A
corrupção e os donos das ruas - Roberto Barbato Jr
Artigo originalmente publicado no Correio Popular (Campinas - 16/03/2017)
No início do século XX, vários foram
os autores que, sequiosos de diagnosticar as mazelas da sociedade brasileira, abordaram
a temática da tensa relação entre o público e o privado. Em seu célebre ensaio Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda
denunciou os vícios que compõem as estruturas públicas brasileiras. O desapego
à racionalidade ocidental e a negação da imparcialidade das normas jurídicas foram
algumas das características verificadas pelo autor como constitutivas da
formação nacional. O destino brasileiro seria marcado indelevelmente por traços
personalistas. A preponderância de vontades particulares e a vedação natural a
uma ordem impessoal era significativa, a tal ponto de se assinalar a
incapacidade de fazer irromper a democracia, "um lamentável mal-entendido"
segundo o autor. Em suma, para o sociólogo paulista, o Brasil estava impregnado
do sentimento patrimonialista.
Décadas
após seu diagnóstico, ressalvadas algumas especificidades, o quadro nacional permanece
o mesmo. Além de persistir como elemento basilar da sociedade, o patrimonialismo
ensejou a criação de um vasto campo para a emergência da corrupção. Hoje,
desperto da letargia que o dominou por séculos, o Brasil se movimenta para
impedir o avanço de uma ordem social deletéria e conquistar, ainda que de
maneira tímida, a moralidade pública. Não é sem razão que a irrupção da
operação Lava-Jato e seus desdobramentos na esfera judicial ganharam aplausos
da maioria da população. Anseia-se a punição de seus envolvidos como forma de
demonstrar que a nação deseja viver a era da cidadania e da ética. Contudo, tal
anseio encontra-se em flagrante contradição com as mais diversas atitudes
tomadas pelos próprios brasileiros em seu cotidiano. A gama dessas atitudes
engloba os pequenos favores e até mesmo uma ingênua concessão ao domínio do
privado sobre o público.
É no dia a dia, nas circunstâncias mais
prosaicas, que o cidadão insatisfeito com as práticas da corrupção e do
patrimonialismo acaba por reforçá-las. Talvez não tenha consciência disso, mas
assim o faz. Exemplo emblemático é o indevido pagamento pelo uso das ruas. Um
velho truísmo, conhecido inclusive pelas crianças, assevera que "a rua é
pública". Portanto, para utilizá-la não se exigiria o pagamento de nenhuma
taxa ou tributo àqueles que usurparam seu caráter público. Os
"olheiros" de carros, "flanelinhas" de outrora, são hoje
grandes detentores do patrimônio público no Brasil. Muitos de nós, cidadãos,
somente temos a percepção disso ao ouvir a conhecida pergunta: "Tio, posso
olhar?" Quando essa indagação nos assalta em plena rua é porque eles já se
apropriaram de calçadas, praças e quarteirões inteiros para auferir renda. Recebem
valores por um serviço que jamais prestaram ou, o que é pior, cujo objeto da
contraprestação financeira é inventado, porque inexistente. Essa situação não
seria tão patética se a expropriação do público não contasse com a conivência de
algumas autoridades competentes que, indiretamente, também colhem os louros
dessa prática não republicana.
As cidades brasileiras – Campinas não é
exceção – estão repletas de zonas que quase se converteram em propriedade
privada. Aqui marcam-se áreas, como se estivessem delimitando um território particular.
Há notícias de que seus "proprietários" resolveram "passar o
ponto", atribuindo a terceiros o "direito" de explorar aquela região.
É um acinte a qualquer cidadão.
De outro lado, não se pode desprezar
que o domínio do privado sobre o público ocorre também porque a maioria da
população concorda com ele. Ao anuir com o uso da rua por expropriadores, pagando
o valor pedido – às vezes quase imposto – para o serviço inexistente, cada
brasileiro acaba por fomentar a lógica de que o público já se converteu em
privado e esse é um fato natural, devendo ser aceito por todos. Afinal, muitos
dos olheiros são vistos como pessoas honestas ou, numa expressão apta a
justificar toda sorte de condutas espúrias, "homens que poderiam estar
roubando". Sua idoneidade moral ou a isenção de antecedentes criminais não
são capazes de elidir a atuação perniciosa que desempenham no bojo da
sociedade.
Diante desse cenário, é patente que
quando se abre mão de usufruir de bens públicos em sua plenitude, concede-se
primazia ao privado como se ela fosse legítima, lícita e normal. A rés pública é preterida e, à sua
revelia, interesses individuais são satisfeitos. Em suma, o favorecimento da
engrenagem que reproduz a corrupção é evidente.
É então que se pergunta: atribuir ao
particular o domínio do público não é o mesmo que concordar com a lógica que
alimenta o patrimonialismo e a corrupção? Não é o mesmo que admitir que o
dinheiro público pode ser utilizado para a realização de interesses privados? Provavelmente,
alguém responderia que a corrução tem consequências mais nefastas se comparada
à apropriação das ruas, já que esta não tem impacto direto sobre a economia do
país e não impede a construção de hospitais, escolas e outras instituições
públicas aptas a resguardar o direito de todos. Entretanto, não se está a medir
o alcance das duas práticas, mas apenas de refletir se ambas derivam da mesma
postura.
Sendo afirmativas as respostas,
remanesceria a todos a obrigação moral de perpetuar essa consciência e tomar
alguma atitude.