. Acreditei, é claro.
Sua última incursão no mundo esportivo teria sido como tenista. A carreira só não foi longe porque ele enjoou do barulho da bola e dos gemidos dos jogadores. Odiava quando alguém batia na bola e soltava um ãããh. Dizia que aquilo era coisa de maricas. Mesmo admitindo que não teve lá muito sucesso, sempre contou aos quatro ventos que derrotou o Borg, no auge da sua forma física. Encontraram-se num clube paulistano para uma partida as dez horas da noite. Pouca gente presenciou o espetáculo, a pedido do próprio Borg, que pressentia a derrota para o grande tenista Harlan.
Pô, o tio Harlan era o máximo. Era o cara.
Fiquei sem graça quando a tia Cecília, ex-mulher dele, me confessou que o filho da puta nunca passou perto de uma piscina ou de uma quadra. Na juventude, o que ele mais sabia fazer era encher a cara. Bebia como um doido. Dava baixaria, caía, berrava. Xingava meia cidade e acabava sendo levado pra casa por alguma boa alma que o encontrava em estado lastimável na rua. “Seu avô morria de vergonha”, disse a tia Cecília. O tio Harlan, quem diria, era o maior alcoólatra da paróquia. Pois é: além de filho da puta, era também alcoólatra. E papudo.
Se hoje ele ainda bebe? Não, claro que não. Ele parou com isso. Na cadeia.
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