sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Sérgio Buarque e Mário de Andrade: entre a Sociologia e Homero


Antes de arriscar mais besteiras nesse ano que está acabando, reproduzo abaixo um belíssimo trecho de Sérgio Milliet, a quem o modernismo brasileiro tanto deve. A ortografia, como sempre, foi mantida no original. Vale a pena olhar!

"... na realidade, não sabiamos nada. Éramos deliciosamente ignorantes e foi com Sérgio Buarque e com Mario de Andrade que aprendemos, não sem alguma relutância, a meditar: 'É preciso saber ler Homero', berrava Mario de Andrade; e Sérgio gritava: 'é preciso saber sociologia'. Creio mesmo que foi êle um dos primeiros entre nós a dedicar-se a essa disciplina, o que só viemos a fazer após o malogro de 1932, conscientes da fragilidade de nossos quadros".

(MILLIET, Sérgio. "À margem da obra de Sérgio Buarque de Holanda". In: Quatros ensaios, São Paulo: Martins, 1966, p. 50-51).

É só... Por ora é só...





sábado, 15 de dezembro de 2007

Nelson Rodrigues: o Judiciário e o patrimonialismo


Já disse – e repito! – que esse blog não é lugar para reflexões acadêmicas e tampouco veículo que possa ser levado a sério. Não pensem os meus pouquíssimos leitores que isso vá mudar. Não vai, não! O problema é que, vez por outra, fico tentado a produzir alguma coisa mais séria. Como o tempo é curto, deixo a seriedade de lado e arrisco aqui alguns palpites, sem compromisso, conforme já expliquei na abertura desse blog.

O tema desse post poderia render um interessante ensaio ancorado nas perspectivas analíticas do pensamento social brasileiro. Entretanto, o que se pretende aqui é simples: fazer apontamentos sobre a relação de um dos personagens de Engraçadinha – Odorico Quintela – com o Judiciário brasileiro. Garanto que os trechos reproduzidos da obra de Nelson Rodrigues, por si só, valerão a leitura do que segue.

Odorico é um personagem sui generis. Aqueles que não leram o romance, mas tiveram a oportunidade de assistir a adaptação feita pela Globo no início da década de 1990, certamente se lembrarão dele, interpretado magistralmente por Paulo Betti.

Trata-se de um juiz que evoca reiteradamente o Judiciário em situações as mais engraçadas. O que não é engraçado, contudo, é a expressão de sua postura patrimonialista, tendente a confundir, à farta, o público com o privado. É essa, segundo entendo, a idéia que Nelson Rodrigues desejou passar aos seus leitores.

Salvo melhor juízo, para Odorico o Judiciário se afigura como instituição apta a prestar toda sorte de benefício para aqueles que foram tragados por suas teias. Colocada nesses termos, a questão poderia soar ao leitor como um exagero. Não o é! Nas candentes expressões do Magistrado, o Judiciário é um instrumento que lhe possibilita adquirir vantagens inúmeras e, talvez na maioria das vezes, indevidas.

Vejamos, a título de mera ilustração e, reitere-se, sem nenhuma intenção de encetar estudo pormenorizado a esse respeito, como tais impressões se revelam na obra.

A primeira cena a nos chamar a atenção é aquela em que Odorico deseja acompanhar Silene, filha de Engraçadinha, até sua casa. Para tanto, chama um táxi. O chofer diz que não vai mais trabalhar, já que seu expediente acabou. Odorico enfia-lhe a carteira de juiz na cara:

"- Meu amigo, o senhor vai me levar, sim! O senhor está falando com uma autoridade! (...) Sabe ler? Então, lê! Lê, rapaz! Juiz, compreendeu? Podia lhe prender! E nem mais uma palavra! (p. 195)

Terminada a corrida, o Magistrado ameaça o chofer novamente. Deseja não pagar! Arrisca:

"- Rapaz, podia ter te metido na cadeira! – Pausa e faz menção de puxar a carteira: - Quanto é?"
O outro, com as orelhas incendiadas, fez um gesto:
- Doutor, paga quanto quiser!
Dr. Odorico larga a carteira no bolso:
- Obrigado, amigo! Até a vista! E olha: não faça mais isso!
Desgovernado, o chofer arrancou, sem levar-lhe um tostão". (p. 197)

Em outras situações, Odorico faz menções explícitas à pretensa garantia de interesses privados pelo Judiciário. É o que se depreende do episódio da geladeira, a servir de presente para Engraçadinha. Quando resolve efetuar sua compra, flagra-se sem dinheiro. Não quer dar a entrada do pagamento. É nesse momento que, mais uma vez, traz à baila a autoridade do Judiciário:

"- Mas, meu amigo! O que é que há? Afinal de contas, o Judiciário é um poder que, graças a Deus, resistiu a degringolada. Ou o senhor pensa, talvez, que eu, um juiz... Meu amigo, olha aqui a minha identidade. Eu não vou fugir com a sua geladeira!" (p. 361)

Aqui, o Judiciário é dado como garantia da compra, como se fosse dotado da capacidade de afiançar as prestações da geladeira. Algo patético!

