Até que ele morra
Era ainda menino e já havia tomado
consciência da injustiça do mundo. Um tio materno impingiu-lhe uma lavagem
cerebral, creditando todo o mal da humanidade às vísceras do capitalismo. Apoiou-se
num daqueles credos socialistas que professavam a socialização de tudo, até
mesmo dos mimos familiares. Desde então, não hesitava em pensar que seus
brinquedos e roupas deveriam ter o destino inevitável das chamadas classes
subalternas. Como o tio era exagerado, falava em lumpemproletariado. O moleque
morria de pena. Pois é, o raciocínio era simplista, mas funcionava. Privava-se
do pouco que lhe ofereciam, era realmente pródigo em doações.
Ainda imberbe, foi
cooptado pelo Partidão. Disseram-lhe que o mundo se dividia entre os filiados e
os demais seres humanos, órfãos da dignidade partidária. Fez política
estudantil no segundo grau e na faculdade. Sua militância era fervorosa:
participava de congressos e discussões, acampava com a pastoral, participava de
distribuição de merenda e o escambau. Lia tudo quanto podia. Marx, Engels,
Lenin, Gramsci e Rosa eram citados com familiaridade ímpar, de dar inveja aos
mais tradicionais quadros do Partidão e aos intelectuais de carreira.
Vinte anos depois, estava casado,
era pai e tinha emprego fixo sem nenhuma ligação política. Pouco a pouco, foi se
tornando amargo, descrente. Já não queria saber de laços partidários, não falava
com companheiros da antiga militância. Queria apagar o passado, a cerveja
quente das reuniões com pretextos socialistas, a fiscalização ideológica e a
repreensão aos quadros pelegos da política. Agora, tudo lhe parecia produto de
dissabores, de uma história sem sentido. Mas, no fundo...
No fundo, em algum recôndito
intocável e quase invisível, ainda sonhava com a economia planificada, a ordem social
igualitária. Ao tomar conhecimento do ataque ao World Trade Center, deu um
risinho de esguelha. A tal convulsão social mencionada pelo velho barbudo no Prefácio para Crítica da Economia Política
(ele sabia até a página da edição) irromperia no centro do capitalismo.
Teria chegado a hora? Enfim, os proletários de todo o mundo iriam se unir. Bin
Laden? Fundamentalismo? Ora, aquilo não existia. O ataque foi produto de algum
gênio do Kremlim. “A revolução! A revolução!”, sussurrava para si enquanto
ouvia mentalmente os acordes iniciais da Internacional Socialista.
Quando anunciaram a nova crise das
bolsas de investimento, teve o último sopro de esperança. Wall Street seria o
sinônimo da ruída tão aguardada. Qual o quê!
Hoje, o mundo continua injusto e
ele, já conformado, sabe que isso não vai mudar. Pelo menos, até que ele morra.