Antes mesmo de alugar o apartamento, tinha ciência de que ali perto, bem perto, havia um bar. Ótimo! A idéia era atrativa. O tal bar tinha música ao vivo. MPB com violão e algo mais. Fantástico!
O problema era que, embora ainda notívago e boêmio, cansei-me. As atividades do bar não davam trégua. Se quisesse aproveitá-lo não conseguiria trabalhar. Não era possível: de terça a sábado havia música alta, palmas e muita baderna ao final da noite. As situações eram as de sempre: bêbados jurando amor eterno ao amigo que "é gente boa", que "é legal pra caramba".
Após longas e sucessivas noites de som alto, paciência exaurida, liguei para a polícia. Expliquei a situação e pedi informações sobre o procedimento correto para resolver o problema. Do outro lado da linha, o Soldado Edson (assim se apresentou) me disse que só poderia tomar alguma providência caso eu fosse juntamente com a viatura da polícia até o bar. A reclamação deveria ter um autor claro, manifesto. Como era eu o incomodado, deveria encarar o dono do boteco e dizer que o barulho me aporrinhava.
Para qualquer indivíduo de bom senso, aquelas instruções soariam absurdas, por várias razões. A primeira delas é que, estando frio, muito frio, não seria conveniente que o incomodado saísse de casa para fazer a tal reclamação. Caberia à polícia resolver o problema, sem mais delongas. Bastava, portanto, que uma viatura se certificasse de que o alto volume do som era um fato.
A outra razão, a mais óbvia, é que, apresentando-se ao dono do bar, o incomodado poderia correr algum risco de perseguição futura. Não seria ideal que o reclamante se mostrasse. A polícia, ciente da existência de retaliações em casos como aquele, deveria desconfiar disso e tomar alguma providência.
O sono já havia passado e eu ainda insistia com o tal soldado para que alguma providência fosse tomada sem que eu precisasse sair de casa. Já havia chegado aos meus ouvidos que o dono do boteco era violento e que jamais reagiu bem às reclamações feitas. Sugeri que a viatura da polícia apenas passasse em frente ao bar. Talvez isso fosse suficiente para intimidar os donos do estabelecimento e fazê-los abaixar o volume do som.
Sem acordo! Categórico, o soldado Edson me disse:
- Não posso fazer nada. O "pertubado" tem que aparecer. Se o "pertubado" não aparecer no bar, não podemos fazer nada. O "pertubado" precisa mostrar que está sendo "pertubado".
Já sem esperanças, resmunguei um pouco.... O soldado me saiu com essa:
- Veja o senhor que antes dessa Constituição (1988), isso não acontecia. A gente chegava nos bares, prendia os instrumentos, era violão prum lado, bateria pro outro... A gente descia o sarrafo e ninguém falava nada. Agora, essa tal Constituição não deixa mais a gente fazer isso e os músicos estão cada vez mais abusados. É o tal (sic) dos direitos humanos. E o senhor quer dormir e os direitos humanos não deixa (sic).
Só consegui dormir depois de algum tempo, confiante na Constituição, "pertubado" e descrente do bom senso alheio.
É só.... Por ora é só....
"Modelando o artista ao seu feitio/ O tempo, com seu lápis impreciso/ Põe-lhe rugas ao redor da boca/ Como contrapesos de um sorriso. "Tempo e artista" - Chico Buarque/1993
sexta-feira, 25 de julho de 2008
segunda-feira, 21 de julho de 2008
Ceticismo?
Já que falei do Cony, confesso minha grande admiração por suas crônicas, publicadas na Folha. Não li, ainda, nenhum dos seus romances. Fiquei curioso com a reedição de sua estréia: O ventre.
Entrei numa livraria, peguei o livro e comecei a lê-lo. De pronto, uma frase me chamou a atenção. Ei-la:
"Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito".
É só.... Por ora é só....
Entrei numa livraria, peguei o livro e comecei a lê-lo. De pronto, uma frase me chamou a atenção. Ei-la:
"Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito".