Há outros trechos também emblemáticos que sugerem a capacidade do Judiciário ser colocado a serviço de interesses particulares. Veja-se:

"Escuta, eu sou juiz, Engraçadinha. Entende? E, nesta terra, o Judiciário, compreende? Digo-lhe isso sem nenhuma vaidade, porque sou avesso a essas coisas, nem é do meu feitio. Mas como juiz eu posso até requisitar força policial" (p. 263).

"... E olha que eu não gosto de alegar a minha qualidade de juiz. Não é de meu feitio. Mas há ocasiões em que não é possível. É a falta de caráter do Brasil!" (p. 351)

Conforme se nota, Odorico parece se contradizer: embora diga que não goste de reclamar sua autoridade de juiz, o faz frequentemente; embora se diga avesso a “essas coisas” (leia-se: práticas do favoritismo pessoal), pode até "requisitar força policial". Para quê? Ora, para garantir interesses que nenhuma relação têm com o poder Judiciário...

Em que pese creditar ao Judiciário supremo poder, a ponto de afirmar que "no Brasil, pode-se brigar com todo mundo e nunca com o Judiciário" (p. 359)", Odorico por vezes se mostra ambíguo. Claudica em suas convicções íntimas e intenta mostrar a si mesmo que o Judiciário, ao contrário do que se diz, "ainda tem o seu valor". Diz ele:

"Afinal, eu sou um juiz e, nesta terra, o Judiciário ainda tem o seu valor“ (p. 355)

Por fim, uma última associação: a idéia de que o Judiciário, a despeito de sua glória e utilidade indeléveis, acaba por tolher seus membros. Odorico, não à toa, usa o verbo "empalhar". Note-se:

"Eu também já fui inteligente. (...) Também já fui um Otto Lara Resende. Mas o Judiciário empalha qualquer um. Nós, juízes, somos empalhados!" (p. 376).

Talvez resida aí a explicação para muitos traços psicológicos e atitudes pragmáticas do personagem ao longo da trama.

Na belíssima obra de Rodrigues existem, enfim, sugestões sobejamente ricas sobre a relação entre o Judiciário e o patrimonialismo brasileiro. Aquele que tiver interesse, poderá consultar a edição citada abaixo ou, ainda, adquirir as novas edições recentemente lançadas no mercado editorial. Fica registrado o convite da leitura.

Caso alguém deseje se aventurar a interpretar a lavra rodriguiana à luz da noção de patrimonialismo, vale a pena a leitura das obras de Weber, Sergio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro.

As citações desse post foram retiradas de RODRIGUES, Nelson. Engraçadinha: seus amores e seus pecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

É só... Por ora é só...




segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Sobre a Lepra no Rio Grande do Norte – Mário de Andrade

Há algum tempo, assumi o compromisso de postar umas crônicas do Mário de Andrade... Como estou sem tempo de escrever, recorro a uma delas. É curta e fantástica! Data da década de 1920. Vale a pena lê-la! Como sempre, a ortografia foi mantida no original. Boa leitura!

Sobre a Lepra no Rio Grande do Norte – Mário de Andrade

"Um dos problemas que, atacado a tempo no Rio Grande do Norte, já está quase resolvido, é o da lepra. Por mim confesso inda não topei com leproso declaro por aqui. Vi, foi a cara dum horrendo, em fotografia, num cartaz de propaganda contra a doença, bem por cima da bilheteria de selos, do Correio.

Parece que o Estado atualmente contará com pouco mais de cem leprosos, informa o dr. Varela Santiago, médico de Natal, se dedicando ao problema e autor dum Esboço Histórico da lepra no Rio Grande do Norte, de que vou me servir.

A lepra é relativamente recente no Estado. O primeiro caso já conhecido data já da segunda metade do século passado. Seguiram casos raros, quando senão quando aparecia um, se isolando por si mesmo ou vivendo, na paciência sem medo dos outros, a vida social, que nem um telegrafista de Mossoró por 1883. Esse telegrafista, Deus me perdoe! é um caso engraçado de psicologia morfética. Se falava naqueles tempos que morfético mordido por cobra, sarava da lepra. Mas como não se sabia direito se o leproso sarava também da mordida da cobra o pobre do telegrafista ficou numa hesitação danada. Andou campeando uma cobra, arranjou uma cascavel, ótima pra morder, trouxe ela pra casa. Desde então viveram na maior comunhão possível, cascavel e telegrafista. Mas morder é que jamais ele não se deixou. Viveu eternamente na esperança de ser mordido sem querer. - É hoje, ele se falava, hoje de certo a cascavel escapole e me morde. - Passava que mais passava junto da caixa em que a cascavel jazia fechadíssima. Esbarrava na caixa. Se escutava lá dentro um chocalho baixinho. Mas não houve remédio: nunca que a cobra escapoliu e o telegrafista morreu leproso. Morreu leproso, num morrer de todas as horas martirizado, antiofídico mas pelo menos não provou picada de cascavel que além de matar depressa, talvez doa. Se existe caso mais dramaticamente cômico, outro que conte".

(ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 263).