Há algum tempo, assumi o compromisso de postar umas crônicas do Mário de Andrade... Como estou sem tempo de escrever, recorro a uma delas. É curta e fantástica! Data da década de 1920. Vale a pena lê-la! Como sempre, a ortografia foi mantida no original. Boa leitura!
Sobre a Lepra no Rio Grande do Norte – Mário de Andrade
"Um dos problemas que, atacado a tempo no Rio Grande do Norte, já está quase resolvido, é o da lepra. Por mim confesso inda não topei com leproso declaro por aqui. Vi, foi a cara dum horrendo, em fotografia, num cartaz de propaganda contra a doença, bem por cima da bilheteria de selos, do Correio.
Parece que o Estado atualmente contará com pouco mais de cem leprosos, informa o dr. Varela Santiago, médico de Natal, se dedicando ao problema e autor dum Esboço Histórico da lepra no Rio Grande do Norte, de que vou me servir.
A lepra é relativamente recente no Estado. O primeiro caso já conhecido data já da segunda metade do século passado. Seguiram casos raros, quando senão quando aparecia um, se isolando por si mesmo ou vivendo, na paciência sem medo dos outros, a vida social, que nem um telegrafista de Mossoró por 1883. Esse telegrafista, Deus me perdoe! é um caso engraçado de psicologia morfética. Se falava naqueles tempos que morfético mordido por cobra, sarava da lepra. Mas como não se sabia direito se o leproso sarava também da mordida da cobra o pobre do telegrafista ficou numa hesitação danada. Andou campeando uma cobra, arranjou uma cascavel, ótima pra morder, trouxe ela pra casa. Desde então viveram na maior comunhão possível, cascavel e telegrafista. Mas morder é que jamais ele não se deixou. Viveu eternamente na esperança de ser mordido sem querer. - É hoje, ele se falava, hoje de certo a cascavel escapole e me morde. - Passava que mais passava junto da caixa em que a cascavel jazia fechadíssima. Esbarrava na caixa. Se escutava lá dentro um chocalho baixinho. Mas não houve remédio: nunca que a cobra escapoliu e o telegrafista morreu leproso. Morreu leproso, num morrer de todas as horas martirizado, antiofídico mas pelo menos não provou picada de cascavel que além de matar depressa, talvez doa. Se existe caso mais dramaticamente cômico, outro que conte".
(ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 263).