É só.... Por ora é só....
segunda-feira, 14 de julho de 2008
A resposta que Cony não me deu
Em julho de 2003 o Rio tinha cara de um pretenso inverno. Fomos jantar no Leblon. Ao fundo do restaurante, avistamos Cony e uma moça, provavelmente sua mulher. Ele não jantou, apenas balançou as pernas com evidente sinal de impaciência. Estava, por certo, ansioso. Ela também não jantou. Ficaram algum tempo conversando baixo, discretamente. De repente, ela se levantou. Serviu-se de um doce e voltou para a mesa.
Naquela época, as reflexões do doutorado ainda ecoavam na minha cabeça. É provável que já estivesse pensando em rever a tese para submetê-la à apreciação de alguma editora. Ela seria, afinal, publicada um ano depois, pela Annablume. Embora o texto tratasse de intelectuais antigos (Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Paulo Duarte e outros) a temática era atualíssima e suscitava uma questão interessante: qual é a função social dos intelectuais em uma determinada conjuntura histórica?
Ter visto Cony ali, disposto, reservado, aguçou-me a curiosidade. Um homem que presenciou os grandes momentos da história do século XX, que resistiu a sucessivas prisões arbitrárias da ditadura militar, que conviveu com os escritores mais importantes do país, que trafegou pela crônica, pelo romance, pelo jornalismo... Enfim, um homem como ele certamente poderia responder aquela questão.
Num rompante, pensei em abordá-lo. Invadiria a intimidade daquela mesa de canto, quase isolada. Imaginei que, impaciente, balançaria as pernas com mais avidez, talvez reclamasse do meu jeito intrometido. Indagaria qual era a legitimidade da minha interpelação. Diria que aquilo era pergunta para o "Liberdade de expressão", da CBN.
Supus que, em poucos instantes, pudesse desenhar sua trajetória para explicar a função do intelectual na sociedade brasileira. Mas isso também seria impossível em tão pouco tempo... Reparei bem no movimento de suas pernas e amedrontei-me com elas. Temi uma reprimenda. Acovardei-me.
Surpreso, percebi que Miúcha estava ao nosso lado (o encontro merece outro post, naturalmente). Conversamos com ela. Falamos do Chico, que terminava de escrever um livro em Paris. Não sabíamos, ainda, que era Budapeste. Nem ela sabia.
Jantamos, tomamos um café e fomos embora, sem a resposta do Cony.
Naquela época, as reflexões do doutorado ainda ecoavam na minha cabeça. É provável que já estivesse pensando em rever a tese para submetê-la à apreciação de alguma editora. Ela seria, afinal, publicada um ano depois, pela Annablume. Embora o texto tratasse de intelectuais antigos (Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Paulo Duarte e outros) a temática era atualíssima e suscitava uma questão interessante: qual é a função social dos intelectuais em uma determinada conjuntura histórica?
Ter visto Cony ali, disposto, reservado, aguçou-me a curiosidade. Um homem que presenciou os grandes momentos da história do século XX, que resistiu a sucessivas prisões arbitrárias da ditadura militar, que conviveu com os escritores mais importantes do país, que trafegou pela crônica, pelo romance, pelo jornalismo... Enfim, um homem como ele certamente poderia responder aquela questão.
Num rompante, pensei em abordá-lo. Invadiria a intimidade daquela mesa de canto, quase isolada. Imaginei que, impaciente, balançaria as pernas com mais avidez, talvez reclamasse do meu jeito intrometido. Indagaria qual era a legitimidade da minha interpelação. Diria que aquilo era pergunta para o "Liberdade de expressão", da CBN.
Supus que, em poucos instantes, pudesse desenhar sua trajetória para explicar a função do intelectual na sociedade brasileira. Mas isso também seria impossível em tão pouco tempo... Reparei bem no movimento de suas pernas e amedrontei-me com elas. Temi uma reprimenda. Acovardei-me.
Surpreso, percebi que Miúcha estava ao nosso lado (o encontro merece outro post, naturalmente). Conversamos com ela. Falamos do Chico, que terminava de escrever um livro em Paris. Não sabíamos, ainda, que era Budapeste. Nem ela sabia.
Jantamos, tomamos um café e fomos embora, sem a resposta do Cony.
domingo, 6 de julho de 2008
A racionalidade do capital, o Cheiro do Ralo e a Loja da Esquina
Nunca é demais reiterar que esse blog não é dado a reflexões acadêmicas, ainda que alguns posts possam assim sugerir. Repito também que não se pode levá-lo a sério... Se quisesse fazer algo rigoroso, não publicaria aqui e procuraria por veículo idôneo para manifestar algumas inquietações. É, aliás, o que faço quando alguma questão me azucrina o pensamento.
Por falar em azucrinar – termo feio e vetusto –, aporrinha-me amiúde a cara de estupefação de certas pessoas diante da racionalidade capitalista. É incrível como ainda hoje há gente que teima em se surpreender com algo tão banal e de facílimo entendimento...
Não será preciso muito esforço para compreender que em matéria de negócios e dinheiro, "cessa a boa vontade", como diria o velho Marx. Ou, por outra, negócios são algo "em cujo peito não bate nenhum coração".
A racionalidade e a impessoalidade do capital foram reiteradamente explicadas por Marx em suas obras. Já no Manifesto Comunista, escrito com Engels, ambos tiveram o cuidado de mostrar sucintamente a história da evolução do capitalismo. Descrevendo o papel revolucionário da burguesia, evidenciaram por que o feudalismo fora substituído por um modo de produção destituído do caráter pessoal e idílico das relações humanas.
Veja-se um trecho do Manifesto:
"[A burguesia] ... não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível 'pagamento em dinheiro'. Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavaleiresco, do sentimento pequeno-burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e durante conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos. (...) A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito. Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência. (...) A burguesia rasgou o véu de comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias". (MARX, Karl. & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 68-69).
Em suma, em face das estruturas capitalistas, nada mais poderia ser visto sob a ótica do "sentimentalismo" e do "entusiasmo cavaleiresco". Em vez disso, tudo se cifraria a "meras relações monetárias". Nada mais.
Também em sua obra máxima, O capital, Marx deixara tudo isso muito claro. No capítulo intitulado "A jornada de trabalho", com sua habitual ironia, cria o desabafo de um operário que, diante do capitalista, deseja uma jornada de trabalho justa. Observe-se:
"Eu, exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração". (MARX, Karl. O Capital. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Coleção Os economistas. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 180-181, Vol. I.)
Conforme se vê, a cáustica sagacidade do velho Marx fere a ingenuidade daqueles que acreditam na existência do patrão bonzinho ou do patrão mau. Isso não existe! Não há patrão bom e tampouco patrão malvado.
Há, apenas, patrão.
Em relações de trabalho, nas quais o objetivo é tão-somente o lucro, não pode haver quem seja bonzinho ou mau. Não cabem juízos de valor! Existe apenas, reitere-se, a meta do lucro, que é racionalmente calculado. Ou será que alguém acha que a cesta-básica dada pelo patrão é uma generosidade? E o plano de saúde?
Tudo isso deve ser entendido de um ponto de vista isento. Os negócios que medeiam as relações entre patrão e empregado são impessoais. No momento em que a força de trabalho não mais interessar à lógica de reprodução do capital, a relação de trabalho deve ser extinta, sem prejuízo das eventuais relações pessoais.
Basta que vejamos a situação de modo impessoal. Pronto: resolvido estaria o dilema. Para não estender demais a história, vamos a dois exemplos interessantes.
No filme "O cheiro do ralo", o personagem de Selton Mello é um comprador (negociador) que quinquilharias. Por trás de sua mesa, conversa com pessoas para avaliar os objetos que desejam vender. Os interessados em comercializar as tais quinquilharias não entendem que o valor pessoal delas não tem a menor relevância para os objetivos daquele que irá comercializá-las. Dizem que um tal objeto é de estimação, porque passado de geração em geração. Asseveram que uma tal coisa vale muito porque fora daquele parente que logrou êxito em alguma empreitada heróica. E por aí vai.... O que essas pessoas não entendem é que, do outro lado da mesa, o único interesse existente é o valor de troca daquelas mercadorias.
O filme é lapidar porque mostra a crueza das negociações e evidencia a impessoalidade de uma relação de necessidade entre dois indivíduos. Enquanto um precisa vender (a despeito de não querer, por questões pessoais), outro quer comprar para comercializar (apenas por um motivo racional e impessoal).
Também em "Mensagem para você", filme com Meg Ryan – a sempre namoradinha da América – e Tom Hanks, há uma passagem curta e interessantíssima a respeito do assunto aqui sob foco. Lembremos rapidamente da trama: Joe Fox (Tom Hanks) é o empresário de uma rede de mega stores (Livrarias Fox) e abre uma filial perto de uma tradicional livraria da cidade. A tal livraria é de Kathleen Kelly (Meg Ryan) e lhe foi herdada pela mãe que, fique claro, construiu sua clientela com base no atendimento personalizado, vendendo livros infantis quase artesanais e oferecendo atividades educativas às crianças. Ali se concentram anos e mais anos de uma história pessoal, regada a sentimentalismos e laços de amizade para com os fregueses.
A Livraria Fox irrompe portanto como a grande ameaça à "Loja da esquina" (não nos esqueçamos que o filme original é de Lubitsch e leva o mesmo nome). Foi ela, aliás, a razão da falência do tradicional negócio de Kathleen. Entre ela e Joe – que terminarão a trama juntos, num rompante caso de amor – cria-se uma evidente disputa. Disputa impessoal, bem entendido. E talvez a tradução mais aguda dessa disputa resida numa simples frase.
Enquanto Joe faz esteira na academia, acompanhado por seu assessor, assiste ao depoimento de Kathleen na TV sobre a possível falência de sua livraria. O assessor lhe diz que ela é realmente bonita, insinuando que a concorrência é, por isso, injusta. Joe, de modo frio e racional, apenas diz:
- Ah, não é nada pessoal...
É a racionalidade da concorrência, dos negócios capitalistas. Nada além disso. Tanto assim que talvez já apaixonado pela dona da Loja da Esquina, o grande empresário Fox não se curva. O poder do capital não pode sucumbir a uma paixão.
É óbvio que os dois filmes e a temática aqui exposta merecem análise mais acurada e poderiam, sem dúvida, render algum estudo. Como não é esse o meu propósito, deixo essas idéias jogadas, quiçá mal colocadas, sem compromisso...
É para isso, afinal, que serve esse blog....
Boa semana a todos!
Por falar em azucrinar – termo feio e vetusto –, aporrinha-me amiúde a cara de estupefação de certas pessoas diante da racionalidade capitalista. É incrível como ainda hoje há gente que teima em se surpreender com algo tão banal e de facílimo entendimento...
Não será preciso muito esforço para compreender que em matéria de negócios e dinheiro, "cessa a boa vontade", como diria o velho Marx. Ou, por outra, negócios são algo "em cujo peito não bate nenhum coração".
A racionalidade e a impessoalidade do capital foram reiteradamente explicadas por Marx em suas obras. Já no Manifesto Comunista, escrito com Engels, ambos tiveram o cuidado de mostrar sucintamente a história da evolução do capitalismo. Descrevendo o papel revolucionário da burguesia, evidenciaram por que o feudalismo fora substituído por um modo de produção destituído do caráter pessoal e idílico das relações humanas.
Veja-se um trecho do Manifesto:
"[A burguesia] ... não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível 'pagamento em dinheiro'. Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavaleiresco, do sentimento pequeno-burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e durante conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos. (...) A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito. Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência. (...) A burguesia rasgou o véu de comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias". (MARX, Karl. & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 68-69).
Em suma, em face das estruturas capitalistas, nada mais poderia ser visto sob a ótica do "sentimentalismo" e do "entusiasmo cavaleiresco". Em vez disso, tudo se cifraria a "meras relações monetárias". Nada mais.
Também em sua obra máxima, O capital, Marx deixara tudo isso muito claro. No capítulo intitulado "A jornada de trabalho", com sua habitual ironia, cria o desabafo de um operário que, diante do capitalista, deseja uma jornada de trabalho justa. Observe-se:
"Eu, exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração". (MARX, Karl. O Capital. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Coleção Os economistas. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 180-181, Vol. I.)
Conforme se vê, a cáustica sagacidade do velho Marx fere a ingenuidade daqueles que acreditam na existência do patrão bonzinho ou do patrão mau. Isso não existe! Não há patrão bom e tampouco patrão malvado.
Há, apenas, patrão.
Em relações de trabalho, nas quais o objetivo é tão-somente o lucro, não pode haver quem seja bonzinho ou mau. Não cabem juízos de valor! Existe apenas, reitere-se, a meta do lucro, que é racionalmente calculado. Ou será que alguém acha que a cesta-básica dada pelo patrão é uma generosidade? E o plano de saúde?
Tudo isso deve ser entendido de um ponto de vista isento. Os negócios que medeiam as relações entre patrão e empregado são impessoais. No momento em que a força de trabalho não mais interessar à lógica de reprodução do capital, a relação de trabalho deve ser extinta, sem prejuízo das eventuais relações pessoais.
Basta que vejamos a situação de modo impessoal. Pronto: resolvido estaria o dilema. Para não estender demais a história, vamos a dois exemplos interessantes.
No filme "O cheiro do ralo", o personagem de Selton Mello é um comprador (negociador) que quinquilharias. Por trás de sua mesa, conversa com pessoas para avaliar os objetos que desejam vender. Os interessados em comercializar as tais quinquilharias não entendem que o valor pessoal delas não tem a menor relevância para os objetivos daquele que irá comercializá-las. Dizem que um tal objeto é de estimação, porque passado de geração em geração. Asseveram que uma tal coisa vale muito porque fora daquele parente que logrou êxito em alguma empreitada heróica. E por aí vai.... O que essas pessoas não entendem é que, do outro lado da mesa, o único interesse existente é o valor de troca daquelas mercadorias.
O filme é lapidar porque mostra a crueza das negociações e evidencia a impessoalidade de uma relação de necessidade entre dois indivíduos. Enquanto um precisa vender (a despeito de não querer, por questões pessoais), outro quer comprar para comercializar (apenas por um motivo racional e impessoal).
Também em "Mensagem para você", filme com Meg Ryan – a sempre namoradinha da América – e Tom Hanks, há uma passagem curta e interessantíssima a respeito do assunto aqui sob foco. Lembremos rapidamente da trama: Joe Fox (Tom Hanks) é o empresário de uma rede de mega stores (Livrarias Fox) e abre uma filial perto de uma tradicional livraria da cidade. A tal livraria é de Kathleen Kelly (Meg Ryan) e lhe foi herdada pela mãe que, fique claro, construiu sua clientela com base no atendimento personalizado, vendendo livros infantis quase artesanais e oferecendo atividades educativas às crianças. Ali se concentram anos e mais anos de uma história pessoal, regada a sentimentalismos e laços de amizade para com os fregueses.
A Livraria Fox irrompe portanto como a grande ameaça à "Loja da esquina" (não nos esqueçamos que o filme original é de Lubitsch e leva o mesmo nome). Foi ela, aliás, a razão da falência do tradicional negócio de Kathleen. Entre ela e Joe – que terminarão a trama juntos, num rompante caso de amor – cria-se uma evidente disputa. Disputa impessoal, bem entendido. E talvez a tradução mais aguda dessa disputa resida numa simples frase.
Enquanto Joe faz esteira na academia, acompanhado por seu assessor, assiste ao depoimento de Kathleen na TV sobre a possível falência de sua livraria. O assessor lhe diz que ela é realmente bonita, insinuando que a concorrência é, por isso, injusta. Joe, de modo frio e racional, apenas diz:
- Ah, não é nada pessoal...
É a racionalidade da concorrência, dos negócios capitalistas. Nada além disso. Tanto assim que talvez já apaixonado pela dona da Loja da Esquina, o grande empresário Fox não se curva. O poder do capital não pode sucumbir a uma paixão.
É óbvio que os dois filmes e a temática aqui exposta merecem análise mais acurada e poderiam, sem dúvida, render algum estudo. Como não é esse o meu propósito, deixo essas idéias jogadas, quiçá mal colocadas, sem compromisso...
É para isso, afinal, que serve esse blog....
Boa semana a todos!
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